Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Coordenador da Cátedra de Transportes da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP).

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Protesto do recebedor: da não exigência da regra do art. 754 do Código Civil ao segurador da carga

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Inalterado o dever do segurado, proprietário e/ou dono da carga de apresentar o protesto cabível ao transportador em caso de falta ou de avaria

O Protesto do recebedor, previsto no art. 754 do Código Civil, é um dos temas mais polêmicos do Direito dos Transportes, especialmente no tocante ao Direito do Seguro.

Isso porque não o apresentar, ou fazê-lo intempestivamente, é algo que poderá implicar decadência do direito.

A palavra “poderá” não é aqui usada à toa, porque a decadência nem sempre se impõe em tais casos.

Em verdade, a interpretação do art. 754 do Código Civil leva em consideração tudo o que foi criado pela doutrina e pela jurisprudência. E isso desde o tempo em que o protesto do recebedor ainda se disciplinava pelo art. 756 do Código de Processo Civil de 1939, mantendo-se em vigor o mesmo conteúdo pelo Código de Processo Civil de 1973, art. 1.218, XI.

Dito isso, em que pesem discordâncias respeitáveis, a decadência de direitos não se opera quando há outro meio de prova substancialmente hábil para comprovar, com segurança, a culpa do transportador de carga por eventuais faltas ou avarias.

Reconhecemos que a afirmação acima não é uníssona nos meios jurídicos, mas se torna cada dia mais forte. Até mesmo em homenagem a um passado não muito distante.

Mas, se ainda há sincera dúvida e acaloradas discussões sobre o que antes se afirmou, dúvida alguma há em relação ao que ora se expõe com convicção e forte ancoragem jurisprudencial: 1) instrumentos como o termo de faltas e avarias (transporte marítimo), o Siscomex-mantra (transporte aéreo) e os boletins de ocorrência (transporte rodoviário), entre outros, fazem as vezes do protesto do recebedor; 2) o protesto lançado contra um dos participantes da cadeia logística de transporte aproveita a todos os demais; e 3) não se exige o protesto do recebedor quando a apuração do dano for realizada no exterior.

Essas três afirmações são muito sólidas. Oferecem ajuda substancial em litígios com transportadores de carga.

Assim, de uns tempos para cá, tenho defendido que a regra do art. 754 do Código Civil não produz efeitos em relação aos seguradores de carga, mas somente aos seus consignatários e proprietários.

Considerando que muitas vezes os reclamantes de faltas e avarias são seguradores sub-rogados na pretensão original dos segurados, consignatários e donos de carga, não havendo protesto ou sendo ele intempestivo no caso concreto, incogitável será a decadência de direito.

Ainda que por equiparação e por equidade, advogamos isso com base no § 2º, do art. 786 do Código Civil, o qual dispõe basicamente que nenhum ato do segurado pode de algum modo extinguir ou prejudicar o direito de regresso do segurador contra o causador do dano.

E por “nenhum ato” também se deve entender o de índole omissiva.

Mesmo que o dono da carga extraviada ou avariada, total ou parcialmente, não apresente o protesto contra o transportador, ainda assim subsistirá o direito de regresso do segurador.

Nenhuma indenização de seguro é paga sem a devida regulação do sinistro, sem a perfeita caracterização de um dano decorrente de risco previsto na apólice.

A única ressalva se mostra para o caso em que o segurador sub-rogado, não apresentando o protesto do segurado, ou fazendo-o de modo imperfeito, seja obrigado a provar a culpa em sentido estrito do transportador, a despeito do signo da responsabilidade civil objetiva que decorre do inadimplemento de obrigação contratual de resultado.

O fato é que vem ganhando cada vez mais fôlego no Poder Judiciário a tese segundo a qual é desnecessária a apresentação do protesto pelo segurador sub-rogado. Inicialmente polêmica, hoje essa tese constitui uma forte tendência jurisprudencial.

Nem poderia ser diferente, eis que se trata de algo coerente, assentado no Direito Natural, na ordem moral e no melhor conceito de justiça de todos os tempos, o de Justiniano —segundo o qual justiça é, acima de tudo, dar a cada um o que é seu. Ousamos ainda afirmar que essa inteligência se ajusta muito bem aos princípios informadores gerais do Direito, alguns tidos como garantias fundamentais constitucionais, como os da isonomia, proporcionalidade, razoabilidade e equidade.

Uma rápida pesquisa jurisprudencial já comprova o que aqui se afirma com peso de bigorna e valor de ouro.

Nesse sentido, recente decisão da 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação nº 1100248-55.2017.8.26.0100, em que advogamos pelo segurador contra o transportador, com voto da relatoria do excelentíssimo Desembargador José Wagner de Oliveira Mellato Peixoto, cuja ementa afirma: “ (...) O artigo 754, parágrafo único, do Código Civil não se aplica à seguradora, mas somente à transportadora – Incidência do CC, artigo 786 – Precedentes do STJ e do TJ (...)”.

Importante notar que a ementa faz menção expressa aos precedentes do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o mais importante da América Latina, e ao Superior Tribunal de Justiça, donde é possível inferir que a tendência jurisprudencial de fato é pela não vinculação do segurador de carga ao art. 754 do Código Civil.

Prossegue o V. Acórdão, em sua fundamentação, citando decisão recente do Superior Tribunal de Justiça, de 13 de junho de 2018, de relatoria da eminente Ministra Maria Isabel Gallotti, nos Embargos de Declaração em Recurso Especial nº 1.207.435-SP: “tal dispositivo somente diz respeito às relações entre transportador e o destinatário da carga, não se aplicando à seguradora, cujo direito de regresso é disciplinado pelo art. 786 do mesmo diploma legal. O comando normativo em tela aplica-se entre a transportadora e a destinatária e não com a seguradora, como pretende a embargante. É que a seguradora por óbvio carece de interesse em reclamar eventuais avarias da carga, pois pretende sub-rogar-se no direito ao ressarcimento contra o responsável pelo sinistro. Desse modo, a seguradora não está sujeita ao prazo decadencial de dez dias, se a própria lei fixa prazo de um ano para que o segurado se volte contra o segurador e vice-versa, consoante os termos do art. 206, § 1º, II, do Código Ciivl”.

Levando-se em elevada conta o conceito amplo de jurisprudência – defendido por Pontes de Miranda –, que dispõe que qualquer decisão judicial, ainda que emanada de órgão monocrático, já se encaixa nesse mesmo conceito, muito aproveita destacar a decisão proferida noutro caso, em que atuamos na defesa do segurador contra o transportador de carga, de 12 de novembro de 2018, da lavra do respeitável Juiz de Direito Tanit Adrian Perozzo Daltoé, que em parte da fundamentação declara: “(...) é assente o entendimento que, em se tratando de ação de regresso, à seguradora não oponível essa prescrição, vez que submetida ao preceito do art. 786 do Código Civil.”. [2ª Vara Cível de Itajaí, Santa Catarina, Autos nº 0305756-81.2014.8.24.0033].

Interessante notar que no corpo da mesma decisão o Douto Juiz reproduz a ementa da decisão colegiada paulista, da relatoria do eminente Desembargador José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto, que antes mencionamos como importante fonte do entendimento aqui defendido.

Em síntese, mostra-se cada vez mais indiscutível que, estando ausente o protesto do recebedor ou sendo ele intempestivo, não há decadência de direito para o segurador sub-rogado.

Pois bem.

Diante disso, a pergunta que se faz é: poderá o segurador negar o pagamento da indenização ao segurado, consignatário ou dono de carga, que não apresentar o protesto do recebedor competente?

A resposta segura é: sim!

Não se trata de casuísmo ou de dupla medida para um mesmo peso. Longe disso. Trata-se apenas de boa hermenêutica jurídica, respeitando a ontologia dos fatos.

Contudo, é preciso dizer que, ainda que forte, uma tendência jurisprudencial não é certeza absoluta. Isso não pode ser ignorado.

Além disso, um eventual benefício jurisprudencial ao segurador litigante não implica um salvo-conduto ao segurado. Não permite que este descumpra seus deveres legais e contratuais.

Trata-se de norma contratual, com desenho também legal. O segurado simplesmente não pode prejudicar o direito de regresso do segurador. Tampouco pode colocá-lo em risco de modo deliberado. Logo, deixar de apresentar o protesto ainda é, de certa forma, expor a risco esse mesmo direito de regresso.

É imperativo o dever do segurado em apresentá-lo formal e tempestivamente. Não há nesse ponto qualquer relativização.

Evidente, porém, que o segurador poderá dimensioná-lo com maior ou menor rigor, a depender das circunstâncias particulares do caso concreto, levando-se em conta ainda a caracterização da falha do segurado como falta escusável ou inescusável. Mas esse poder é exclusivamente do bom e justo arbítrio do segurador. Não configura direito subjetivo do segurado.

Os corretores de seguro têm de instruir os segurados a zelar pela apresentação dos protestos cabíveis contra os transportadores. Até porque, em casos de negativa de cobertura, é contra eles correrá a figura da decadência de direito.

Deste modo, a situação jurisprudencial aqui exposta em nada altera o dever do segurado. Deve ele ainda apresentar o protesto do art. 754 do Código Civil.

A única novidade diz respeito à não exigência de sua apresentação ao segurador sub-rogado em litígio com o transportador desidioso.

Razões ontológica distintas que, embora interligadas em certa medida, exigem respostas jurídicas também distintas.