Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Coordenador da Cátedra de Transportes da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP).

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Transporte aéreo internacional de carga e a não aplicação da limitação tarifada da convenção de Montreal

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A correta interpretação da decisão de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal sobre a Convenção de Montreal

Começo com afirmação convicta: a recente decisão do Supremo Tribunal Federal com o signo de “repercussão geral” sobre o transporte aéreo internacional e a Convenção de Montreal (Recurso Extraordinário no 636331-RJ) não se aplica a todo e qualquer caso de transporte aéreo, mas apenas e tão somente aos que envolvem transportes de passageiros e extravios de bagagens.

E com base na mesma afirmação, faço outra, ainda mais convicta que a anterior: referida decisão não se aplica aos casos de transportes aéreos internacionais de cargas ou, se eventualmente aplicável, com efeitos parciais e diferentes.

O transporte aéreo de passageiros e os extravios de bagagens não se confundem com os transportes aéreos de cargas e as faltas e avarias, inexecuções de obrigações de resultado. Situações jurídicas absolutamente distintas e que, portanto, merecem tratamentos também distintos.

A decisão em destaque foi proferida em ação ajuizada por importante empresa transportadora aérea transnacional e seu bem da vida foi o transporte aéreo de passageiros e o problema crônico dos extravios de bagagens.

Contrariando a orientação dominante há alguns anos no Superior Tribunal de Justiça no sentido de ser aplicado aos casos comentados o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a norma legal orientadora dos mesmos casos é a Convenção de Montreal.

Na mesma decisão, o Supremo Tribunal Federal acatou o pedido da transportadora aérea relativamente à limitação de responsabilidade, também chamada de limitação tarifada, prevista na Convenção de Montreal.

Antes de fundamentar os motivos pelos quais acredito não ser a limitação tarifada compatível com a ordem constitucional e o sistema legal brasileiro como um todo, reconheço certa razão ôntica na sua incidência excepcional, extraordinária, nos extravios de bagagem, justapondo-se ao princípio da proporcionalidade.

Explico: os conteúdos das bagagens extraviadas raramente são documentados e com valores comprováveis, sendo necessário o constante emprego da boa-fé objetiva nas declarações dos passageiros. Infelizmente, dói reconhecer, poucos são os passageiros verdadeiramente sinceros quanto aos bens e respectivos valores, o que invariavelmente gera insegurança aos transportadores.

Por mais condenável que seja o extravio de uma bagagem, também não pode o fato servir como trampolim para a obtenção de vantagem econômica indevida.

Assim, justificável, em parte e de certo modo, apenas no caso de extravio de bagagem, a incidência de uma norma limitadora de responsabilidade.

Não é, todavia, a mesma razão de ser dos transportes de cargas, pois os valores destas são rigorosamente documentados, submetidos à apreciação de órgãos públicos alfandegários e previa e formalmente conhecidos pelos transportadores, pouco importando a modalidade de frete pago para um dado transporte, ou seja, se “ad valorem” ou não.

De qualquer forma, feita a pontuação necessária a respeito da excepcionalidade justificadora da limitação tarifada em extravios de bagagens, tem-se que é irrelevante, para os transportes aéreos de cargas, a incidência da Convenção de Montreal em detrimento da legislação consumerista, pois os contratos respectivos de tal modalidade de transporte são regulados pelo Código Civil, na parte do Contrato de Transporte.

Além disso, não se questiona a vigência e aplicação da Convenção de Montreal, mas, sim, sua correta superposição aos fatos dos casos concretos. Isso porque a própria Convenção dispõe que a norma que trata da limitação tarifada da responsabilidade do transportador aéreo só tem vigência quando concorrentes duas situações: 1) acidente de navegação e/ou 2) ausência de culpa grave.

Explicando melhor:

A decisão de repercussão geral foi, como já se disse, proferida em um caso envolvendo transporte internacional aéreo de passageiros e extravio de bagagens.

Os casos concretos mais interessantes e em disputas judiciais sobre transporte aéreo internacional não são os de passageiros e extravios de bagagens, mas os protagonizados por importantes empresas e com faltas e avarias de cargas.

Eis meu modesto objetivo, comentar brevemente algo que faz parte do meu cotidiano profissional: o transporte internacional aéreo de carga e inadimplemento da obrigação de resultado assumida pelo transportador aéreo por desídia operacional e incúria administrativa.

Como disse antes, considero compreensível, em certa medida, a aplicação da limitação tarifada em casos de extravios de bagagens porque quase sempre não é possível determinar o que de fato existe no interior de uma mala. Isso faz com que a limitação tarifada assuma o caráter de um ponto de equilíbrio entre o direito do passageiro e a proteção da empresa de transporte aéreo contra possíveis abusos.

Mas em um caso do transporte aéreo internacional de carga tal dinâmica não faz sentido, porque toda carga tem valor líquido e certo, documentalmente comprovado e previamente conhecido pelo transportador aéreo, haja ou não, vale a pena repetir, o pagamento do chamado frete “ad valorem”.

Logo, impossível se falar em eventual insegurança ou possível abuso da vítima de um dano e, portanto, sem sentido a eventual aplicação de qualquer critério limitador de responsabilidade do causador de um ato ilícito, ainda que contratual.

Limitar a responsabilidade ao peso da carga é esvaziar o direito da vítima de um dano e premiar a falta contratual. Pode-se dizer ainda que a limitação de responsabilidade é um salvo-conduto às boas práticas comerciais.

Imagine-se uma carga de produtos eletrônicos, microssistemas complexos. Essa carga não pesará mais do que cinco quilos, mas o seu valor ultrapassará a casa dos milhões de reais. O critério da tarifação fará com que a transportadora aérea pague apenas poucos milhares de reais pelo prejuízo enorme que ela causou.

Inegável a injustiça contida nessa fórmula e o prejuízo à ser suportado não só pela parte imediatamente interessada, vítima do dano, mas por toda a sociedade brasileira, uma vez que inegável o impacto nas divisas nacionais.

Esse critério ofende, se aplicado indiscriminadamente, o princípio da reparação integral, previsto expressamente no art. 944 do Código Civil.

Não é exagero dizer que a critério também ofende a garantia fundamental da reparação civil ampla e integral, prevista no art. 5º, V, da Constituição Federal, perfeitamente aplicável aos casos em geral de responsabilidade civil.

Importante lembrar que a norma da limitação tarifada prevista na Convenção de Montreal tem sua origem na Convenção de Varsóvia, do início do século passado. Esta Convenção foi praticamente bisada por aquela.

No século passado havia algum sentido em se falar em limitação tarifada a fim de proteger a “indústria” da navegação aérea, então em fase embrionária.

As empresas aéreas, então, trabalhavam sob o manto de enormes riscos e a tecnologia não garantia níveis de segurança confiáveis.

Hoje, o mercado de transportes aéreos de pessoas e cargas é um dos mais prósperos e pujantes do cenário econômico mundial, informado por alta tecnologia, com protocolos de segurança excelentes e que opera sob o signo do “risco zero”.

Logo, há um anacronismo umbilical na referida norma, fazendo-a sem sentido, sobretudo quando confrontada com a teoria tridimensional do Direito do saudoso professor Miguel Reale.

Motivos, portanto, não faltam para justificar a afirmação que a decisão de repercussão geral não se ajusta ao transporte de carga, assim como, ajustando-se ou não, impossível o reconhecimento da limitação de responsabilidade.

Quem causou um dano tem o dever de repara-lo plenamente, não só em homenagem ao princípio da reparação integral, mas, também, em respeito ao postulado do “neminem laedere”, que dispõe que a ninguém é dado causar dano a outrem e o dano causado necessita ser compensado, reparado, punido.

De todo o modo, ainda que venha a ser aplicada a decisão ao transporte aéreo de carga, é preciso que seu conteúdo seja devidamente adequado às particularidades de cada caso concreto.

O que isso significa? Simples, significa que há de se observar algo muito importante, ou seja, as corretas interpretação e aplicação da Convenção de Montreal em relação ao transporte internacional aéreo de carga.

Com efeito! Há um lugar-comum que precisa ser imediatamente corrigido pela comunidade jurídica.

Explica-se: o fato de a Convenção de Montreal ser aplicável a um caso concreto não significa, necessariamente, que a limitação tarifada também o será!

Isso porque a própria Convenção diz, expressamente, que a limitação tarifada somente é cabível quando o sinistro decorrer de acidente aéreo de navegação, ou seja, desastre.

E a Convenção ainda acentua que será aplicável em tal caso desde que não haja culpa grave do transportador.

Então, o que se tem é que a limitação tarifada, segundo a Convenção de Montreal, só pode ser reconhecida e aplicada se se tratar de um desastre aéreo e desde que não se apure a ocorrência de culpa grave por parte do transportador.

Daí o alegado “topói” jurídico, pois não são poucos os advogados e juízes que entendem, equivocadamente, que a adoção da Convenção de Montreal implica, sempre, a incidência da limitação de responsabilidade.

Não, não implica e é um equívoco severo que ainda insiste em se fazer presente no cotidiano forense brasileiro.

Por isso, a necessidade de mais uma afirmação convicta, cevada não nos silos da vaidade acadêmica, mas no barro do trabalho na linha de frente da advocacia: a limitação tarifada prevista na Convenção de Montreal não se aplica aos casos de meros inadimplementos contratuais de transportes de cargas, isto é, os casos relativos às faltas e avarias, uma vez, convém repetir, que a norma que a dispõe se volta aos desastres aéreos, desde que não informados pelo conceito de culpa grave.

Ora, poucos são os casos envolvendo transportes aéreos internacionais de cargas nascidos de desastres, o que, aliás, é algo muito bom e a ser festejado. A esmagadora maioria dos litígios envolvendo o assunto nascem de algo que é mais próprio do Direito Civil brasileiro do que do Direito Internacional: a inexecução de obrigação de resultado.

Assim, não importa qual a fonte legal aplicável para o esquadrinhamento da responsabilidade civil do transportador aéreo de carga, pois a própria Convenção de Montreal não autoriza a incidência de limitação de responsabilidade em favor do transportador em caso de mero inadimplemento contratual.

Mesmo sem se remeter à garantia constitucional da limitação de responsabilidade ampla e completa ou ao princípio da reparação civil integral, tem-se que é a Convenção de Montreal mesma que aponta quais são os casos que podem e quais os que não podem ser submetidos à reparação tarifada.

Os casos que são caracterizados pela culpa em sentido estrito, os casos de faltas e avarias de cargas, os casos marcados pela ofensa ao dever geral de cautela e à cláusula de incolumidade, bem como os anelados pela culpa “in vigilando” ou a culpa “in custodiendo” não são submetidos a qualquer tipo de limitação.

O caso que tratar da desídia do transportador que não cumpriu fielmente a obrigação de resultado assumida, causando danos e prejuízos, não é passível da subsunção da limitação de responsabilidade, ainda que disciplinado pela Convenção de Montreal. Essa falta contratual, típica da ideia de “faute du service”, não pode ser albergada de forma alguma com qualquer tipo de benefício, aliás.

Muito aproveita lembrar que, não raro, o autor de uma ação contra o transportador aéreo que descumpriu o contrato de transporte e causou danos à carga que se lhe foi confiada é um segurador que indenizou seu segurado e se sub-rogou em sua pretensão original, adquirindo o direito de buscar o ressarcimento em regresso daquilo que efetivamente pagou, conforme o art. 986 do Código Civil.

A lei autoriza isso e o Supremo Tribunal Federal pacificou o tema no enunciado de Súmula nº 188.

Assim, ainda que fosse cabível a limitação tarifada em relação do dono da carga, ela não poderia (como não pode) ser direcionada em desfavor do seu segurador, sob pena de ofensa ao conceito de sub-rogação e ao conteúdo da Súmula do próprio Supremo Tribunal Federal.

Quando se tem a sub-rogação do contrato de seguro ou a de qualquer outro meio (art. 934 do Código Civil), a análise de um caso se avoluma em importância e o tratamento é diferenciado em alguns pontos, pois não pode aquele que se sub-rogou ser prejudicado por conta de normas voltados ao antigo credor ou, mesmo, atos quaisquer deste.

Mesmo porque, o que há de ser considerado em primeiro lugar é a punição do causador do dano, o dever de reparação integral e o primado da Justiça.

Felizmente, o modesto, mas seguro, entendimento ora defendido já recebeu guarida do Poder Judiciário. Falo de um caso concreto no qual postulei em favor de segurador de carga legalmente sub-rogado.

No dia 25 de julho de 2017, a Douta 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar um caso de inadimplemento de contrato de transporte aéreo de carga, envolvendo a UnibancoAIG Seguros S.A. e a AIRFRANCE – Compagnie Nationale Air France, nos autos do recurso de apelação nº 9121554-70.2005.8.26.000 (991.05.022140-0), reconheceu a decisão do Corte Suprema com o selo de repercussão geral, mas não aplicou a limitação tarifada, fundamentando sua decisão com os mesmos argumentos ora expostos.

Antes mesmo da decisão em comento do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão muito importante sobre o assunto, deixando claro que, a despeito da incidência ou não da legislação consumerista, a limitação tarifada não tem guarida no ordenamento jurídico brasileiro.

O voto do Ilustre Ministro Bellizze, afirma, entre outros excelentes fundamentos, que a limitação tarifada, instituída pela antiga Convenção de Varsóvia e bisada pela de Montreal, já não mais se justifica pela atual configuração do transporte aéreo atual, sendo algo descompassado e, portanto, não aplicável, ao melhor gosto de teoria tridimensional do Direito.

Falo, especificamente, da decisão proferida no Recurso Especial 1289629/SP, que, mesmo reconhecendo a incidência da Convenção de Montreal (Varsóvia) nos transportes aéreos internacionais de cargas, não aplicou a limitação tarifada em favor do transportador aéreo que atuou com desídia operacional e descumpriu de obrigação contratual de resultado.

Referida decisão há de ser cotejada com a de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal a fim de proporcionar o correto entendimento para casos de transportes aéreos de cargas.

Parte do conteúdo do “Decisum” merece especial destaque:

“1. A jurisprudência desta Corte Superior perfilha, atualmente, o entendimento de que, estabelecida relação jurídica de consumo entre as partes, a indenização pelo extravio de mercadoria transportada por via aérea deve ser integral, não se aplicando, por conseguinte, a limitação tarifada prevista no Código de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia. Dessa orientação não se dissuade. Todavia, tem-se pela absoluta inaplicabilidade da indenização tarifada contemplada na Convenção de Varsóvia, inclusive na hipótese em que a relação jurídica estabelecida entre as partes não se qualifique como de consumo, especialmente no caso em que os danos advindos da falha do serviço de transporte em nada se relacionam com os riscos inerentes ao transporte aéreo.

2. O critério da especialidade, como método hermenêutico para solver o presente conflito de normas (Convenção de Varsóvia de 1929 e Código Brasileiro de Aeronáutica de 1986 x Código Civil de 2002), isoladamente considerado, afigura-se insuficiente para tal escopo. Deve-se, ainda, mensurar, a partir das normas em cotejo, qual delas melhor reflete, no tocante à responsabilidade civil, os princípios e valores encerrados na ordem constitucional inaugurada pela Constituição Federal de 1988. E inferir, a partir daí, se as razões que justificavam a referida limitação, inserida no ordenamento jurídico nacional em 1931 pelo Decreto n. 20.704, encontrar-se-iam presentes nos dias atuais, com observância ao postulado da proporcionalidade.

3. A limitação tarifária contemplada pela Convenção de Varsóvia aparta-se, a um só tempo, do direito à reparação integral pelos danos de ordem material injustamente percebidos, concebido pela Constituição Federal como direito fundamental (art. 5º, V e X), bem como pelo Código Civil, em seu art. 994, que em adequação à ordem constitucional, preceitua que a indenização mede-se pela extensão do dano. Efetivamente, a limitação prévia e abstrata da indenização não atenderia, sequer, indiretamente, ao princípio da proporcionalidade, notadamente porque teria o condão de esvaziar a própria função satisfativa da reparação, ante a completa desconsideração da gravidade e da efetiva repercussão dos danos injustamente percebidos pela vítima do evento. (...)”

(...) Reprisa-se, no ponto, o entendimento de que as razões pelas quais a limitação da indenização pela falha do serviço de transporte se faziam presentes quando inseridas no ordenamento jurídico nacional, em 1931, pelo Decreto n. 20.704, não mais subsistem nos tempos atuais. A limitação da indenização inserida pela Convenção de Varsóvia, no início do século XX, justificava-se pela necessidade de proteção a uma indústria, à época, incipiente, em processo de afirmação de sua viabilidade   econômica   e   tecnológica,   circunstância   fática inequivocamente insubsistente atualmente, tratando-se de meio de transporte, estatisticamente, dos mais seguros. Veja-se, portanto, que   o tratamento especial e protetivo então dispensado pela Convenção de Varsóvia e pelo Código Brasileiro de Aeronáutica ao transporte aéreo, no tocante a responsabilização civil, devia-se ao risco da aviação, relacionado este à ocorrência de acidentes aéreos.

(grifos meus)

Ela, a limitação tarifada, foi criada em um tempo em que a “indústria” dos transportes aéreos estava em fase inicial, reclamando especiais proteções e imersas em muitos riscos. Hoje, repito o que disse antes, trata-se de um setor econômico-financeiro poderoso e bem estabelecido, absolutamente seguro, pouco sujeito aos grandes acidentes de navegação e informado pelos melhores meios tecnológicos e protocolos de segurança, a ponto de ser o único meio de transporte que opera sob o manto do conceito de “risco zero”. Diante disso, não há mais razão de ser da chamada limitação tarifada, tratando-se de algo anacrônico e injusto, algo que fere de morte a garantia constitucional fundamental de reparação civil ampla e integral.

Concluo entendendo que:

  • a decisão de repercussão geral do Supremo Tribunal reconhecendo a primazia da Convenção de Montreal não se aplica aos casos de transportes aéreos internacionais de cargas;
  • se eventualmente aplicável aos casos de transportes aéreos de cargas, importante compreender corretamente seu conteúdo que dispõe expressamente que a limitação tarifada somente cabe em casos de desastres aéreos e sem qualquer tipo de culpa por parte dos transportador, mas não aos casos de meros inadimplementos contratuais, faltas e avarias;
  • a limitação de responsabilidade é algo anacrônico, pois não mais se justifica sua existência, porquanto pequenos os riscos dos transportes aéreos e enormes os ganhos dos transportadores;
  • o ordenamento jurídico brasileiro é refratário ao conceito de limitação de responsabilidade, uma vez que ele contrasta com o princípio da reparação integral do art. 944 do Código Civil e, mesmo, a garantia constitucional fundamental da reparação ampla e plena;
  • em se tratando de litígio protagonizado por segurador legalmente sub-rogado na pretensão original do dono da carga afetada pelo transportador, a limitação tarifada ainda se revela mais inadequada, pois o segurador tem o direito de reaver integralmente o que pagou ao segurado à título de indenização de seguro, conforme o art. 986 do Código Civil e o enunciado de Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal.

Em suma, com ou sem a decisão de repercussão geral em destaque e mesmo que se tenha como única fonte legal a Convenção de Montreal para os casos de transportes aéreos internacionais de cargas, a limitação de responsabilidade jamais será aplicável em favor dos transportadores se se constatar sua culpa grave ou se não se tratar de casos de acidentes de navegação, desastres.

Trata-se não só de uma questão de ordem jurídica, mas também moral, que aquele que causou um dano tem o dever de repara-lo integralmente, sob pena de intolerável inversão de valores e premiação indevida do causador de ato ilícito.