Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Coordenador da Cátedra de Transportes da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP).

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Transporte Marítimo | Limitação de responsabilidade

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O advogado especializado em Direito do Seguro e Direito dos Transportes (Marítimo), Paulo Cremoneze escreve sobre recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) em reconhecer a limitação de responsabilidade no transporte internacional marítimo de carga em litígio de ressarcimento entre segurador e armador.

1. Não há motivo para preocupação. Aprendi com o tempo de advocacia que decisões não devem nos animar ou desanimar de forma definitiva. Tudo muda nesta vida, incluindo os entendimentos do Poder Judiciário. Decisões que aplicam a limitação de responsabilidade no transporte marítimo são poucas. A jurisprudência é amplamente favorável ao ressarcimento integral. Nada mudou com a decisão, que pode ser considerada quase isolada. Certamente os advogados que defendem armadores farão uso dela nos litígios em curso e os ainda por serem demandados. Isso, porém, não preocupa, muito menos assusta. Os escritórios que defendem as seguradoras fazem a mesma coisa com as decisões favoráveis ao mercado. Isso faz parte da dialética do direito.

2. Lembro que nem mesmo Tema de Repercussão Geral, o 210, foi capaz de sepultar a questão do ressarcimento integral contra a limitação tarifada e isso em um modo de transporte que conta com Convenção Internacional incorporada ao sistema legal brasileiro e que prevê o frete ad valorem. Se tema de repercussão geral e norma convencional internacional com força de lei não inibem o ressarcimento integral em todos os casos, não será mera, embora respeitável, decisão judicial que o impedirá em situações que sequer contam com amparo de norma legal.

3. O Brasil não introduziu em seu sistema legal qualquer convenção internacional de direito marítimo. Mesmo a de Hamburgo, dos anos setenta do século passado, que foi assinada, não chegou a ser convertida em lei, razão pela qual não projeta efeitos jurídicos no país. Isso significa que a limitação tarifada e o frete ad valorem no transporte marítimo, ao contrário do aéreo, são meramente contratuais, não normativos. Logo, pesos absolutamente distintos e maior dificuldade de suas incidências.

4. Os doutrinadores e os magistrados brasileiros entendem, de forma geral, que a cláusula de limitação tarifada no Bill of Lading (ou qualquer instrumento que evidencie o contrato internacional de transporte de carga) – até por ser negócio jurídico de adesão – é abusiva, porque imposta unilateralmente pelo armador, sem ampla negociação com o dono da carga, usuário do serviço de transporte, que não externa livremente sua vontade. A natureza abusiva, diga-se, ilicitude, também se revela pela afronta ao princípio da reparação civil integral, de que trata o art. 944 do Código Civil, cuja gênese, por sua vez, se encontra no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais constitucionais.

5. Ainda que se queira emprestar, em nome de contratualismo absoluto (conceito que não vigora no Brasil, felizmente), validade à cláusula que impõe unilateralmente a limitação de responsabilidade, tem-se sua ineficácia perante o segurador sub-rogado, por força do que expressamente determina o art. 786, 2º, do Código Civil. O segurador não é parte do contrato de transporte, logo não pode ser obrigado a seguir seus termos. Seu direito não deriva do inadimplemento da obrigação de transporte, porém do pagamento de indenização de seguro ao dono da carga, vítima original do dano protagonizado pelo transportador marítimo (a rigor, um armador). O direito de regresso é amplo, é sumulado pelo STF e se conecta diretamente à saúde do contrato de seguro, especialmente revestido de interesse social, não apenas por causa do princípio do mutualismo (o colégio de segurados que todo segurador defende), mas por causo do bem comum. A ninguém interessa o esgarçamento do negócio de seguro, base comum de segurança econômico-jurídica.

A suma da síntese é: nenhuma decisão contrária ao direito de regresso amplo e integral é agradável, mas nem mesmo um par delas é causa de tormento ou de rompimento de paradigmas. Ao menos neste momento não existe causa justificante para temores. A regra é o ressarcimento do valor indenizado ao segurado; o reconhecimento da limitação tarifada é exceção (e que se ponha peso de bigorna e valor de ouro, aqui, na palavra exceção). No que tange aos litígios de ressarcimento fundados no transporte marítimo internacional de carga, no seguro do embarcador, “tudo continua como antes no quartel de Abrantes”. Qualquer movimento contrário do que se tem feito até então será precipitado e se alinhará bem à famosa peça de Shakespeare “Muito barulho por nada”.

De todo o modo, por excesso de cautela, ouso sugerir algo, fazendo-o com máxima delicadeza e sabendo, de antemão, possíveis dificuldades operacionais e sensíveis implicações comerciais: muito oportuno e interessante seria diálogo mais robusto entre seguradores, corretores de seguros, importadores e exportadores de mercadorias (cargas) a fim de se pensar no frete ad valorem com maior intensidade. Por mais que seja considerado abusivo, economicamente traumático e fundamentalmente incompatível ao direito contemporâneo (que tanto defende o ressarcimento integral e a imputação ampla de responsabilidade dos protagonistas de danos, especialmente quando manejadores de fontes de riscos, protegendo-se, com isso, os legítimos interesses das vítimas), sua adoção liquidaria de vez toda discussão em torno da limitação de responsabilidade. Transportadores marítimos perderiam uma de suas matérias de defesa, resumindo-se todo e qualquer litígio de ressarcimento ao plano da demonstração do nexo de causalidade.

Considerando o espírito do Direito Colaborativo, deixo (insisto, com máxima delicadeza) a sugestão desse assunto merecer atenção dos profissionais do setor. Por oportuno, anexo alguns artigos e ensaios sobre a matéria da limitação de responsabilidade no transporte marítimo, todos ancorados no posicionamento jurisprudencial dominante com a esperança modesta de que possa ser de alguma forma úteis.

Fonte: Sincor-SP, em 29.07.2022