Joo Marcelo Carvalho

João Marcelo Carvalho

Sócio do escritório Santos Bevilaqua Advogados. Graduado em Direito e em Ciências Atuariais, com Mestrado em Direito e MBA em Administração Financeira.



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Contratos de déficit no âmbito das EFPC: hipóteses de cabimento, diferenças e novidades

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Os planos de benefícios administrados por entidades fechadas de previdência complementar, quando dotados de componentes atuariais, estão sujeitos a desequilíbrios, que podem ser superavitários ou deficitários. Dados do Relatório de Estabilidade da Previdência Complementar, publicado pela Previc em dezembro de 2020 com dados que remetem ao encerramento do exercício de 2019, demonstram que de um total de 581 planos de benefícios que apuram resultados atuariais, 176 estavam deficitários, ou seja, algo como 30%.

A legislação permite que os planos de benefícios convivam com déficits que sejam considerados pequenos[1]. Se o valor do déficit ultrapassa o limite legal, a insuficiência deve ser equacionada, sendo o estabelecimento de contribuições extraordinárias, pagas em prazo que observe o limite normativo[2], a forma mais usual de fazê-lo.

Quando, em razão de um déficit, se opta por implementar contribuições extraordinárias e essas, integral ou parcialmente, recaem sobre o patrocinador do plano de benefícios, surge a necessidade de avaliar a formalização desse compromisso da patrocinadora perante a EFPC mediante um instrumento contratual específico.

Da análise da legislação setorial que rege o tema, constata-se que a Resolução CNPC nº 30/2018 dispõe que déficits deverão ser formalizadas mediante instrumento particular quando:

(i) a duração do passivo do plano for igual ou inferior a 4 (quatro) anos, devendo o contrato ser “reconhecido em cartório” e prever garantia real (art. 29, §4º, da Resolução CNPC nº 30/2018); e

(ii) da ocorrência de parcela não coberta de reserva matemática de benefícios concedidos, o que exige que a parte da dívida que couber à patrocinadora seja objeto de instrumento contratual com garantias (art. 32, §1º, da Resolução CNPC nº 30/2018).

Nas hipóteses de déficit não compreendidas nos itens acima, a formalização de contrato específico para dispor sobre a dívida da patrocinadora perante a EFPC é facultativa. Independentemente da existência de instrumento contratual, o pagamento da dívida será sempre exigível. Aliás, a sua inadimplência importará aplicação de cominações previstas no regulamento do plano de benefícios e, caso persista por mais de 90 (noventa) dias, a legislação exige que a Previc seja cientificada do débito, para adoção de providências cabíveis.

Sendo assim, importa refletir sobre os objetivos que o legislador perseguiu ao determinar que, em certas hipóteses, a dívida de um patrocinador relacionada a déficit – que já é exigível por natureza – seja formalizada mediante celebração de instrumento particular.

Primeiramente, percebe-se que em ambas as disposições normativas citadas consta regra de que o instrumento particular de confissão de dívida preveja garantia contratual. Isso, por si só, já seria capaz de justificar a formalização requerida, inobstante seja possível avaliar outras motivações.

Nessa busca por alcançar a mens legis, consigna-se que a teor do art. 784, III, do Código de Processo Civil, se duas testemunhas comparecerem no contrato ele constituir-se-á verdadeiro título executivo extrajudicial, o que, consoante art. 824 e seguintes do CPC, faz ampliar a eficácia da cobrança em caso de inadimplemento.

Outro aspecto que merece destaque é a disposição normativa que impõe que o instrumento contratual citado no §4º do art. 29 da Resolução CNPC nº 30 seja “reconhecido em cartório”, podendo conduzir o leitor a mais de uma interpretação. Isso porque um contrato pode ter as assinaturas (firmas) de seus subscritores reconhecidas em Cartório de Notas e/ou ser averbado no competente Registro de Títulos e Documentos ou no Registro de Imóveis. Assim, quando o referido parágrafo dispõe sobre a necessidade de o contrato ser “reconhecido em cartório”, gera dúvidas sobre a forma de cumpri-lo.

Compreende-se, sem prejuízo de que os instrumentos tenham firmas reconhecidas, que se buscou exigir que o contrato em questão seja averbado no competente Registro de Títulos e Documentos ou no Registro de Imóveis, conforme o caso. Além de trazer maior higidez ao pacto firmado, o registro em cartório, no caso em apreço - que exige oferecimento de garantia real - também se presta a cumprir requisitos legais de eficácia, inclusive perante terceiros, a teor dos arts. 1.432 e 1.492 do Código Civil, que dispõem sobre penhor e hipoteca, respectivamente.

Percebe-se, com isso, que o legislador infralegal fez uma verdadeira graduação das exigências de formalização do compromisso em questão. Para déficits em planos com duração do passivo inferior a 4 (quatro) anos, considerou imprescindível a celebração de contrato com garantia real e averbado no competente cartório de Registro. Para as insuficiências de recursos que se referem às provisões matemáticas de benefícios concedidos, a garantia pode ser real ou fidejussória e dispensa-se, em princípio, o registro em cartório[3]. E para as demais, sequer a formalização por instrumento contratual é exigida.

A par de tais exigências normativas e sabendo-se que se pode estar além delas, mas nunca aquém, as partes (patrocinadora e EFPC) devem avaliar as circunstâncias que envolvem o caso concreto e ajustá-lo de modo a alcançar a segurança jurídica necessária à operação.

Como novidade, registra-se que a formalização da dívida mediante instrumento particular, seja nas hipóteses em que ela é obrigatória ou quando facultativa, gera importante efeito contábil. Nos termos do art. 22 da Instrução Previc nº 31/2020, vigente desde 1º de janeiro do ano corrente, dívidas de patrocinador que estão suportadas por contrato devem ser registradas no Ativo, em “Realizável Previdencial”, grupo “Operações Contratadas”. Superou-se, com essa nova regra, a divisão que vigorava até então, cujo critério determinante para o tratamento contábil era a natureza da dívida: se financeira, gerava um registro no Ativo; se atuarial, no Passivo. Agora, mesmo se a dívida for atuarial, o suporte de contrato de dívida implica sua classificação contábil como Ativo do plano de benefícios.

[1] De acordo com o art. 29 da Resolução CNPC nº 30/2018, o limite de déficit técnico acumulado admitido corresponde a 1% x (duração do passivo - 4) x Provisão Matemática.

[2] O limite encontra-se estabelecido no art. 34 da Resolução CNPC nº 30/2018, sendo o prazo de uma vez e meia a duração do passivo a regra geral, que admite a exceção prevista no § 1º do referido artigo.

[3] Deve-se ter em mente que, a depender da garantia oferecida, o registro em cartório, embora não requerido pela legislação que rege as EFPC, poderá ser um requisito indispensável à eficácia do negócio à luz da legislação civil.

27.04.2021