Paulo Henrique Cremoneze

Paulo Henrique Cremoneze

Advogado, Especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), Mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade Católica de Santos, acadêmico da Academia Brasileira de Seguros e Previdência, diretor jurídico do Clube Internacional de Seguros de Transportes, membro efetivo da AIDA – Associação Internacional de Direito de Seguro, do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da IUS CIVILE SALMANTICENSE (Universidade de Salamanca), presidente do IDT – Instituto de Direito dos Transportes, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros, associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), autor de livros de Direito do Seguro, Direito Marítimo e Direito dos Transportes, pós-graduado em Formação Teológica pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (Ipiranga), hoje vinculada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos. Laureado pela OAB-SANTOS pelo exercício ético e exemplar da advocacia. Coordenador da Cátedra de Transportes da Academia Nacional de Seguros e Previdência (ANSP).

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A sub-rogação e o ressarcimento integral no seguro internacional de transporte marítimo de carga: invalidade e a ineficácia das cláusulas limitativas de responsabilidade dos transportadores e a experiência jurídica brasileira

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O enfrentamento do dirigismo contratual e das cláusulas manifestamente abusivas

(*) Artigo originalmente publicado no site Conjur

Abstrato: Este artigo trata do direito de regresso dos seguradores de carga em face dos transportadores marítimos, com respeito ao princípio da reparação civil integral. O Brasil não incorporou nenhuma Convenção Internacional de Direito Marítimo ao ordenamento, e isso faz uma diferença positiva. A defesa da reparação civil integral funda-se não só no Direito Positivo, mas também no Direito Natural e na ordem moral. No mundo de hoje, fortemente marcado pela potencialização de danos e riscos, são inadmissíveis as disposições normativas para limitar a responsabilidade dos que causam prejuízos. Quando concedidas ao transportador, esvazia-se o direito do segurador, prejudicando os legítimos interesses do colégio de segurados e da sociedade em geral. À luz disso, o ordenamento jurídico brasileiro é um dos melhores a tratar deste tema.

Palavras chaves: Seguro de Transporte Internacional. Limitação de Responsabilidade. Direito do Seguro. Direito Marítimo. Direito de Danos. Transporte Marítimo. Responsabilidade Civil. Ressarcimento em regresso. Princípio da Reparação Civil Integral. Anacronismo Legal. Cláusulas Abusivas.

Abstract:This article deals with the right of full repair of cargo insurers vis-à-vis maritime carriers, while respecting the principle of full civil redress. Brazil has not incorporated any International Maritime Law Convention into its legal system and this makes a positive difference. The defense of full civil reparation is based not only on Positive Law, but also on Natural and moral order. In today's world, strongly marked by the potentialization of damages and risks, it is no longer possible to accept normative provisions that aim to limit the liability of the perpetrators of illicit acts that cause harm. Whenever the limitation of liability of a damage-causing carrier is allowed in any capacity, the subrogated insurer's right of recourse is void and the legitimate rights and interests of the whole college of insureds are impaired and somehow those of society. Considering all this, the Brazilian legal system is the one that best deals with this theme.

Keywords: International Transport Insurance. Limitation of Liability. Insurance Law. Maritime law. Damage Right. Sea transportation. Civil responsability. Reimbursement in return. Principle of Integral Civil Reparation. Legal anachronism. Abusive Clauses.

“De nuevo sobre la función de la responsabilidad civil

En la sección doctrinal del presente número de Práctica Derecho de daños publicamos um estúdio monográfico de la Professora María Dolores Casas Planes, que incide sobre un tema recurrente en los últimos tempos; recurrente, y muy controvertido: la función de la responsabilidad civil. En dicho trabajo, la autora defende (uma vez más, pues es sabido ya hay voces que lo han hecho antes, algunas muy autorizadas) la existência de una función punitiva en la responsabilidad civil, y la incorporación a nustro ordenamiento de los punitives damages. Y lo hace de manera coerente, bien documentada y con aportación de fundamentos y argumentos. Nos parece, por ello, uma interessante aportación científica a ka materia, y um nuevo punto de referencia en el debate que se viene manteniendo en âmbitos doctrunales y jurisprudenciales.”

(POMBO, Eugenio Llamas, “Reflexiones sobre Derecho de Daños: casos y opiniones”, Madrid: La Ley, p. 37)

A responsabilidade civil é um dos temas mais importantes do Direito do Seguro. Não há dúvida. Parte integrante do chamado Direito de Danos, é mesa para discussões intensas e debates acalorados. Um ramo em evolução constante; primeiro com as fontes mediatas, a Doutrina e da Jurisprudência, depois com a fonte imediata, a lei.

Dentro desse tema vastíssimo um subtema se destaca: a responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de carga. O que nos leva a destacar esse assunto que ultrapassa os limites do interesse puramente jurídico (se é que existe semelhante coisa) são também as razões históricas, econômicas e sociais que os enlaça. Não que outros temas não tenham também as suas; evidente que têm. Só carecem de certas peculiaridades distintivas, as quais, não obstante nada digam à primeira vista de especialmente interessante, num segundo passar de olhos, como nos clássicos da literatura que relemos com redobrado prazer, passam então a nos revelar, numa fenda despretensiosa, um abismo de nuances imprevistas.

Diferenciada, a natureza do contrato internacional de transporte marítimo de carga, seu influxo em outros segmentos pedem um estudo constante, voltado à praticidade e efetividade do exercício do Direito. Afinal, temos diante de nós uma atividade bastante ampla, que nos permite navegar não só pelo espaço, mas também pelo tempo.

O transporte marítimo de cargas preserva sua essência, sem deixar-se atropelar pelas mudanças; mas também não as rejeita; adapta-se a elas, toma-lhes o que convém e, ao fim, visto mais de perto, esse objeto de estudo, apalpado, sentido, farejado, permite que dele se extraia como que o odor da antiguidade, a praticidade do presente e a docilidade ao futuro.

Ora, fala-se hoje em uma nova cosmovisão do fenômeno jurídico, na necessidade de fazer uma leitura sistêmica, de tratar de forma diferenciada a responsabilidade civil, com novas expressões para os atos-fatos em geral. Sabendo disso, como encarar o estudo e a aplicação do Direito em relação a um negócio jurídico de caráter tradicional, mas sempre renovado; tão antigo e, ainda assim, tão novo?                

Por ocasião da exposição do tema “Nova Fronteira do Direito de Danos”, curso de especialização em Direito do Seguro da 45ª. Edição do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Salamanca, o grande professor colombiano Carlos Ignácio Jaramillo em sala de aula, no dia 19 de junho de 2019, disse o seguinte: “há um grande paradoxo, porque quando se fala em modernidade, fala-se em antiguidade; que na leitura do passado, encontram-se as raízes do presente e a visão segura do futuro”.

E não há como discordar. As coisas de fato são assim. É justamente o balanço entre presente e passado, o sopesar prudente de suas mais significativas distinções, que nos fornece as respostas para o futuro.

Segundo o professor, o Direito de Danos exige hoje “uma abordagem social, mais ampla e conectada ao constitucionalismo”. Abordagem especialmente cara quando se fala de responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de cargas em relação ao Direito do Seguro, notadamente a parte que trata do ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado na pretensão original do seu segurado, o dono da carga danificada durante um transporte imperfeitamente executado.

O objetivo aqui é, sobretudo, mostrar um fascinante paradoxo, despertar o interesse pelo improvável: um país que, a despeito de há tanto tempo se ver mergulhado em problemas sociais, pode realmente ser modelo de justiça num segmento tão complexo, como a responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de cargas e o dever de ressarcimento em regresso integral ao segurador sub-rogado; assuntos nos quais se unem, dedo a dedo, em inquebrantável vínculo de amizade, o Direito Marítimo, o Direito de Danos, o Direito Civil, o Direito Internacional Privado e o Direito do Seguro

E dizer que neste sentido o Brasil ostenta tão exemplar ordenamento não é coisa que se deva a patriotismos ou coisas do gênero. Absolutamente. A fé católica nos traz uma visão menos afeita a exageros patrióticos; instiga no peito do fiel um vislumbre da beleza que há na ideia de universalidade — desde que pela cruz. Além disso, a origem europeia nos faz conectados, pelo espírito dos tempos idos, ao mais importante dos continentes, como se fosse o nosso próprio.

Nossa motivação está fundada na racionalidade, no empirismo vital da profissão, na defesa dos princípios fundamentais do negócio de seguro e do princípio da reparação civil integral. E assim nesta matéria comungamos ao compasso duma liturgia da amplitude e integralidade da reparação civil, afigurando-nos inaceitável, e nada menos que inaceitável, a proteção dirigida justamente àquele que causa danos.

Outro detalhe a se trabalhar é a constatação de que o ressarcimento do segurador sub-rogado não finda em sua pessoa, residindo a função social da atuação no princípio do mutualismo.

Essas normas limitadoras podem o quanto queiram ser construções políticas ou econômicas. Mas não essencialmente jurídicas. Por chocar-se com o direito natural, por ferir o sentimento humano de justiça, acabam perdendo sua razão de ser, ainda que se enfeitem pelo pragmatismo do dia. Não que a política ou a economia não possa influenciar o Direito; evidente que podem, tanto é que acabam por fazê-lo em alguma medida. Só não podem ser o seu coração, o centro de sua existência.

Nesse contexto é de se enfrentar, com ânimo de legião romana, as chamadas cláusulas limitativas de responsabilidade presentes em contratos internacionais de transporte marítimo de cargas; enfrentamo-las, de gládio em punho, com base na experiência jurídica brasileira, a nosso ver mais saudável que as de outros ordenamentos jurídicos. Mesmo aqueles com tradição jurídica mais robusta e sólida. O sistema legal do Brasil não recepciona nenhuma Convenção Internacional de Direito Marítimo. E esse detalhe, esse magnífico dar de ombros às modas globalizantes, neste caso, mas não só nele, faz diferença no trato com a responsabilidade civil: cria uma blindagem frente à concupiscência politiqueira, não raro submissa a interesses menos nobres.

Porque as cláusulas unilaterais impostas por transportadores nesses instrumentos de adesão, que são os contratos de transporte marítimo, quando não tidas por abusivas, eivadas de assimetria jurídica, adquirem um irrespirável eflúvio de ineficácia, de invalidade ou, tão apenas, de nulidade. A visão brasileira permitiu tratar da responsabilidade civil do transportador com o rigor do equilíbrio. E então, marcada pelos princípios fundamentais do Direito e pela função social das obrigações, premia a vítima do dano ou o segurador dela, jamais o autor do ilícito.

O Brasil não reconhece o dirigismo contratual. Seu ordenamento, suas leis, suas decisões judiciais esvaziam o efeito dessas cláusulas, tiram-nas quase que à ponta da faca, porque, no caso do transporte marítimo, são estranhamente onerosas a embarcadores e consignatários de cargas, porém estranhamente benéficas a transportadores e afins. Cláusulas feito as de “eleição de foro”, de “compromisso” arbitral e de limitação de responsabilidade, por exemplo, não vigem no Brasil.

Longe de casuísmo jurídico, essa forma de encarar o Direito, já antiga no país, preserva também sua aptidão à vanguarda, ajustando-se como luva à mão ao modo como se deve interpretá-las ainda hoje. Justo é premiar o acesso à jurisdição, garantia constitucional fundamental em quase todos os sistemas legais do mundo ocidental, e o princípio da reparação civil integral, um dos principais objetos de estudo deste trabalho — senão o verdadeiro centro dele.

A coisa muda quando o protagonista do interesse é o segurador sub-rogado na pretensão original do dono da carga, segurado de apólice de seguro de transporte internacional de carga. Pois, se tal dinâmica já se ergue como uma clara injustiça em relação ao dono da carga, obrigado a aceitar a abusividade das disposições unilaterais do transportador, quem dirá ao segurador, que é nem parte do contrato de transporte, nem pôde anuir com nada.

Ela jamais lhe poderá ser oponível; primeiro porque isso seria simplesmente contrário à lei brasileira, simpática à ideia de voluntariedade, segundo porque a mera formulação da hipótese já aponta uma injustiça plena e radiante. Dois pontos que se desenrolarão nas linhas seguintes, ao jeito dum tecido que se desfaz.

É preciso dizer: nisso o sistema legal brasileiro é digno de reconhecimento. Defende, e muitíssimo bem, os princípios do mutualismo, da autonomia da vontade, do ressarcimento e da reparação civil integral. Faz do Brasil um país com uma abordagem do Direito Marítimo a qual, além de interessante em si mesma, se mostra, principalmente, como justa e orientada à luz de princípios como os da proporcionalidade, isonomia, equidade e razoabilidade, guiada por um aroma mais íntimo aos olfatos jusnaturalistas.

É a partir daí que trataremos do direito de regresso do segurador sub-rogado contra o transportador marítimo de cargas inadimplente. Sempre à vista do princípio da reparação civil integral, sempre mostrando a necessidade de tratar de maneira mais condizente com o Direito Atual os temas que ligam Direito de Danos, Direito Marítimo e Direito do Seguro, em reconhecimento à visão social no seio de uma sociedade marcada por danos e responsabilidades.

           

II. DO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE CARGA, DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR, DA SUB-ROGAÇÃO LEGAL E DO RESSARCIMENTO EM REGRESSO INTEGRAL.

“Es innegable la transcendencia e importância que el transporte tiene y depara para el tráfico, la economia y productividad, no solo regional y nacional sino sobre todo transfonteriza, actúe, como comprador o consumidor, como destinatário final de un produto, servicio, prestación, etc., transporte de personas, transporte de bienes o mercancias, contratos conexos, aunque independientes unos de otros y la vez interdependientes o entrelazados. Presente y pasado, pero sobre todo futuro en el transporte y seguro.”

(COPO, Abel B. Veiga, “Tratado del Contrato de Seguro”, 5ª. Edição, Tomo I, Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2017, p. 280)

Um dos ramos mais importantes, antigos e tradicionais do negócio de seguro é o do seguro internacional de transporte. E isso se deve à natureza do próprio transporte de cargas, atividade econômica importante, de caráter estratégico, já que é quase que impossível imaginar um comércio cujo funcionamento de modo geral prescinda de transporte.

Tão íntima é sua ligação com o negócio de transporte marítimo, que não seria exagero dizer que o negócio de seguro foi gerado por ele, nasceu de suas entranhas, carrega-lhe algo do código genético. Mas tem natureza adesiva, e isso o diferencia de seu progenitor. Descendo-lhe pelo corpo enxergam-se no contrato cláusulas de parcial determinação do transportador, unilateralíssimas, e disso nasce a desvantagem primordial a pairar sobre a embarcadores e consignatários de cargas.

Por outro lado, contrato com obrigação de fim, desenha-se a si mesmo à silhueta do resultado prometido pelo transportador, aquele que dará efetividade ao transporte e que, caso não o faça de maneira satisfatória, será cobrado por isso. Afinal, em caso de dano, falta ou extravio da carga, terá por presumida a sua responsabilidade pelo evento, competindo-lhe o ônus de provar a existência de alguma causa legal capaz de excluir o dever de reparar os prejuízos que causou — por ações ou pela falta delas.

Essa dinâmica, então, se forma a partir dos seguintes conceitos: 1) contrato de adesão; 2) obrigação de resultado; e 3) presunção legal de responsabilidade do transportador em caso de inadimplemento. Com precisão arquitetônica, esses alicerces jurídicos se replicam em praticamente todos os ordenamentos do mundo, dos quais não é exceção o brasileiro.

A diferença do ordenamento brasileiro para o de outros países reside no fato de aqui não haver adesão às convenções internacionais de Direito Marítimo. Nenhuma delas. Coisa curiosa, de fato. Mas essa posição diferente, estranha à primeira vista, revela-se significativa, segura e, em nosso modesto entender, verdadeiramente positiva.

De todos os países com atuação expressiva na economia global, entendemos que o Brasil é o que oferece melhor trato à dinâmica do contrato internacional de transporte de carga. E isso apesar dos problemas que lhe atravancam o funcionamento, das patologias que lhe sugam a forças vitais. Com a devida atenção dedicada às disposições legais e doutrinárias que se acham nela, a brasílica pátria, o eterno país do futuro, pode muito bem servir de exemplo presente à comunidade internacional.

Certo, posta a dinâmica do transporte marítimo de cargas, passemos então às cláusulas limitativas de responsabilidade. Pois bem, uma conclusão se antecipa: o Direito Brasileiro as julga ineficazes, ilegais ou tão apenas nulas de pleno direito. A razão? Geram assimetria na relação contratual, são imposições absolutamente descabidas.

O dono da carga transportada não manifesta sua vontade de modo livre, desimpedido. É obrigado a aderir ao que lhe manda o transportador, desejoso de proteger seus interesses, mesmo que ao custo de um desequilíbrio insuportável. Dessa maneira, se na relação entre ambos surgem cláusulas como a de limitação de responsabilidade, é preciso reconhecer que elas não mais se justificam mais. Nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista político. Servem apenas para contrariar o espírito do Direito e a Ordem Moral, ganhando o problema outro relevo quando visto pelas lentes do Direito do Seguro, do direito de sub-rogação e do princípio do ressarcimento integral.

Porque, pagando a indenização de seguro ao segurado (beneficiário), o segurador adquire o direito de buscar o ressarcimento em regresso contra o causador do dano e do prejuízo, por força do art. 786 do Código Civil, em cujo caput se diz: “Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”.

A redação do artigo é claríssima. Dispõe que o pagamento da indenização transfere ao segurador direitos e ações. E frise-se bem: não se deve fazer a mesma coisa com o ônus, do qual o artigo nada fala. Esse detalhe importa deveras porque, deixando de dispor sobre escolhas ruins que o segurado tenha tomado, atestam o aspecto especial da sub-rogação e o direito ao ressarcimento, figuras legais consagradas no Direito Civil e no Direito do Seguro do mundo todo. Sobre a importância invulgar da sub-rogação leciona o famoso jurista espanhol Abel B. Veiga Copo:

“La subrogación presenta, además, uma finalidad indirecta, a saber, evitar que el terceiro causante del daño pueda sustraerse a las consuecuencias jurídico económicas de su responsabilidade si al pagar o abonar la asseguradora el sinistro, este no tuviere la obligación de reparar el daño causado ante el imperio del principio indemnizatorio y el no enriquecimento del asegurado. La subrogatoria mitiga la liberación del responsable que de otro modo se esconderia en el contrato para no tener que reparar el daño infligido. Y el princípio indemnizatorio impede, mitiga a su vez que, em caso de que el danado asegurado decida reclamar directamente al terceiro reponsable, uma vez satisfecho o percebida la indemnización por parte del responsable, adolece de sentido la posibilidad de exigir a su vez la indemnización al assegurador al buscar uma transgresión del principio indemnitario y con él, um lucro o doble satisfación reparadpra por encima del daño real causado y efectivo.”

(COPO, Abel B. Veiga, “Tratado del Contrato de Seguro”, 5ª. Edição, Tomo I, Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2017, p. 1070)

O Direito brasileiro repete o que se passa praticamente em todo o mundo sobre o assunto.

Isso porque, antes mesmo da entrada em vigor do atual Código Civil, o sistema legal brasileiro já dispunha exatamente a mesma coisa, a ponto de que o assunto fosse alvo de Enunciado de Súmula do Supremo Tribunal Federal — a Súmula nº 188: “O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro”.

Logo, é preciso ter em mente as linhas constitucionais da sub-rogação.

Evidente que isso não impede que sofra ataques constantes em importância e dignidade. Não é particularidade de hoje essa militância que bate o pé inquieta, exigindo o esvaziamento do direito de regresso do segurador. Costuma fazê-lo por motivos que, embora às vezes divirjam entre si, são coerentes em sua portentosa inconsistência. Na verdade, nada pode relativizar a força do ressarcimento em regresso derivado da sub-rogação. Nem é razoável que o causador do prejuízo seja beneficiado pela previdência do segurado.

Ensina Veiga Copo que: “El terceiro tiene la obligación de reparar um daño que causa pero es resarcido en primeira instancia por la asseguradora del assegurado. Repara porque es responsable civilmente de la producción del sinistro. La asseguradora indemniza porque está obligada contractualmente a harcelo dentro de los perímetros del riesgo asumido.” (COPO, Abel B. Veiga, “Tratado del Contrato de Seguro”, 5ª. Edição, Tomo I, Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2017, p. 1070)

Em respeito ao contrato de seguro de carga, a seguradora indeniza ao dono da carga a integralidade dos danos que nela surgiram durante o transporte; e, por sua vez, armado pelo princípio indenizatório, passa a ter direito à busca por ressarcimento em regresso contra o transportador desidioso, exigindo dele não outra coisa senão o valor que pagou ao segurado. Eis o contorno universal da sub-rogação:

“Los contornos de la subrogación

El derecho de subrogación de la entidade asseguradora en los derechos que a priori y al menos ex ante de percibir la indemnización o resarcimiento corresponden al asegurado por los daños causados por la acción u omisión de un terceiro responsable, es el corolario lógico a la efectividad del principio indemnizatório que rige, cuando menos, en los seguros contra daños.

(...)

Y dos son las finalidades de la subrogatio, de um lado, evitar la indemnidad del causante del daño si la asseguradora no pudiere regresar frente a él subrogándese en los derechos de la víctima assegurado y, de outro lado, evitar la duplicidade indemnizatória que podría percibir el assegurado se actuase indistinta y cumulativamente frente uno y outro.”

(COPO, Abel B. Veiga, “Tratado del Contrato de Seguro”, 5ª. Edição, Tomo I, Cizur Menor (Navarra): Civitas, 2017, p. 1069)

Daí sua singularidade fantástica, daí a importância desse fenômeno jurídico ligado à intimidade do conceito de justiça, sedimentado na beleza do Direito Natural e na solidez da Ordem Moral.

Como já dissemos, quando busca o ressarcimento em regresso contra o causador do dano, o segurador não defende apenas seus legítimos direitos e interesses. Na mesma ocasião, protege também os interesses do colégio de segurados, por força do mutualismo, “um dos princípios fundamentais que constitui a base de toda operação de seguro. A reunião de um grande número de expostos aos mesmos riscos possibilita estabelecer o equilíbrio aproximado entre as prestações do segurado (prêmio) e as contraprestações do segurador (responsabilidades)”. (Dicionário de Seguros, Funenseg, Rio de Janeiro: 2000, p. 78)

Por isso, observado o conteúdo da Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal e do art. 944 do Código Civil, que trata do princípio da reparação civil integral, é possível afirmar, com segura veemência, que absolutamente nada pode prejudicar o pleno exercício do ressarcimento em regresso, e desse casamento entre o Direito do Seguro e o Direito Marítimo nascem questões interessantes.

Ora, a maior parte dos litígios judiciais envolvendo matérias de Direito Marítimo é patrocinada por seguradores sub-rogados nos direitos e ações dos segurados, embarcadores ou consignatários de cargas. O segurador paga ao segurado a devida indenização, motivada por faltas ou avarias na mercadoria, surgidas durante o transporte marítimo, e então busca dos transportadores (armadores) o devido ressarcimento.

E o ressarcimento oculta uma faceta coletiva, isto é, uma função social. Os resultados dessas ações impactam no cálculo atuarial do seguro, e isso reflete nas relações econômicas em geral, especialmente naquelas que guardam vínculos com comércio exterior, conectadas aos transportes internacionais marítimos de cargas. Ajusta-se, com magnífica perfeição, ao caráter educativo da responsabilidade civil, pois – ao menos em tese – faz com que o autor do ato ilícito civil tenha de ajustar procedimentos para prestar serviços mais eficazes (teoria do desestímulo) e, assim, trabalhe melhor.

Transportadores nem por isso deixam de buscar desprestigiar a amplitude do conceito de ressarcimento em regresso. O êxito desse empreendimento, porém, é raro.

Todo transportador de carga tem por dever o resultado pleno da obrigação contratual, isto é, da obrigação de resultado, cujo descumprimento implica a presunção legal de responsabilidade. Logo, devendo entregar a carga na mesma condição em que a recebeu e nela sobrevindo algum tipo de avaria ou falta, sua responsabilidade fica tida como certa, a menos que, mediante inversão de ônus, prove a ocorrência de alguma causa legal excludente de responsabilidade.

Contudo, os avanços da tecnologia de informação, da engenharia naval, dos equipamentos de navegação, e a isso juntam-se a qualidade e a segurança das embalagens, tornaram cada vez mais difícil um transportador convencer alguém de força maior, caso fortuito ou vício de origem (de embalagem). A navegação, cada vez mais segura, e seus mecanismos, de tal forma mais precisos, vêm fazendo crer que as faltas e avarias acabam por derivar, quase que à exclusividade, da desídia do transportador, da incúria na operacionalização de sua atividade.

Não raro os transportadores acabam ainda por agir com culpa em sentido estrito, inobservância do dever geral de cautela e da cláusula de incolumidade. Não por outra razão é que sua defesa em juízo adquire, em não poucos casos, até certo ar de desespero; e então aparecem com curiosíssimas interpretações da lei, contratualismos de admirável excentricidade, teses cuja consistência não se vê em parte alguma em nosso ordenamento — como alguém que, para não se afogar, apega-se a qualquer coisa que lhe sirva de salvação.

Costumam ainda, por vontade própria ou por instrução de seu clube de proteção e indenização, levantar a existência de cláusulas de foro estrangeiro e de limitação de responsabilidade presentes no conhecimento marítimo, instrumento que formaliza o contrato de transporte internacional de carga.

Mas há um detalhe que, solto por aí, deve ser resgatado: o conhecimento marítimo é um documento redigido unilateralmente pelo transportador, com cláusulas impressas e impostas ao embarcador, ao consignatário da carga.

O negócio jurídico de transporte de carga informa-se por um contrato de adesão, e para compreendê-lo alguns cuidados especiais são necessários, tais como a incompatibilidade do ordenamento jurídico brasileiro com o dirigismo contratual, por conta da qual ficam inválidas e ineficazes as cláusulas abusivas, senão nulas de pleno direito.

E há muito a jurisprudência se posiciona pela abusividade das cláusulas de limitação de responsabilidade e eleição de foro. Por trabalhar o Direito Brasileiro com o conceito de reparação civil ampla e integral, a cláusula que impõe a limitação da capacidade indenizatória incompatibiliza-se com ele, torna-se-lhe estranho, pouco importando as questões mais específicas sobre o pagamento de frete ad valorem.

Esse conceito é um princípio de Direito Civil (art. 944) e uma garantia fundamental, prevista no rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal: aquele que causa dano, tem de repará-lo integralmente; o que se faz até em homenagem à boa ordem moral e ao preceito segundo o qual a ninguém é dado causar dano a outrem.

Pela mesma razão, não pode vingar o foro estrangeiro, imposto à parte aderente de um contrato de adesão, sob pena de grave violação à garantia constitucional de acesso à jurisdição brasileira, bem como às regras processuais de jurisdição e competência.

O art. 25 do Código de Processo Civil não se ajusta ao contrato internacional de transporte marítimo de carga, porque a cláusula que trata do foro estrangeiro não foi eleita pelas partes contratantes. Impôs-se ao embarcador pelas mãos do emissor do conhecimento de transporte. É preciso ter atenção ao verbo utilizado no art. 24: “eleger”. Eleição pressupõe liberdade, manifestação reta de vontade, sem maculas a lhe atingirem, sem vícios a lhe afetarem a casta pureza volitiva. Dessa forma, se uma das partes não elegeu o foro estrangeiro, o art. 25 não se subsome ao contrato.

Qualquer pesquisa jurisprudencial, ainda que rápida, será o bastante para haurir decisões, singulares e colegiadas, nas quais se rotula como abusivas e ineficazes as cláusulas de limitação de responsabilidade e de foro estrangeiro, justamente porque impostas em contratos de adesão. E não poucas.

Limitar a responsabilidade não é somente ofender o Direito e a Moral, mas premiar a inadimplência daquele que devia cumprimento à obrigação de resultado. Entendimento que se fortalece pela jurisprudência dominante, pela doutrina, por princípios constitucionais e supraconstitucionais, como os da proporcionalidade, equidade, isonomia e razoabilidade.

Ainda que, por hipótese, se entenda legítima a cláusula, ao menos do ponto de vista do segurado, isso não pode se replicar no caso da companhia seguradora com quem ele mantinha apólice de segurado. Porque uma coisa é a validade e a eficácia das cláusulas de limitação de responsabilidade e de eleição de foro em relação aos que figuram no contrato de transporte, diretamente ou por estipulação; outra, bem diferente, é a projeção de efeitos na direção do segurador sub-rogado. Além de ser uma questão de lógica, há expressa determinação legal em favor do segurador sub-rogado.

O § 2º do já comentado art. 786 determina ser “ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os atos a que se refere este artigo”.

Assim sendo, as cláusulas de que se fala aqui são de uma ineficácia patente e absoluta em relação ao segurador sub-rogado. Não se pode prejudicar o direito de regresso do segurador. E até por respeito ao contexto constitucional, lembrado aqui pelo enunciado de Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal.

No contrato de transporte de carga a granel, existem, e não se nega, situações especiais, extraordinárias, em que de fato há manifestação de vontade por parte dos segurados, donos de carga. Essa pequena voluntariedade esmorece, em parte, a natureza adesiva dos contratos maritimistas de transporte. Mas, da mesma forma e pelo mesmo motivo, em nada prejudica os seguradores, parte estranha à relação contratual.

O contrato de seguro de transporte guarda íntima relação com o contrato de transporte marítimo internacional de carga. Mas os dois não se confundem, nem entram em perfeita comunhão; próximos, podem ser; parentes, se quiserem. Falta-lhes, porém, aquela fusão numa estrutura única, confusa, indistinta, particular às naturezas que por nomes diversos designamos uma e mesma coisa. Entre o primeiro e o segundo, o que há é um reles contato com a carapaça do outro, um singelo deslize pelo contorno das formas jurídicas. Disso não passam; são retidos na superficialidade e, ao jeito dos amantes na elegia de Rilke, nada mais fazem do que hesitar entre limites.

Em respeito ao direito de regresso, o tido como eficaz pelo segurado pode não o ser em relação ao segurador.

Sobre os temas limitação de responsabilidade e foro estrangeiro, tudo o que foi exposto cabe – e até com mais razão – à chamada cláusula de compromisso arbitral. E cabe porque os contratos de adesão somente podem contê-las se a Lei de Arbitragem brasileira for devidamente observada, sob pena de nulidade absoluta.

A Lei de Arbitragem é taxativa em dispor que, nos contratos de adesão, o compromisso arbitral há de ser destacado em meio ao clausulado ou disposto em termo apartado do corpo contratual. A assinatura dos interessados, todos eles, é necessária em ambos os casos. E diferente não poderia ser. A arbitragem somente produz efeitos jurídicos se voluntariamente acordada por todas as partes envolvidas. A voluntariedade é seu requisito especialíssimo, sua condição sine qua non. Logo, se uma das partes não concordar com o procedimento arbitral, ele jamais poderá ser levado a efeito.

Contudo, ainda que o segurado tenha anuído com a arbitragem, o segurador não poderá ser arrastado aos pés dessa concordância, não lhe deve respeito, seja por força da Lei de Arbitragem, seja por força do comando expresso do art. 786, §2º do Código Civil. Impor arbitragem é inaceitável, ilegal, inconstitucional, uma violência a direitos e garantias fundamentais; afinal, nenhuma câmara arbitral do mundo, por mais séria e respeitável que seja, terá a natural excelência e a imparcialidade, a grandiosidade e a imponência que da Justiça se presume.

Tanto assim é verdade, que no dia 20 de abril de 2017 o próprio CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima — divulgou a seguinte nota:

A relevância da cláusula compromissória arbitral

A cláusula compromissória é, em síntese, um acordo prévio entre as partes estipulando que, em caso de litígio, o mesmo será resolvido por meio da arbitragem. Muitos estudiosos da arbitragem afirmam que a cláusula compromissória é a pedra angular da arbitragem, possuindo um efeito positivo e um efeito negativo.

O efeito positivo seria a jurisdição para os árbitros (ou árbitro) decidirem (ou decidir) o litígio no caso concreto. Por outro lado, o efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal. Nesse sentido, é de fundamental importância que a cláusula compromissória arbitral seja bem redigida. E o CBAM possui modelo de cláusula compromissória padrão (disponível em www.cbam.com.br) para facilitar as partes no momento que forem redigir um contrato.

“As partes obrigam-se a submeter qualquer divergência, conflito ou litígio decorrente do presente contrato, inclusive quanto à sua interpretação ou execução, a arbitragem a ser promovida pelo CENTRO BRASILEIRO DE ARBITRAGEM MARÍTIMA – CBAM, na forma do Regulamento do referido CBAM, que é aceito pelas partes que declaram conhecê-lo e concordar com os termos do mesmo”.

Qualquer dúvida em relação à cláusula compromissória não hesite em nos procurar!

Pelo teor da nota, não há como não concluir: somente quem concordar expressamente com o procedimento arbitral pode-lhe ser submetido, sendo tanto pior no caso do segurador sub-rogado, se com sua primazia ele não tiver aquiescido antes, de modo expresso e formal. Segundo palavras do Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima, o “efeito negativo seria a derrogação da jurisdição estatal” — o que se faria com inconstitucional violência.

Repitamos: nenhuma disposição contratual, adesiva ou não, poderá ferir, ainda que minimamente, o direito de regresso do segurador sub-rogado.

Um litígio, no Direito Marítimo, evidentemente ganha outro enquadramento quando uma das partes é um segurador sub-rogado. O caso sai do olhar exclusivo das regras legais brasileiras, gerais e especiais, disciplinadoras da responsabilidade civil do transportador marítimo de carga, seja o contrato de transporte nacional ou internacional; deixa-se ver, à forma de guarda compartilhada, por aquelas que disciplinam elementos do Direito do Seguro, tais como a sub-rogação e o ressarcimento. Além do que, no afã do ressarcimento, a atuação do segurador sub-rogado desempenha até uma função social, e seu sucesso e fracasso regula e desregula a precificação dos seguros.

O litígio protagonizado por segurador sub-rogado tem outra forma de pensar o Direito, cuja distinção daquela outra, originalmente atribuída ao dono da carga, afasta tudo o que seja incompatível com o tradicional exercício do ressarcimento.

Deve-se ter em mente a teoria do desestímulo e o conceito maior de justiça. A previdência alheia não é, nem pode ser, uma garantia de impunidade a quem causa danos. E o que vale para a questão da arbitragem (ou, no mesmo ângulo, para a da suposta eleição de foro estrangeiro), vale ainda mais para a da limitação de responsabilidade. Ora, sem aquiescência do dono da carga com a limitação de responsabilidade que o transportador determina, como exigir que este ônus, injusto em sua essência mesma, seja transferido ao segurador sub-rogado? Como aplicar ao segurador sub-rogado uma disposição hostil ao princípio da reparação civil integral, erguendo-se em manifesta contrariedade ao instituto da sub-rogação, o qual, por sua importância, por sua índole constitucional, vai além do Direito do Seguro?

A sub-rogação não pode ser prejudicada por cláusulas contratuais nem convenções internacionais. Se algum sistema legal, como o espanhol por exemplo, reconhece as convenções internacionais de Direito Marítimo, e na esteira disso as cláusulas limitativas de responsabilidade, não seria de mau tom rever posicionamentos ao menos quando, frente a frente com o transportador faltoso com a própria obrigação, se ponha a figura de um segurador que indenizou o dono de carga.

Pois, caso não seja assim, haverá prejudicados além do segurador: diretamente, o colégio de segurados, por força do princípio do mutualismo; indiretamente, a sociedade como um todo, sem aqui pecar por arroubos de exagero. A situação, já ruim ao segurado, realmente piora para o segurador; e como que num ato transcendente aos limites do contrato de transporte, só que do ponto de vista negativo — uma transcendência indiscreta e intrometida —, a limitação acaba por atingir outro negócio jurídico: o contrato de seguro.

Posto tudo isso, é certo dizer ainda que o ressarcimento em regresso, respeitado, observado e integral, não se assenta apenas no sistema legal, mas na própria ordem moral, sendo algo próprio do Direito Natural, imbricado no senso universal de justiça, muito bem esquadrinhado no antigo Direito Romano, conforme a ordenação Justiniana — “Direito é dar a cada um o que é seu”.

E, neste contexto, volta à memória uma indagação feita em obra de Direito Marítimo do Reino da Espanha:

“En el curso del Bramley Moore, Lord Denning pronuncio su reverberante declarión de que la limitación de la responsabilidade “no es uma custión de justicia. Es uma norma de orden público que tiene su origen em la historia y su justificación en la conveniência”. Esta percepción (que la limitación de la responsabilidade nos es una custión de justicia) há llevado a uma dicotomía de puntos de vista entre los que consideran la limitación de la responsabilidade como um derecho y aquellos que la vem como un privilegio. Como es posible imaginar, este último punto de vista há puesto em entredicho la institución custionando su fundamento y perguntando si la limitación de la responsabilidade tiene, de hecho, uma función en el mundo moderno”.

(GUTIÉRREZ, Norman A. Martinez, “La limitación de la responsabilidade por reclamaciones marítimas y su función en el mundo marítimo de hoy” in “El Derecho Marítimo de los Nuevos Tiempos, José Luis Garcia-Pita y Lastres y Otros, Cizur Menor (Navarra): Civitas (Thomson Reuters, 2018, p. 237)

           

Respondemos que não. Nitidamente, o repúdio às normas de limitação de responsabilidade é uma questão de Justiça e até de ordem moral. Elas não têm o menor cabimento no mundo atual, marcado por sociedades de riscos e danos, no qual os grandes protagonistas da economia têm de assumir responsabilidade pelos erros de sua conduta.

Dissemos e repetimos: o fenômeno ressarcitório não pode ser prejudicado. Se fosse ver bem, teria até de gozar de preferência nos conflitos de interesses, considerando sua ambiciosa envergadura. Defender o ressarcimento é defender a vítima, punir o causador de dano e aplicar a justa medida. Medida exata de uma responsabilidade civil forte, robusta, mas, acima de tudo, tomada por espírito de justiça; sem pender para aventuras, não tolera que o autor do ato danoso, seja isento de punição equivalente à medida dos danos. E isso se diz conforme o posicionamento do grande Eugênio Llamas Pombo:

“Quienes propugnan aquella teoria continúan atribuyendo explicitamente a la indemnización una triple misión: 1) sancionar al dañador; 2) prevenir sucesos lesivos similares; y 3) eliminar los beneficios injustamente obtenidos a través de la actividad danosa. Pues bien, hay que señalar que la segunda no es propriamente una finalidade punitiva, sino más bien preventiva; y la terceira bien pudiera encuadrarse dentro de la teoría del enriquecimiento sin causa. (...)”

(POMBO, Eugenio Llamas, “Reflexiones sobre Derecho de Daños: casos y opiniones”, Madrid: La Ley, p. 38)                   

Para que a responsabilidade civil e o Direito de danos tenham tratamento adequado e harmônico ao Direito Natural é muito importante pôr fim à cláusula limitativa de responsabilidade, especialmente no contrato internacional de transporte marítimo de carga.

No mundo atual, não cabem normas com o objetivo de inibir a reparação civil do dano. O Direito de Danos, a responsabilidade civil, coloca a vítima do dano em evidência e, feito grandes muros que se erguem, constrói teoria jurídicas para defender a legitimidade de direitos e interesses. Se no passado houve alguma justificativa plausível para a existência de cláusulas exonerativas e limitativas de responsabilidade, hoje elas não mais fazem sentido. Sobre isso, é interessante o que nos diz Ana Prata:

“Tais dificuldades ou talvez a sensata verificação de que a configuração actual deste problema mais modestas raízes históricas nas relações jurídicas decorrentes das atividades industriais, comerciais (e instrumentais destas), características da fase industrial do capitalismo, levam a que a generalidade dos autores circunscreva historicamente a sua análise – prescindindo ou não da referida digressão histórica – ao século passado. Temporalmente reconduzidas a esta época, o surgimento no princípio do século XIX das cláusulas de exclusão ou de limitação da responsabilidade e a sua multiplicação no decurso dele são evidentemente explicados pelo facto de elas responderem a uma necessidade do processo de industrialização, de segurança na exploração económica de inúmeras atividades, criadoras de vastos riscos e de consequentes custos de responsabilidade insuportáveis pela maior parte das empresas. O desenvolvimento econômico determinou, pois, numa época em que o seguro não constituía ainda solução para ocorrer a todos os riscos empresariais que os empresários procurassem este instrumento para a auto-protecção que era a exclusão da sua responsabilidade pelos danos causados no exercício das atividades cujos meios técnicos eram incipientes e que os homens controlavam com dificuldade. (...) Nos estudos jurídicos é indiscutivelmente aos contratos de transporte que mais comumente as cláusulas de irresponsabilidade ou de limitação da responsabilidade são ligadas na sua origem.”.

(PRATA, Ana, “Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual”, Coimbra: Almedina Edições, 2005, pp. 22/4)

A limitação de responsabilidade é tema sobre o qual não paira controvérsia no Direito brasileiro (ou, ao menos, não deveria pairar). A melhor doutrina e os Tribunais já pacificaram a questão, negando vigência a toda e qualquer cláusula que limite responsabilidade. Em caso de divergência, o contrato de adesão deve ser interpretado sempre em favor de quem aderiu; ideia que, sedimentada ao longo dos tempos, assumiu até ares de postulado.

O Código Civil, aliás, ao tratar da função social do contrato, abraçou definitivamente os princípios informadores dos direitos de terceira geração, aplicando-os mesmo no âmbito do Direito privado. Assim, impossível emprestar validade, eficácia e vigência à cláusula que, imposta unilateralmente, queira limitar a responsabilidade pelo evento danoso, trocando um pote de ouro por alguns centavos de prata.

Tratando cláusulas exonerativas de modo similar às limitativas de responsabilidade, a jurisprudência brasileira já lhes repudiava em validade e a eficácia, como disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Da mesma forma fazia o Direito positivo, por meio de regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, que liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação”.

Mas, com a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro, o tema ganhou novo aspecto, e um aspecto definitivo. Em sua roupagem negríssima, derradeira, solene a limitação de responsabilidade mostrava-se, finalmente, preparada para a sepultura; e esta dispunha-se à recepção deste injusto moribundo, abria as portas últimas a este antigo habitué dos contratos de transporte marítimo.

Sendo de adesão tal contrato (conhecimento marítimo), suas cláusulas, impressas e pré-formatadas, não cabem ao consumidor do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação. Simplesmente errado é falar em eventual liberdade de não contratar. Sendo 90% do transporte global de cargas feito pelo mar, que hão de fazer contra isso os consumidores necessitados do transporte? Não cremos haver muita opção, senão deixar que a conduzam pelo pescoço à fatalidade guiada pelo transportador.

Falar em limitação de responsabilidade é falar também em reconhecimento da incidência das normas morais nas obrigações civis e/ou consumeristas, uma vez que limitar a responsabilidade, não raro a valores ou percentuais aviltantes, é ato afrontoso à moral. E se isso não se admite fora do juízo, quem dirá dentro dele.

Prejudica-se, por um só ato, a economia e a decência do Direito, permitindo que o ilícito permaneça sem punição, quebrando a regra de que aquele que causa dano a outrem deve repará-lo. Por isso, doutrinadores de grosso calibre, muito antes do advento novo Código Civil, repudiavam tais cláusulas. Em endosso à doutrina, também faziam o mesmo os Tribunais brasileiros, quase que de forma majoritária.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua sexta câmara, julgando o Recurso de Apelação nº 274.840-Santos, decidiu:

“Limitar a responsabilidade da transportadora a 100 (libras esterlinas) é, sem dúvida, infringir o artigo 1º do Decreto nº 19.473, de 10.12.1930, que reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da prova do recebimento da mercadoria e da obrigação de entregá-la no destino, prova que o conhecimento de frete original faz a obrigação que por ela as empresas de transporte assumem. O legislador, certamente, teve em mente que: ‘illud nulla pactione effici potest ne dolus praestatus’ (Dig. Lib. II, Tit.XIV, § 3º). Pode ocorrer que o extravio da mercadoria faça render quantia superior à que o transportador tiver de pagar a título de indenização. Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar.”

“É enganosa a doutrina que condiciona a validade das cláusulas de limitação de responsabilidade ‘a uma rebaja del frete, segun opciones que previamente los transportadores dan a los cargadores’ (FRANCIS FARINA, Derecho Comercial Marítimo, T. II, Ed. 1948, Madrid, p. 290, cfn. fls. 81). Haveria frete com determinada percentagem para os transportes sem declaração de valor das mercadorias e frete com ‘the rate increased’ para o transporte com a declaração daquele valor. Dir-se-á que a opção pode advir uma vantagem, se o transporte for levado a bom termo, pois os mesmos riscos terão sido corrigidos, com um frete mais barato. A limitação de responsabilidade, porém, continua dando oportunidades de extravio doloso por parte do capitão ou da transportadora, eventualmente em conluio com o embarcador ou exportador. E aquela álea não poderá ser uma compensação a justificar a validez da cláusula restritiva.”

Também elaborado antes do surgimento de algumas leis recentes que fortalecem a defesa da reparação civil integral, o posicionamento do Tribunal de Justiça paulista construiu-se à base de muita lucidez, com ênfase no Decreto n.º 19.473/30 e nos princípios elementares do Direito. Enveredou-se ainda por outros ramos do conhecimento humano, ao observar corretamente que a limitação de responsabilidade é ainda um fator de incentivo à criminalidade, porque, de certa forma, torna mais interessante a prática do extravio doloso de cargas (“Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar”).

Com essa preocupação voltada à criminalidade e às divisas nacionais (ordem econômica), o Tribunal paulista acabou por emprestar ao tema ares publicistas, e antes da legislação consumerista.

No caso de tais cláusulas, não há pacta sunt servanda. Primeiro porque o princípio da supremacia é preferível ao da livre manifestação de vontade das partes; depois porque a presença delas é imposta em contratos de adesão, principalmente agora que o sistema legal brasileiro, por meio do Novo Código Civil, adotou expressamente o princípio do fim social para os contratos, além da boa-fé dos negócios jurídicos em geral.

Esta decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 107.361-6, votação unânime, é interessante: “Dentro do mesmo raciocínio, ao reduzir-se o valor de uma indenização a parte insignificante do prejuízo efetivamente verificado, parece ser a negação do próprio princípio que assegura a obrigação do pagamento dessa indenização. O Supremo Tribunal, com base em texto legal que reputa não escrita ‘qualquer cláusula’ restritiva ou modificativa da obrigação do transportador (art. 1º, do Decreto nº 19.473/30), proclamou, na Súmula n.º 161, a inoperância da cláusula de não indenizar, não vejo como conciliar, com esse enunciado, a degradação de ressarcimento de uma importância mais de uma centena de vezes menor do que o prejuízo efetivo, a ponto de não chegar a compensar a antecipação dos encargos financeiros necessários ao ajuizamento da demanda.”

Entendeu de modo igual o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 644-89.0009917-5-SP: “Direito comercial – Transporte marítimo – Cláusula limitativa de responsabilidade do transportador – O Decreto nº 19.473, de 10.12.30, em seu art. 1º, reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da obrigação e tanto equivale a limitação a valor irrisório do montante da indenização, precedente do STF.

Assim colocada a questão, por tudo o que traz de ruim à ordem, pela assimetria que impõe entre as partes, por devastar qualquer noção de proporcionalidade, a limitação de responsabilidade então fica vencida, de joelhos, com o pescoço estendido à espada da lei.

Aliás, mesmo em um contrato de adesão há de se levar em conta, na esteira da boa-fé objetiva, o princípio vetor da intencionalidade ou da comum intenção das partes. Evidentemente que a investigação deste princípio não é plena – nem poderia ser –, mas também não é claudicante. O princípio também existe na contratação adesiva e é mais um obstáculo ao casuísmo, eis que é de se legitimamente supor que, no caso específico em estudo, o dono da carga em momento algum teve a intenção de não ser reparado integralmente pelo dano derivado da insatisfação da obrigação contratada.

Por isso, é importante que o comportamento integral das partes seja direcionado pela busca do aperfeiçoamento regular de seus deveres, que no caso do transportador é a entrega do bem confiado na mesma condição recebida. Ora, como imaginar, para além do bom-senso e do dever ético-empresarial, que o transportador realmente de conduzirá segundo o comportamento integral se lhe for facultada, por sua própria e exclusiva vontade, o benefício de não reparar integralmente o dano (prejuízo)?

Ao tratar da importância do comportamento integral de los contratantes para la búsqueda de la intención de las partes, o jurista colombiano Carlos Ignácio Jaramillo J., disse com muita propriedade:

“Por último, acercándonos a la culminación de este principio de oro, debemos acotar que em la búsqueda de la intención de las partes, el intérprete, quien para ello goza de relativa libertad – que no libertinaje -, está facultado para escrutar el comportamiento inter-partes (plenitude comportamental), en orden a parsale revista em diversos momentos capitales: antes, durante y después de la celebración del contrato, como quiera que, por regla, nada refleja mejor esa intención que la conducta que, espontáneamente, los contratante despliegan, sin duda una espécie de fiable brújula hermenêutica, según ya se anoto”.

(Principios Rectores y Reglas de Interpretación de Los Contratos, Biblioteca de Derecho Privado, Lex, Ediciones Olejnik, Santiago-Chile: 2018, p. 338/9)

A melhor forma de fazer com que o princípio da comum intenção das partes seja efetivamente respeitado e que o chamado comportamento integral para perfeito cumprimento dos deveres contratuais seja fielmente observado é a imposição da responsabilidade civil plena, sem qualquer elemento limitador. O comportamento integral só é garantido com a responsabilidade civil integral.

Claramente, dirige ofensas a fundamentos como os da equidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e do bom-senso; faz letra morta a qualquer alusão ao pacta sunt servanda. Quer dizer, cabe até outra sentença: pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt.

Os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem abusos do gênero, e principalmente o dirigismo que se desprende dessa adesividade contratual. Repetimos: o princípio da força obrigatória foi mitigado por teorias e teses diversas, tais como a teoria da imprevisão, a boa-fé objetiva, passando pela função social dos contratos e a vedação expressa ao abuso de direito.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e em termos contratuais, poucas coisas são tão tortas, de uma obscenidade tão extraordinariamente incômoda, quanto essas disposições que exoneram ou limitam a responsabilidade indenizatória daqueles que descumprem contratos de transporte, como que dando incentivos a quem queira causar prejuízo em coisa alheia.

A boa-fé objetiva constitui um princípio geral, aplicável ao Direito das Obrigações, especialmente em relação à principal fonte: os contratos. Produz nova delimitação do conteúdo objetivo do negócio jurídico, inserindo deveres à parte, obrigações acessórias ou ainda trazendo restrições a direitos subjetivos. Também se dá a aplicação de um método hermenêutico-integrativo, com o qual se interpreta a declaração de vontade de modo que fique a relação jurídica ajustada à função social (e econômica) determinável no caso concreto.

Deste modo, estamos seguros quanto ao aspecto inválido, ineficaz das cláusulas limitativas de responsabilidade, equiparáveis a cláusulas exonerativas, afeitíssimas ao contratualismo dirigido e, portanto, inválido.

Tudo isso é ainda mais verdadeiro quando o protagonista de uma reclamação contra o transportador marítimo é o segurador sub-rogado, e não o dono da carga. Não porque a vítima direta do dano tenha menor dignidade que seu segurador, até porque afirmar isso seria contrariar nossa convicção que o Direito de Danos, hoje, tem que ser o do protagonista do danado. Mas simplesmente porque o campo de abrangência da atividade seguradora é mais amplo e mais importante que o de transporte. Falamos do contrato de seguro, com todos os seus princípios e singularidades.

Há, no caso específico do Brasil, um elemento constitucional na equação, ditado pelo já comentado enunciado de Súmula nº 188 do Supremo Tribunal Federal, alterando consideravelmente a dinâmica do ressarcimento em regresso. Com isso, a responsabilidade civil do transportador marítimo de carga não é apenas disposta pelo Direito Civil, pelo Direito Comercial e pelo Direito Marítimo, mas também pelo Direito do Seguro e pelo Direito Constitucional.

Ora, no sistema legal brasileiro vigora o princípio da reparação civil integral, previsto no art. 944 do Código Civil, com ancoragem nos princípios e garantias fundamentais constitucionais, conforme o rol exemplificativo do art. 5º da Constituição Federal. Como, então, admitir que uma mera cláusula de contrato, e ainda mais de um contrato de adesão, tenha força para mitigar o dever de reparação civil ampla e integral, agindo em patente desfavor de um segurador sub-rogado?

Assim, embora seja sempre alvo de disputas acaloradas, o Poder Judiciário não reconhece a validade ou a eficácia de disposições similares no Brasil. Raríssimos os casos de Direito Marítimo com soluções que pendem para o seu reconhecimento.

No entanto, sabemos que não podemos limitar o estudo e a aplicação do Direito ao campo jurisprudencial, de tal forma que são merecidas as críticas aos que insistem em mergulhar apenas nesta fonte do Direito para dizer se algo é certo ou errado. Contra essa obstinação atual, eis o comentário do professor Eugenio Llamas Pombo:

“La jurisprudência, pilar del Derecho de daños

Soy consciente, y así lo vengo observando, de que la proliferaciós, versatilidade y accesibilidad de la bases de datos jurisprudenciales han provocado um fenómeno que va incrementando desde hace aproximadamente una década: Cualquier escrito jurídico, sea demanda, sentencia, dictamen o laudo arbitral, aparece siempre preñado de citas jurisprudenciales, que ya no ilustran el resto de argumentos jurídicos, sino que se erigen en el argumento mismo. Es como si las fuentes del ordenamento hubrien passado a um segundo plano, cedendo passo a las resoluciones de los tribunales Y pareciera que los critérios hermenêuticos del art. 3.1 del CC jugaran un papel secundário, frente el argumento interpretativo oferecido por el fundamento de Derecho de alguna sentencia. Poco importa el carácter informador de tal o cual princípio general del Derecho; em nada sierve la interpretación de los preceptos del Código Civil madurada a través de más de um siglo de comentários doctrinales; lo verdadeiramente importante es encontrar una sentencia (! dos o três coincidentes son el nirvana del jurista moderno!) que haya resuelto com anterioridade ese problema jurídico concreto. En otras palavras, con una buena base de datos, sobran y ya las bibliotecas. Al parecer, en las primeras páginas de su Metodología del Diritto prescribía: “hay que descobrir las reglas de la experiencia jurídica, convencernos de que las reglas del Derecho no están recluídas em los códigos como en uma vitrina, sino operando en la vida; importa mucho al jurista tener los ojos bien abiertos, comportarse realistamente para observar el dato vital que, en verdade, muchas veces no está em códigos o bibliotecas”.

(POMBO, Eugenio Llamas, “Reflexiones sobre Derecho de Daños: casos y opiniones”, Madrid: La Ley, p. 31)

Mas ao mesmo tempo em que critica o que se pode chamar de apego desmedido por decisões judiciais, o professor não deixa de reconhecer o valor da jurisprudência para a formação de um campo denso, aberto, em constante mudança — como é o Direito de Danos, coirmão da responsabilidade civil.

No caso do transporte marítimo internacional de cargas e da responsabilidade civil do transportador marítimo, a jurisprudência tem sido sempre fundamental, evitando a proliferação de abusos de transportadores e barrando a suas tentativas de blindar-se do próprio dever.

Entretanto, os novos tempos não admite velhas medidas, muito menos a concessão de privilégios àqueles que já dispõem deles em grande número. O desenvolvimento econômico e o empreendedorismo exigem segurança jurídica; a atividade econômica tem de precedida e garantida por marcos de regulação. Idealmente, estes devem ser equilibrados, justos, com alguma racionalidade, positivo para os protagonistas diretos de determinada atividade, sem excluir o seio social como um todo, já que nenhuma atividade é um fim em si mesma.

Assim, em regra, as disposições sobre limitação de responsabilidade não se justificam. É bem verdade, porém, que existem algumas delas, poucas mesmo, que são lógicas, corretas, como a que veda ao segurador indenizar o segurado além daquilo que se obrigou pelo contrato. De certa forma, uma obviedade que, dirão alguns, nem se confunde com limitação de responsabilidade. É só ontologia do contrato pelo qual se visa a restabelecer a condição patrimonial do segurado antes do sinistro, antes do risco previsto na apólice.

Mas, com exceção desse exemplo, a limitação é inabalavelmente injusta. Claro sobre o princípio da reparação integral, o art. 944 do Código Civil determina ao causador do dano o dever de repará-lo na totalidade, o que possui ancoragem constitucional, no rol do art. 5º da Constituição Federal, onde se atesta a necessidade de reparação civil ampla e integral. Sendo assim, impossível de defender a limitação, seja qual for sua fonte: contrato ou convenção internacional.

A tecnologia avançou, a engenharia naval se desenvolveu, a precisão da navegação se tornou digna de inveja por outros ramos do transporte. Mas armadores e afins ainda insistem em gritar por benefícios de quinhentos anos atrás. Desde a limitação de responsabilidade à avaria grossa, há um mosaico de mecanismos de proteção que, além de gerar desequilíbrio econômico, fazem dos donos de cargas, terminais e respectivos seguradores reféns de um autoritarismo alheio às boas relações comerciais.

Uma coisa é certa: sempre que alguém alega em seu favor limitação de responsabilidade tenta impor à vítima uma limitação de direitos. Qualquer que seja a fonte invocada para o eventual reconhecê-la, qualquer que seja a justificativa para aplicá-la, será como que dirigir uma ofensa grave à face da reparação civil integral, pisoteando a proteção à vítima do dano.

Destacamos, pois, o trabalho do Professor André Tunc, da renomada Universidade de Paris, na sua obra La Responsabilité Civile, Paris, 1981, p. 108/9, expressamente citado no V. acórdão da apelação 358.886-4, 7ª Câmara, j. 10.02.1987, relator Luiz de Azevedo, do antigo 1º TACivSP (RT 623/101) que ressaltou os deveres do juiz, instando-o à proteção da sociedade como um todo ao tratar de temas ligados às responsabilidade penal e civil, devendo neste último se preocupar, principalmente, com a indenização a que a vítima tem direito.

Ora, considerando tudo o que dispõe a Constituição Federal, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, fontes legais aplicáveis aos litígios envolvendo contratos de transportes marítimos de cargas, conforme ampla jurisprudência do STJ, temos que a limitação é figura anacrônica e sem sentido, antagônica à totalidade do Direito.

Nos dias correntes, impossível é apegar-se à literalidade das cláusulas contratuais, ignorando princípios maiores e regras legais abertas, tais como as que tratam da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil).

Adversários da reparação integral, porém, usam da mais formidável ginástica jurídica para presentear a cláusula limitativa de responsabilidade com a moralidade que ela não tem. Consequentemente, a discussão do pagamento de frete “ad valorem” não encontra préstimo em nenhum lugar, desequilibra-se, cai por terra, e, agonizante, expira sozinha. Se pouco sentido tem essa discussão em relação ao consignatário da carga, para o segurador sub-rogado tem menos ainda.

Prevalecendo tal entendimento, a sub-rogação seria atingida no peito e, com ela, o Enunciado de Súmula 188 do STF. Em termos práticos, o segurador não conseguiria o ressarcimento do valor integral que pagou ao segurado, e isso geraria a afronta do seu direito. O reflexo seria imediato no campo do direito securitário e, por sua vez, na economia como um todo, com inúmeros desdobramentos, dos quais nenhum nos parece positivo.

A verdade é que a cláusula limitativa de responsabilidade, sob a luz transitória do caso concreto, deve ser interpretada sempre contra proferente (contra quem a proferiu), uma vez que redigida exclusivamente pelo transportador, pelo fornecedor do serviço. É benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e antijuridicidade, só pode ser aplicado restritivamente, em casos de extraordinária pontualidade, mas com o olhar sempre virado à defesa de bens maiores, e que não levem prejuízos acentuados à vítima direta do caso, donos de cargas ou seguradores. Tudo dentro de uma dinâmica de equilíbrio e busca da justiça, de função social do contrato.

Nada disso se aproxima do sinistro simples, grave ou não, contornado ou não por avaria grossa. Muito menos a ideia de culpa em sentido estrito. A inexecução da obrigação de resultado assumida deve a rigor propiciar a reparação civil mais ampla possível, compensando credor e punindo a devedor.

Aliás, impressionante a insistência dos transportadores, em lides forenses, no sentido de buscarem, mesmo após reiteradas derrotas nos casos concretos, arrastarem os processos com recursos especiais, buscando eventuais divergências jurisprudenciais. Tais recursos, contudo, morrem nos juízos de delibações. Pois, é evidente, o STJ não pode rediscutir provas nem reinterpretar cláusulas contratuais; e a limitação de responsabilidade, ao menos no transporte marítimo, tem natureza contratual, não convencional. Logo, o STJ fica impedido de analisar a tese da limitação.

O direito à indenização está previsto no inciso V, do artigo 5º da CF, que lhe garante a amplitude e integralidade dos prejuízos materiais, morais, dos danos à imagem. Inciso a ser aplicado em conjunto com o inciso X do mesmo artigo, presente no rol exemplificativo dos direitos e garantias fundamentais, o mais importante do Direito brasileiro.

Nenhuma regra pode desprestigiar o conceito legal de reparação ampla e integral, já que, não se tratando apenas de um direito de índole civil, tem a força de uma garantia constitucional, sua inegável e majestosa primazia.

Criadas por países de grandes armadores para lhe protegerem os interesses, tais disposições foram gestadas quando tecnologias de navegação e de construção de embarcações eram de notável inferioridade quando comparadas às de hoje, diferentes das embrionárias, datadas de tempos em que os riscos eram maiores. Já houve sentido na limitação de responsabilidade. Mas num passado distante. Não hoje, época em que as embarcações se constroem segundo rigorosíssimos padrões de engenharia, entabulados como “riscos zero”. De certo modo, era medida para contrabalancear a força da presunção de responsabilidade, tudo dentro de processos de busca de equilíbrio entre as partes do negócio de transporte marítimo de carga.

Não se veem mais riscos nessa modalidade de transporte, ao menos não nos moldes no início do século passado (para não ir muito longe). Sem falar que as cargas hoje confiadas para transportes possuem um valor agregado muito maior do que os dos bens do passado, razão pela qual (ou melhor, também pela qual) não se justifica mais.

Aguiar Dias, grande civilista, sempre viu com maus olhos a limitação de responsabilidade, dispondo: “o problema se prende intimamente ao da causa. Para apreciar a contraprestação, rejeita-se o valor irrisório. Não convém exigir equivalência, palavra que se presta a equívocos. O que se procura é o mínimo capaz de tornar a injustiça por demais violenta”. (Cláusula de Não Indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 129/130).

Outro argumento dado pelos defensores da limitação é o de que muitos países do primeiro mundo são signatários das convenções internacionais.

Só que esses países têm frotas de armadores, economias pujantes, a ponto de ali ficar mitigada uma eventual limitação de responsabilidade em favor dos transportadores, sobretudo pelo volume de negócios ou pela existência de interesses poliédricos, numa balança relativamente compensatória.

O Brasil é, por seu turno, um país eminentemente “cargo”, isto é, de exportadores e importadores. Quase não possui armadores. Então, é claro: reconhecer a limitação de responsabilidade seria também um prejuízo aos interesses nacionais, públicos e privados, e sem a menor compensação. Não há mecanismo de calibragem em favor do Brasil; com isso o país só perderia. De qualquer forma, má ideia não seria exportar a experiência brasileira aos demais países, informando-os do grave problema a residir na limitação de responsabilidade, sobretudo quando imposta no cenário do negócio de seguro.

Outro argumento, não jurídico, mas puramente comercial, seria o de um eventual barateamento do frete marítimo. E isso é de um descabimento singular. Porque são a energia do mercado, as leis da oferta e da procura que ditam os valores do frete, e não a caneta dos legisladores. Afirmar que o frete baixará com isso é no mínimo infantil.

Pelo contrário. Tudo será onerado, a começar pelo seguro de transporte. A possibilidade que a lei brasileira oferece ao ressarcimento é exatamente um dos motivos pelos quais o segurador pode cobrar alíquotas relativamente baixas dos segurados. Com a limitação tarifada, essa possibilidade será rasgada ao meio, e a cobertura dos riscos, junto aos prêmios de contrato de seguro, ficarão mais caros. Dentro da natural cadeia de repasse dos custos, é o consumidor brasileiro quem, no final, arcará com os prejuízos e, de certa forma, o próprio erário, já que a balança comercial, a médio prazo será desequilibrada.

O sistema legal brasileiro se orienta pelo princípio do neminem laedere, ou seja, de que a “ninguém é dado causar dano a outrem”. Logo, não pode existir no Direito qualquer regra talhada a limitar a responsabilidade do causador do dano. O Brasil sempre se opôs à limitação de responsabilidade em favor do transportador marítimo. Rotulava-a como abuso manifesto. Manter esse posicionamento é, portanto, imprescindível para a defesa da ordem jurídica, a soberania constitucional do país e o bem da sociedade. É justamente contra isso que o Direito deve se levantar, pondo sua mão forte para premiar o justo e, assim, facilitar o fluxo das relações comerciais. Porque o ressarcimento integral é, antes e acima de tudo, uma questão de justiça.

CONCLUSÃO

Ao longo do trabalho, conclusões pontuais foram expostas, de modo que, aqui nos permitimos algo mais sumário, mas que, frente à exposição que a isto precedeu, guarda toda a substância do trabalho; de forma enxuta, terminantemente concisa, mas cheia de vida. Entendemos que, com a nova visão do Direito de Danos, a figura da cláusula de limitação de responsabilidade deixa de ter espaço no mundo atual. Anacrônica, para dizer o mínimo; imoral, e mais alguns adjetivos não muito bons, para ser sincero.

Em ato de boa-fé reconhecemos sua necessidade num momento em que tinha por objetivo fomentar um segmento em expansão, envolto num véu de riscos, como já foi o transporte marítimo internacional de cargas. Mas, desde meados do século passado, quando a indústria naval passou a um vertiginoso desenvolvimento, tais normas perderam sua razão de existir. Remanescentes de corpo, só lhes faltou adequar-se em espírito.

Hoje, com o fomento da tecnologia, sua existência equivale à concessão de um privilégio desmedido aos transportadores, incompatível com a visão social do Direito. Discordamos, por exemplo, do renomado jurista europeu quando diz:

“A la luz de lo expuesto, la opinión del autor es que la limitación de la responsabilidade cumple com uma función essencial para la indústria marítima. Si, a pesar de este punto de vista, alguien desea “demonizar” el concepto, la limitación de la responsabilidade por reclamaciones nacidas de Derecho marítimo debe ser considerada como un “mal necessário”, que originalmente fue creado para proteger a unos pocos, pero ahora, podría argumentarse, sirve como una salvaguardia para proteger a la sociedade em general”.

(GUTIÉRREZ, Norman A. Martinez, “La limitación de la responsabilidade por reclamaciones marítimas y su función en el mundo marítimo de hoy” in “El Derecho Marítimo de los Nuevos Tiempos, José Luis Garcia-Pita y Lastres y Otros, Cizur Menor (Navarra): Civitas (Thomson Reuters, 2018, p. 256)

Sim: fazemos parte dos que “demonizam” a cláusula de limitação de responsabilidade. Mas isso é motivo de orgulho, não de vergonha. Evidentemente, porque é coisa que fere o conceito de Justiça e antagoniza com a essência do Direito Natural. Ademais, ao dizer que a cláusula limitativa de responsabilidade é um “mal necessário” o autor reconhece que ela é ruim. Assim, perguntamos: e será mesmo necessária?

 Transportadores têm cada vez mais segurança e conforto. E isso não os impede de continuar a exigir benefícios de toda ordem, muitos dos quais se põem em plena contrariedade ao espírito do Direito contemporâneo, aliado à base filosófica do Direito Natural. Ainda que isso signifique um prejuízo para a sociedade inteira. Seus lucros, cada vez maiores, equivalem-se em tamanho aos danos que podem causar a terceiros; a despeito disso, insistem em manter vivas disposições antigas, incapazes de responder às necessidades dos tempos atuais.

Por isso insistimos: o sistema brasileiro é ao mesmo tempo tradicional e vanguardista, uma vez que, em seu sempiterno entendimento, continua a repudiar a cláusula limitativa de responsabilidade, obrigando o transportador marítimo a reparar integralmente o prejuízo decorrente de seus erros.

Muito se tem falado na primazia da vítima no novo enfoque do Direito de Danos, e sob essa ótica, nada mais certo que o danador repare a exatidão do dano causado por seus atos. Titular de contrato de adesão, o transportador marítimo não pode ter benefícios incompatíveis com a ordem moral e o Direito Natural em nome de um apego exagerado, desmedido e errado do clausulado contratual, sobretudo em negócios jurídicos que claudicam na direção da autonomia da vontade.

O discurso em favor da cláusula limitativa de responsabilidade é, hoje, mais do que antes puramente econômico, político, fruto de uma tradição para lá de questionável e com a profundidade de um pires. Quando esse discurso se encontra com o Direito do Seguro, tanto pior: a vítima não será apenas o segurador sub-rogado que busca o ressarcimento, mas todos os segurados da sua carteira de seguro internacional de transporte, estando presente o princípio do mutualismo em todas as fases do negócio do seguro, incluindo na busca do reembolso.

Prejudica-se a sociedade toda com o esvaziamento da dignidade do ressarcimento em regresso. Atinge-se a precificação de um seguro que, por sua vez, esbarra na cadeia geral de negócios, e o causador de ato ilícito, sem mais nem menos, deixa de responder pelo erro na medida em que o causou. Talvez nisso resida o aspecto mais diabólico da limitação de responsabilidade: o culpado não responde pela culpa; o responsável não arca com a responsabilidade.

Antes da Constituição Federal de 1998, o ordenamento jurídico brasileiro já repudiava a cláusula limitativa de responsabilidade. Respeitadíssima era a dignidade do ressarcimento em regresso do segurador. E assim tem de continuar a ser. Pois só dessa maneira permanecerá íntegro o princípio do mutualismo e o direito de ressarcimento em regresso, importante para o bem-estar do negócio de seguro e para a harmonia social. Afinal, a limitação de responsabilidade do autor do ato ilícito, do transportador danador, nada mais é do que a limitação do direito da vítima, do danado ou do seu segurador sub-rogado.

O Direito Canônico nos ensina: não basta ao fiel se arrepender sinceramente do seu pecado e dizer “mea culpa” para ver aperfeiçoado o sacramento da reconciliação. É preciso uma conduta efetiva de reparação, uma contrição de fato. E então, por mais que a responsabilidade civil tenha mudado de perfil e o conceito de culpa variado no tempo, a verdade é que nunca se deixou de punir eficazmente o causador do dano; seja para compensar de alguma forma a vítima, seja para o desestímulo de erros similares por parte dele e da sociedade em geral.

Pregado na cruz, Jesus Cristo viu no ladrão a seu lado um arrependimento sincero; o criminoso, acometido por uma intensa metanoia, havia sido capaz de ver, na figura macerada de um homem, a inefável majestade de um Deus. Ainda assim, Cristo não o isentou da pena — cruenta o quanto queira, mas justa segundo o sistema legal romano. Abriu-lhe a porta dos céus ao criminoso, que por reconhecimento do divino julgador acabava de fazer jus ao eterno idílio. Mas sua punição terrena não foi abonada; e, mesmo salvo, teve de pagar pelo mal que causou.

A reparação civil integral é princípio vetor, amparado pela ordem moral e que bem retrata a melhor forma de se encarar o Direito atual, a sociedade de danos e a visão da responsabilidade civil como promotora da Justiça.

Limitar a responsabilidade do causador do dano, qualquer que seja a fonte, nada mais é do que danar a vítima uma segunda vez e inibir a harmonia social.

Sim, podemos dar um rosto social ao assunto, transbordando os limites contratuais por conta do contexto atual. Vivemos tempos de grandes mudanças e de enormes desafios, tempos da Quarta Revolução Industrial.

A cada dia, o engenho humano se desenvolve e as atividades econômicas se fortalecem. Por mais que as tecnologias busquem a excelência, os ricos aumentam.

Tanto que o Direito também evoluiu substancialmente e hoje já se tem por certo, como um direito fundamental, o de ninguém ser vítima de um dano, algo muito maior e mais profundo do que o antigo neminem laedere.

O Direito atual trabalha até mesmo com a ideia de responsabilidade civil pela expectativa de dano potencial.

Para muito além da responsabilidade civil objetiva, essa ideia dispõe que o potencial de dano que alguém pode causar à outrem é, dependendo das particularidades do caso concreto, o bastante para se cogitar em dever de reparação.

Algo fantástico e, talvez, essencial para o desenvolvimento da cidadania.

Já não se trata de se aceitar ou não os chamados punitive damages, mas de tentar assegurar, de um modo ou de outro, o direito que todo o mundo tem de não ser vítima de dano.

Vanguardista? Sem dúvida, mas algo que tem que estar presente em toda e qualquer discussão séria a respeito da responsabilidade civil, seus desdobramentos e sua invulgar dimensão social.

Muito aproveita atentar que antes mesmo dessa visão mais recente e inovadora, o anseio pela necessidade de compensação justa do dano sofrido pela vítima e punição exemplar do seu causador já se fazia notar pelo princípio da reparação civil integral, presente em quase todos os ordenamentos jurídicos do mundo.

No caso específico do Brasil, o princípio se encontra taxativamente previsto no art. 944 do Código Civil e implicitamente presente no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, que assegura a reparação civil ampla e integral.

Considerando que o art. 5º trata dos direitos e garantias fundamentais e é marcado com o selo de cláusula pétrea, pode-se dizer que no Brasil a reparação civil integral é, mais do que um princípio de natureza civil, um direito fundamental constitucional, ancorado na cidadania.

Por isso, inaceitável a existência, nos dias de hoje, salvo em casos muito específicos, absolutamente especiais e extraordinários, normas, regras, cláusulas, enfim, qualquer espécie normativa, que tenha por objetivo a limitação de responsabilidade do causador do dano.

Toda limitação de responsabilidade do causador de um dano é o esvaziamento da direito da vítima, do ofendido.

Acrescento, com fundamento no Direito Natural e na própria ordem moral, que a limitação de responsabilidade aplicada em benefício do autor do ato ilícito ofende a dignidade da vítima e do Direito como um todo.

Não há superposição do conceito de Justiça ao de Direito se este é usado para beneficiar quem causa dano indevido à outrem. O Direito se torna claudicante, deformado, inimigo da Justiça.

Isso porque quem causa dano tem que arcar integralmente com os resultados e efeitos de sua conduta inidônea, nada aquém, talvez tudo além.

Por isso, a insurgência, quase com ares de uma Cruzada Santa, às normas legais e/ou contratuais limitadoras de responsabilidade.

Embora o objeto deste estudo seja a cláusula abusiva de limitação tarifada no contrato internacional de transporte marítimo de carga, o assunto repercute em outros campos. Veja-se, por exemplo, o caso da Convenção de Montreal, que bisou a de Varsóvia. Prevê a limitação de responsabilidade do transportador aéreo internacional de cargas em casos de faltas e avarias.

A norma é injusta e intolerável, para dizer o certo, e anacrônica, para dizer o mínimo!

Quando do nascimento da Convenção de Montreal – início do século passado -, da qual a de Montreal se valeu substancialmente, a indústria da navegação aérea se encontrava em gestação, os riscos eram demasiadamente elevados e mecanismos jurídicos de proteção se faziam necessários.

Hoje, a indústria é forte e saudável, tanto que as principais construtoras de aviões, Boeing e Airbus, trabalham com o chamado “risco zero” e a navegação aérea cada vez mais segura. Ora, em sendo assim, qual a razão de ser da antiga proteção legal, da limitação de responsabilidade?

E o caso dos transportes marítimos, alvo de nossa presente atenção? A engenharia naval avançou assustadoramente desde a Segunda Guerra Mundial e os navios são cada vez maiores, melhores e muito mais seguros. A tecnologia de informação permite o conhecimento prévio das condições climáticas a ponto de surpresas serem cada vez menores. Mais do que nunca, a navegação tem a precisão que a própria vida é incapaz de oferecer e que foi até cantada por poeta.

Justamente por conta das atuais tecnologias, as faltas e avarias apuradas nas cargas confiadas para transportes nada mais são do que vulgares desídias operacionais, incúrias administrativas, falhas empresariais inescusáveis das transportadoras aéreas. Merecem, então, benefícios normativos como os de limitações de suas responsabilidades? Isso é justo e moralmente ordenado em relação aos donos das cargas ou seus seguradores?

Afirma-se, aqui, com categórica convicção: não, não é justo nem mesmo tolerável aos olhos da moral!

A preocupação atual há de ser a compreensão da dinâmica da sociedade de risco e os direitos fundamentais, que, por seu turno, passa necessariamente pelo princípio da reparação integral e o repúdio ao conceito de limitação de responsabilidade, mesmo a de natureza tarifada, sobretudo quando presente em cláusula contratual abusiva.

É bem verdade que talvez em alguns poucos casos, quando confrontada com outros importantes postulados do Direito, como o da teoria da preservação da empresa, talvez a limitação possa ser admitida, mas sempre em caráter excepcional e diante de forte justificativa.

Mas, feita a exceção das exceções, o Direito tem que primar pela reparação civil integral sob pena de intolerável grau de injustiça, de acentuado formalismo e de gravíssimo prejuízo à vítima.

Aliás, é a vítima que tem que ser o alvo de todas atenções da hodierna responsabilidade civil, não o causador do dano. Na proteção máxima da vítima que reside o bem social e as funções restauradora, reequilibradora, principiológica e edificante do Direito, braço concreto da Justiça.

Não se pode mais admitir argumentos em defesa de cláusulas impositivas, eivadas de dirigismo contratual e que tenho por escopo limitar unilateralmente a responsabilidade do danador, eis que sua existência ofende substancialmente a própria essência da Justiça.

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