A responsabilidade civil da administração pública paulistana pelos danos e prejuízos decorrentes das chamadas “chuvas de verão”
Responsabilidade civil da Administração Pública (Municipal) - Danos e prejuízos decorrentes das chuvas de verão - Previsibilidade e esperabilidade - Dever da Administração de arrostar o perigo - Incúria operacional e menoscabo administrativo do Poder Público - Conduta omissiva grave e juridicamente relevante - Obrigação legal de manutenção dos sistemas de escoamento de águas e de tratamento de esgoto - Fato conhecido há anos - Repetição do quadro danoso - Prévio e amplo conhecimento do Poder Público - Ofensa ao princípio constitucional da Eficiência - descarcaterização da alegação de força maior.
Ano após ano chove intensamente na cidade de São Paulo nos meses de novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março.
São as chamadas chuvas de verão, causadoras de danos e prejuízos expressivos.
As chuvas, como seus efeitos, são conhecidas de todos, especialmente dos administradores públicos.
Desde já convém frisar que as chuvas nos referidos meses do ano são fenômenos amplamente conhecidos, esperados, previsíveis. Logo, não são fenômenos que se ajustam ao conceito de fortuidade.
Os danos e os prejuízos derivados das chuvas podem e devem ser creditados exclusivamente a desídia operacional e a incúria administrativa do Administrador Público.
A cidade de São Paulo é o exemplo mais emblemático e triste do quão nociva é a omissão e a negligência da Administração Pública diante de um problema conhecido e que, ao menos há quarenta anos, documentadamente, flagela a cidade.
Diante disso é que ora se defende a responsabilidade civil da Administração Pública Municipal por todos os danos e prejuízos aos administrados, ao seus respectivos acervos patrimoniais, diretamente ligados às chuvas de verão.
A Administração Pública Municipal tem que responder pelos danos e prejuízos patrimoniais decorrentes das chuvas de verão que atingiram e atingem anualmente a cidade de São Paulo, porque sua conduta foi e é manifestamente omissiva e contrária aos interesses da sociedade e aos princípios do Direito Público.
Em verdade, a postura da Administração ofendeu e ofende o próprio texto constitucional ao desconsiderar o princípio da eficiência que, já faz razoável tempo, passou a integrar os princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, imparcialidade, moralidade e publicidade.
Há cerca de quatro décadas que a área metropolitana da capital paulista é acossada por chuvas torrenciais e seus efeitos desastrosos nos primeiros meses de casa ano.
Por mais que o evento possa ter alguns desdobramentos surpreendentes, trata-se de fato incontroverso que as chuvas ocorrerão, como ocorreram nos últimos tempos.
E a cada ano, por conta do colapso urbanístico paulistano, os efeitos são piores.
Logo, não há que se falar em imprevisibilidade e inevitabilidade.
As chuvas torrenciais são fenômenos previsíveis e esperados.
Nunca é demais lembrar que para um evento ser chancelado com o rótulo de fortuidade, faz-se necessário que este mesmo evento seja, a um só tempo, imprevisível, inesperado e irresistível.
O fato que imanta cada um dos sinistros analisados passa ao largo dos citados itens, na medida em que a previsibilidade e a evitabilidade (ainda que parcial, decorrente da esperabilidade) são os elementos de rigor.
E nem mesmo a irresistibilidade pode ser configurada com plenitude relativamente ao suporte fático "chuvas torrenciais", haja vista serem estas não as causas derradeiras, mas apenas as primeiras de um rol de concausas.
Com efeito, os prejuízos verificados com as chuvas torrenciais somente são materializados por conta da gravíssima e inescusável desídia da Administração Pública que não cuida, como deveria cuidar, dos sistemas de esgoto e de vazão d´água do município de São Paulo.
Bueiros imundos e obstaculizados, sistema de drenagem ineficientes e ultrapassados, construções irregulares em lugares impróprios, tratamento de saneamento básico irregular, galerias subterrâneas entupidas de lixos e sujidades, além de outros tantos fatos demonstram o menoscabo da Administração e, portanto, sua culpa em sentido estrito (a despeito da teoria da responsabilidade administrativa).
Se as chuvas são as causas primeiras, as condutas omissivas e irresponsáveis da Administração são as causas derradeiras e maiores do quadro de destruição que se observa a partir da leitura simples de cada dossiê de sinistro que compõem o lote de sinistros.
E a imputação de responsabilidade civil da Administração Pública é perfeitamente possível aos olhos do ordenamento jurídico, com previsão de índole constitucional.
Sobre a possibilidade destacada, JOSÉ DA SILVA PACHECO assim dispõe num excelente parecer publicado na RT 635:103:
"Houve, pelo art. 37, §6º, da CF de 1988, alteração no concernente à responsabilidade civil, inspirada no princípio basilar do novo Direito Constitucional de sujeição de todas as pessoas, públicas ou privadas, aos ditames da ordem jurídica, de modo que a lesão aos bens jurídicos de terceiros traz como consequência para o causador do dano a obrigação de repará-la.".
E concordamos com Da Silva Pacheco, haja vista a Administração Pública também ser orientada pelo postulado geral do "neminem laedere", isto é, "à ninguém é dado causar dano".
Prossegue o parecerista afirmando: "(atingiu-se) [...] novo patamar para envolver a responsabilidade das pessoas de Direito Público (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e Autarquias) e de Direito Privado (empresas públicas, sociedades de economia mista e sociedades privadas concessionárias) pelos danos causados, diretamente, pela execução de serviço público.".
Outro não é o abalizado entendimento do renomado doutrinador CARLOS ROBERTO GONÇALVES em sua festejada obra "Responsabilidade Civil" (Editora Saraiva), cuja página 187 da 11ª Edição, ano de 2009, contém a seguinte afirmação:
"Estendeu-se essa responsabilidade, expressamente, às pessoas jurídicas de direito público e às de direito privado, prestadoras de serviços públicos.".
E a referida obra também contém vasta coleção de decisões judiciais colegiadas, inclusive do próprio STF - Supremo Tribunal Federal no mesmo e rigoroso sentido.
Na mesma obra, páginas 192 e 193, o ilustre doutrinador, reportando-se ao igualmente respeitado José Cretella Júnior (Tratado de direito administrativo, 1. ed., Forense, v. 8, p. 210, n. 161) faz observação que cabe como luva à mão ao suporte fático de imediato interesse dessa Seguradora, a saber:
"Não apenas a ação produz danos. "Omitindo-se, o agente público também pode causar prejuízos ao administrado e à própria administração. A omissão configura a culpa "in omittendo" e a culpa "in vigilando". São casos de "inércia", casos de "não-atos". Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado pela "inércia" ou "incúria" do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o "bonus pater familiae", nem como o "bonus administrador". Foi negligente, às vezes imprudente e até imperito.".
Para que se possa considerar a responsabilidade civil do Estado (entenda-se: Administração Pública) é importante observar a existência de algumas situações condicionantes, com destaque especial ao que disse o renomado professor CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, no artigo "Responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos administrativos", publicado na RT 552,11-20: "(...) responsabilidade do Estado no Direito brasileiro é ampla.".
Mas, a despeito da afirmação acima reproduzida, o mesmo e ilustre professor inseriu um item limitador quanto à imputação de responsabilidade do Estado, de capital importância ao presente estudo.
Segundo Bandeira de Mello, em se tratando de conduta omissiva, a responsabilidade do Estado somente poderá ser tratada à luz da teoria subjetiva, ou seja, aquela cuja irrupção depende do procedimento contrário ao Direito, doloso ou culposo.
Com isso, há em termos práticos uma mitigação da teoria do risco administrativo e, mesmo, da aplicação da teoria objetiva (a que parte da presunção legal de responsabilidade da parte faltosa) contra o Poder Público.
Em virtude do renome do parecerista e da excelência do seu conteúdo, o posicionamento em destaque espraiou-se rapidamente nos meios doutrinários e judiciais do país, vingando até hoje, ainda que sobremodo relativizado.
O Direito, contudo, é cambiário por natureza. A dialética que o notabiliza exige sempre constante aprimoramento e evolução. Não por acaso é do ex-professor de Direito e falecido governador do Estado de São Paulo, ANDRÉ FRANCO MONTORO, uma das mais impressionantes definições da matéria "in" Estudos de Filosofia de Direito: "Longe de ser “estática”, a vida do direito revela um contínuo “vir a ser”. Forças em conflito, que lutam por interesses opostos, dão origem a normas e situações jurídicas, que podem representar a dominação de alguns ou a conquista de muitos”.
E, com ainda mais expressão, harmonizando o conceito de Direito ao de Justiça, ensina com autoridade singular e peso de bigorna o respeitadíssimo jurista IVES GANDRA DA SILVA MARTINS "in" O Estado de São Paulo, "Direito Natural e Justiça", edição de 5.jan.1985: “A justiça é fundamentalmente, aspiração do ser humano, que nasce com ele, acompanha-o durante toda a vida e não desaparece quando ele morre. A aspiração de justiça do ser humano transcende sua própria morte, porque também é anterior à sua existência.”.
Essa busca constante pela Justiça e pelas melhores interpretação e aplicação do Direito gerou, ainda que em meio à controvérsias e polêmicas, inteligência favorável à incidência da teoria objetiva mesmo nos casos de condutas comissivas, tendo-se em conta o tipo de omissão e as particularidades de um dado caso concreto.
O novo entendimento começa a se galvanizar no ideário jurídico nacional, tendo-se como importante porta-voz SÉRGIO CAVALLIERI FILHO (Programa de Responsabilidade Civil, Atlas, 7. ed., 2007, p. 230) que ao tratar dos "danos por omissão do Estado" dá efetivamente entendimento amplo à regra constitucional, pontificando:
"Em nosso entender, o art. 37, §6º, da Constituição, não se refere apenas à atividade comissiva do estado; pelo contrário, a ação a que alude engloba tanto a conduta comissiva como a omissiva".
Infere-se daí, pois, que a Administração Pública, mesmo nos casos omissivos, pode e deve responder segundo a sistemática da teoria objetiva, fato que constitui enorme vantagem ao administrado numa determinada lide judicial.
E o grande doutrinador ainda tem o cuidado de subdividir a omissão em duas espécies: genérica e específica, sendo que para a segunda, a que interesse mais imediatamente ao bem da vida deste parecer, apresenta o seguinte conceito: "(...) por omissão sua, crie situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo.".
Ora, pode ser diferente o entendimento em relação ao dever de zelar pela urbanidade da cidade e de cuidar de um problema crônico, endêmico, que se repete ano após ano, sempre no mesmo período?
Pode alguém, em sã consciência, afirmar que o Poder Público não tinha e tem o dever de agir, de impedir, sendo, portanto, sua inércia absolutamente injustivicável, tangenciando conduta equipara à criminosa, tamanhas a temeridade e a irresponsabilidade?
Quer nos parecer que não, até mesmo porque a referida conduta, estacionada na zona de serviço público essencial, de natureza multifacetada, também tem sobre si importantes outros signos jurídicos.
No mesmo livro, mais precisamente na página 232, Cavallieri Filho também afirma: "Os nossos Tribunais têm reconhecido a omissão específica do Estado quando a inércia administrativa é a causa direta e imediata do não-impedimento do evento (...)".
Nunca é demais repetir: as chuvas de verão, mais ou menos intensas, são acontecimentos costumeiros, regulares, bem à margem de conceitos como imprevisibilidade e inesperabilidade. Mesmo que extremamente intensas não são elas as verdadeiras causadoras dos sinistros, mas, sim, a desídia da Administração que, mesmo sabendo de antemão que tais eventos ocorrerão, não toma as medidas preventivas cabíveis, limpando os bueiros, desentupindo os canos de escoamento de esgoto, construindo sistemas de escoamento e de drenagem de água, "piscinões" e operando a "desfavelização" da cidade, pois sabido e ressabido que as favelas, ocupantes de lugares absolutamente impróprios, potencializam os efeitos das águas torrenciais.
O caos adminsitrativo é o verdadeiro causador dos sinistros destacados nos dossiês em estudo.
Cada automóvel, cada garagem, cada acervo patrimonial ofendido tem a chuva como causa primeira, mas não definitiva e verdadeira dos prejuízos decorrentes.
A culpa (culpa gravíssima equiparada ao quase-dolo) da Administração Pública salta aos olhos e na esteira dela a responsabilidade incontroversa, com o dever de ressarcimento em regresso aos cofres dessa Seguradora.
A ação (que aglutinando todos os casos será milionária e substanciosa) poderá não só recuperar com justiça os prejuízos para essa Seguradora como, também, mudar a mentalidade da matéria, fomentado visão vanguardista e correta, de inegável cunho social.
Fala-se em cunho social não só por conta do mutualismo que informa a relação de seguro, mas por forçar a Administração, por meio do Poder Judiciário que, em sentido amplo, também a compõem, a ser mais diligente e eficaz, como determinam os princípios constitucionais, forçando-a a empregar melhor e escorreitamente os recursos recebidos da tributação.