Decisão do STF sobre aplicação das Convenções de Montreal e Varsóvia no transporte aéreo internacional de cargas e impactos no mercado de seguros
Em 21 de fevereiro de 2024, o Supremo Tribunal Federal (“STF“) concluiu o julgamento do Agravo Regimental nº 1.372.360, que versava sobre a aplicabilidade da tese fixada no Tema nº 210 aos casos em que se discute a responsabilidade do transportador aéreo internacional por danos causados à carga, tendo entendido que as Convenções de Montreal e Varsóvia prevalecem sobre a legislação brasileira.
A título de contexto, relembra-se que o Tema nº 210 foi fixado pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 636.331 em maio de 2017, quando se firmou o seguinte entendimento: “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.
Embora a Convenção de Montreal já tivesse sido incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro em 2006, os tribunais costumavam prestigiar o princípio da reparação integral (artigos 14 do Código de Defesa do Consumidor e 944 do Código Civil) e a garantia fundamental da reparação civil ampla e integral (art. 5º, inciso V, da CRFB). Assim, em ações movidas contra transportadores aéreos, tanto por passageiros, quanto por embarcadores ou suas seguradoras sub-rogadas, as indenizações se baseavam na extensão total do dano para fins de reparação.
No entanto, passando a adotar o entendimento fixado pelo STF no Tema nº 210, os tribunais começaram a aplicar a limitação de responsabilidade prevista no artigo 22 da Convenção de Montreal, segundo o qual a responsabilidade das companhias aéreas por danos ou extravio da carga fica limitada a uma quantia de 17 Direitos Especiais de Saque por quilograma (atualmente, cerca de R$ 112,96/kg), a menos que se declare previamente à companhia o valor do bem mediante a cobrança de valor adicional.
Ocorre que o caso julgado pelo STF para definição do entendimento sobre o assunto e que levou à criação do Tema nº 210 versava sobre danos a bagagens, e isso foi expressamente pontuado pelos ministros na ocasião do julgamento daquele recurso:
“Afinal, se pode o passageiro afastar o valor limite presumido pela Convenção mediante informação do valor real dos pertences que compõem a bagagem, então não há dúvidas de que o limite imposto pela Convenção diz respeito unicamente à importância desses mesmos pertences e não a qualquer outro interesse ou bem, mormente os de natureza intangível.
Assim, meu voto é no sentido de declarar a aplicabilidade do limite indenizatório estabelecido na Convenção de Varsóvia e demais acordos internacionais subscritos pelo Brasil, em relação às condenações por dano material decorrente de extravio de bagagem, em voos internacionais.” (Voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do Recurso Extraordinário 636.331, destacou-se).
“Volto a registrar, por pertinente, que a fixação da tese de repercussão geral acima está intimamente conectada ao exame de caso paradigmático concernente à responsabilidade do transportador aéreo internacional por danos materiais decorrentes da perda, destruição, avaria ou atraso de bagagem.”. (Voto-vista da Ministra Rosa Weber no Recurso Extraordinário 636.331, destacou-se).
Isso fez com que a aplicabilidade do Tema nº 210 para casos que versem sobre a responsabilização de transportadores aéreos por danos a cargas fosse questionada, afinal, o precedente teria sido estabelecido com base em casos com diferentes características.
Inclusive, decisões monocráticas proferidas pelos ministros Alexandre de Moraes (ARE 1.146.801/SP), Cármen Lúcia (RE 1.252.909/SP), Ricardo Lewandowski (AgR ARE 1.240.608/RJ) e Rosa Weber (RE 1.196.955/SP), posteriores à fixação do Tema nº 210, consignaram que a limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Montreal seria inaplicável a casos envolvendo o transporte aéreo de cargas.
Agora, ao julgar o Agravo Regimental nº 1.372.360 que tratava justamente da responsabilização do transportador aéreo por danos a carga, o STF parece ter esclarecido seu entendimento sobre tal controvérsia por meio de decisão colegiada.
Ao apreciar o recurso, a ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, inaugurou o julgamento mantendo a sua posição de inaplicabilidade da limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Montreal, pois por versar “sobre falha na prestação de serviço de contrato de transporte aéreo internacional de mercadorias”, seria inaplicável o Tema nº 210, que somente se enquadraria caso se tratasse de “extravio de bagagem de transporte aéreo de passageiros em voos internacionais”.
Acesse o voto da relatora, que foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Nunes Marques.
O ministro Gilmar Mendes, em seguida, divergiu da relatora por entender que, no conflito entre normas internacionais e internas do ordenamento jurídico brasileiro devem prevalecer as convenções internacionais, em conformidade com o princípio da especialidade, prevalecendo, no caso, as previsões de limitação de responsabilidade das Convenções de Montreal e Varsóvia.
Segundo o ministro, a fundamentação do julgado que fixou o Tema nº 210 “não fez qualquer distinção entre o transporte de bagagens e de carga”, mas apenas analisou a realidade fática daquele caso, envolvendo extravio de bagagem, cujo fundamento seria extensivo ao transporte de carga, pois “em se tratando de transporte aéreo internacional, havendo divergência entre a norma interna e a Convenção, prevalecerá o disposto nesta última, desde que respeitado o princípio da reciprocidade, por força do disposto no art. 178 da Constituição Federal”.
Assim, o voto divergente concluiu que “a tese fixada no Tema 210 aplica-se a todo o tipo de conflito envolvendo transporte internacional, cujas normas tenham sido objeto de tratados internacionais firmados pelo Brasil” e “ou seja, no caso de transporte internacional de carga, a responsabilidade do transportador por destruição, perda, avaria ou atraso da carga segue a regra do artigo 22 da Convenção de Montreal (…)”.
Ao final, o ministro Gilmar Mendes pontuou expressamente que tal entendimento também se estende às seguradoras em caso de ação de regresso contra transportadoras aéreas.
O voto divergente foi considerado vencedor pela maioria do tribunal, ao ser acompanhado pelos demais membros da corte: os ministros Cristiano Zanin, Edson Fachin, Dias Toffoli, André Mendonça, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso.
O posicionamento emitido pelo STF possui alta relevância para o mercado segurador, pois afeta diretamente o valor da indenização a ser paga pelos transportadores aéreos por danos causados a cargas, o que, por um lado, favorece a posição da seguradora que garanta a responsabilidade civil do transportador, e por outro, desfavorece a seguradora do embarcador da carga, que se sub-roga nos direitos do segurado e posteriormente age em regresso contra o transportador.
Nota-se, portanto, um impacto direto na subscrição dos riscos de responsabilidade civil dos transportadores e dos riscos de transporte internacional de cargas dos embarcadores, que agora deve levar em consideração a limitação de responsabilidade da Convenção de Montreal na precificação de tais seguros.
A equipe de Seguros, Resseguros, Previdência Privada e Saúde Suplementar do Demarest está à disposição para fornecer quaisquer esclarecimentos adicionais que se façam necessários.
Fonte: Demarest, em 12.03.2024