Joo Marcelo Carvalho

João Marcelo Carvalho

Sócio do escritório Santos Bevilaqua Advogados. Graduado em Direito e em Ciências Atuariais, com Mestrado em Direito e MBA em Administração Financeira.



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Os contratos de dívida entre EFPC e patrocinadores à luz da Resolução CNPC 42

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Introdução

Em 2021 o Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC tem prosseguido na execução de projeto de aprimoramento do arcabouço normativo que rege as EFPC, tendo como suporte o Decreto nº 10.139/2019, que determina a revisão e a consolidação de portarias, resoluções e outros atos de conteúdo normativo. A Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc, no âmbito das instruções normativas que publica, tem trabalhado no mesmo sentido.

Três das seis resoluções editadas pelo CNPC neste ano tiveram como objetivo principal a consolidação de normas esparsas. Fazendo uma breve retrospectiva, a Resolução CNPC nº 39 consolidou normas sobre procedimentos de certificação e habilitação de dirigentes, revogando as Resoluções CNPC nº 19/2015, 21/2015 e 33/2019; a Resolução CNPC nº 41 unificou as Resoluções CGPC nº 16/2005 e CNPC nº 24/2016, que dispunham sobre as modalidades dos planos de benefícios e sobre submassas, respectivamente; e a Resolução CNPC nº 43 revogou e substituiu as Resoluções CNPC nº 29/2018 e 37/2020, unificando as regras contábeis aplicáveis às entidades fechadas de previdência complementar.

A Resolução CNPC nº 40/2021 foi bem mais comentada pois, além de também ter revogado e consolidado as Resoluções CGPC nº 8/2004 e 27/2008 e CNPC nº 05/2011 (parcialmente) e 06/2011, explicitou a possibilidade de alteração de índice de reajuste de benefícios inclusive com aplicação aos atuais assistidos[1]. Além da Resolução CNPC nº 42, sobre a qual nos debruçaremos a seguir, completa a lista da Resoluções editadas pelo CNPC em 2021 a de nº 44, que, ao substituir a Resolução CNPC nº 27/2017, dispõe sobre regras acerca da prestação de serviços de auditoria independente para as EFPC.

Normas anteriores que dispunham sobre contratos de dívida de patrocinador

Até a publicação da Resolução CNPC nº 42 (que ocorreu 27 de agosto de 2021, com vigência a partir de 1º de setembro do mesmo ano) duas eram as normas que dispunham sobre dívidas de patrocinadores: a Resolução CGPC nº 17/1996 e a Resolução CNPC nº 30/2018. A primeira, expressamente revogada pela Resolução nº 42, tratava sobre o parcelamento de dívida dos patrocinadores junto às suas respectivas EFPC, quando o débito dizia respeito ao não cumprimento das obrigações pactuadas. A segunda, não revogada, dispõe, nos seus arts. 29, §4º, e 32, §1º, sobre hipóteses em que a celebração de contrato de dívida é necessária para formalizar compromisso patronal de equacionamento de déficit, tema sobre o qual escrevemos recentemente.

Ao passo que a Resolução nº 42 propõe-se a tratar da necessidade de celebração de instrumento contratual em decorrência de obrigações pactuadas perante a EFPC relativas a equacionamento de déficit, serviço passado, contribuições em atraso e outras obrigações, andou bem a norma ao revogar a Resolução CGPC nº 17, cuja hipótese de contratação formal de dívida (oriunda do não cumprimento de obrigações assumidas) já está abarcada na resolução recém-publicada.

Chamou a atenção, contudo, a não revogação expressa de dispositivos da Resolução CNPC nº 30/2018 que tratam de dívida decorrente de equacionamento de déficit. Como esse tipo de dívida (decorrente de déficit) também foi contemplada na nova norma e considerando que a Resolução em comento foi editada, dentre outros, com o propósito de consolidação (conforme declarado no Parecer da Previc sobre a dispensa de Análise de Impacto Regulatório da Resolução[2]), a manutenção dos dispositivos da Resolução nº 30 sobre o tema geram algumas interrogações.

Conflitos entre a Resolução CNPC nº 30/2018 e a 42/2021

Embora não tenhamos dados estatísticos a respeito, nossa experiência demonstra que a maioria dos contratos de dívida celebrados entre patrocinadores e EFPC tem sido realizada em decorrência da aplicação das hipóteses referidas na Resolução CNPC nº 30/2018, sobretudo dívidas patronais relativas à parcela das provisões matemáticas de benefícios concedidos não coberta pelo patrimônio de cobertura do plano

Nesses casos, a Resolução CGPC nº 17 era aplicada, quando cabível, por analogia, já que ela trata de dívida decorrente do não cumprimento de obrigação pactuada. A hipótese mais comum de aplicação direta dessa resolução é a ausência de repasses de contribuições patronais já estabelecidas em plano de custeio.

A Resolução CNPC nº 30, por seu turno, regula hipóteses de celebração de instrumento contratual relacionado a uma obrigação (de realização de contribuições extraordinárias decorrentes de déficit) que está sendo constituída naquela ocasião e que, portanto, não foi descumprida. Em outras palavras, não se pode dizer que o contrato celebrado para cumprimento da Resolução CNPC nº 30 decorre do não cumprimento de determinada obrigação assumida. Na verdade, ele decorre da necessidade de formalização de uma obrigação que está sendo assumida naquela ocasião. Senão vejamos.

O art. 29, §4º, da Resolução 30 dispõe que “remanescendo déficit a equacionar de responsabilidade do patrocinador em situações de duração do passivo igual ou inferior a quatro anos, a EFPC deverá apresentar à Previc instrumento contratual (...)”. O art. 32, §1º, disciplina que “na ocorrência de parcela não coberta de reserva matemática de benefícios concedidos, a parte desta que couber ao patrocinador deverá ser objeto de instrumento contratual (...).”

Ocorre que, visando consolidar a matéria “contratos de dívida” num único normativo, o CNPC abrangeu na Resolução 42 o que antes estava regulado na 17 e o que está disciplinado na 30. Note-se:

Resolução CGPC nº 17/1996

Resolução CNPC nº 30/2018

Resolução CNPC nº 42/2021

Dívidas decorrentes do não cumprimento de obrigações assumidas perante a EFPC.

Dívidas decorrentes de equacionamento de déficits quando a duração do passivo é igual ou inferior a quatro anos ou quando há parcela não coberta da reserva matemática de benefícios concedidos.

Dívidas relativas a equacionamento de déficit, serviço passado, contribuições em atraso e outras obrigações do patrocinador.

Como a Resolução CNPC nº 30 não foi expressamente revogada, e considerando que o Decreto 10.139 orienta (arts. 7º e 8º) o uso da técnica de revogação expressa de atos normativos, é de se pressupor, a priori, que arts. 29, §4º, e 32, §1º, continuam vigentes. Isso, contudo, geraria alguns conflitos normativos que envolvem a formalização de dívidas decorrentes de equacionamento de déficit, como se vê:

Matéria tratada

Resolução CNPC nº 30/2018

Resolução CNPC nº 42/2021

Necessidade de formalização de dívida em contrato

Apenas nas hipóteses citadas nos arts. 29, §4º, e 32, §1º

Em qualquer hipótese (art. 1º)

Necessidade de registro do contrato

Apenas na hipótese de equacionamento de déficit em plano cuja duração seja igual ou inferior a 4 anos (art. 29, §4º)

Em qualquer hipótese (art. 1º, §1º), ressalvando-se que a norma dispõe, como alternativa ao registro em cartório, o registro por meio digital que permita a sua certificação (*)

Elementos mínimos do instrumento contratual

Não há

Listados no art. 2º (*)

Tipo de garantia a ser prestada

Garantia real, para plano com duração igual ou inferior a quatro anos; não é especificado, para plano com parcela não coberta da reserva matemática de benefícios concedidos

Não é especificado expressamente, mas como se fala em “bem a ser dado em garantia” (art. 2º, §1º), pressupõe-se a exigência de garantia real

Laudo de avaliação do bem dado em garantia

Não há previsão a respeito

É necessário, sendo o perito avaliador escolhido em comum acordo pelas partes (*)

Forma de constituição da garantia

Não há previsão a respeito

Regras detalhadas no art. 2º, §2º

Custos de avaliação, formalização e registro das garantias

Não há previsão a respeito

São suportados pelo patrocinador

Parecer técnico atuarial que respalde o instrumento

Não há previsão a respeito

É necessário, devendo o atuário manifestar-se sobre elementos mínimos previstos no art. 3º (*)

Manifestação favorável do órgão responsável pela supervisão, coordenação e controle do patrocinador regido pela LC 108/2001

Não é exigida manifestação específica quanto ao instrumento contratual, mas apenas em relação ao Plano de Equacionamento

É exigida (*)

(*) Regras previstas na Resolução CNPC nº 42/2021 que foram inspiradas em previsão constante da Resolução CGPC nº 17/1996.

O quadro acima demonstra que (i) a Resolução CNPC nº 42 aproveitou, com adaptações, determinadas regras antes válidas para a dívidas alcançadas pela Resolução CNPC nº 17/1996 e as expandiu para qualquer tipo de dívida de patrocinador; (ii) inovou em algumas obrigações; e (iii) com isso, acabou por gerar conflito com determinadas regras presentes na Resolução CNPC nº 30/2018 e que não foram revogadas.

Considerações finais

A questão que fica é saber, em situações que envolvam pagamento de déficits por patrocinadores, qual aparato normativo regerá a relação jurídica, dúvida essa que se subdivide em (i) obrigações já constituídas (déficits já em equacionamento); e (ii) obrigações futuras.

Essa análise exige abordagem de princípios constitucionais atinentes à matéria, conceitos extraídos da legislação infraconstitucional (inclusive da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), doutrina acerca de retroatividade e ultratividade da regulação setorial[3], verificação do enquadramento da norma como de ordem pública, jurisprudência dos Tribunais pátrios, dentre outros.

Estando a Previc autorizada pelo CNPC a editar instruções complementares à Resolução CNPC nº 42, é possível que sejam dados mais elementos capazes de auxiliar as EFPC na solução dessa questão. Não sendo possível garantir que instrução nesse sentido será publicada, uma avaliação prévia dos possíveis impactos na nova norma revela atitude prudente.


[1] Acerca desse tema, destaque para artigo publicado por Jarbas Antonio Di Biagi para a Abrapp, disponível em <https://blog.abrapp.org.br/blog/artigo-regulamentos-dos-planos-de-beneficios-atualizacao-dos-beneficios-aspectos-interessantes-por-jarbas-antonio-de-biagi/>.

[2] Disponível em <https://www.gov.br/previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/conselho-nacional-de-previdencia-complementar/arquivos/parecer_de_dispensa_de_air-res-no-42.pdf>

[3] A esse respeito, recomenda-se leitura da obra de Danilo Ribeiro Miranda Martins, Previdência Privada: limites e diretrizes para a intervenção do Estado, Curitiba, Juruá: 2018, pgs. 205 e ss.

02.09.2021