TCU e Previdência Complementar Fechada: os Limites de um controle em expansão
Mariana Monte Alegre de Paiva
Bianca Cerboncini
Sócia e associada de Pinheiro Neto Advogados
A atuação do Tribunal de Contas da União (“TCU”) sobre entidades fechadas de previdência complementar com patrocínio público voltou ao centro do debate em 2025. De um lado, consolidou-se, no plano infralegal, um arcabouço de fiscalização cada vez mais sofisticado, com a edição da Instrução Normativa TCU nº 99/2025, que disciplina o acompanhamento de investimentos e de equacionamentos de déficits atuariais das EFPC patrocinadas por entes federais. De outro, o Supremo Tribunal Federal, no MS 37.802/DF, sob relatoria do Ministro Zanin, reafirmou a competência do TCU para fiscalizar diretamente a governança dessas entidades, afastando a tese de que elas estariam imunes ao controle externo por sua natureza privada.
Em síntese, o STF partiu da leitura conjunta dos artigos 70 e 71 da Constituição Federal para concluir que a competência fiscalizatória do TCU se projeta sobre “qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda”. A natureza privada das EFPC não seria, por si, elemento apto a afastar a incidência dessa jurisdição de contas, caso haja risco de responsabilidade patrimonial do erário.
Aplicando esse raciocínio ao universo da previdência complementar, o Ministro Zanin destacou que a própria Lei Complementar nº 109/2001 prevê, em determinadas circunstâncias, a necessidade de aportes adicionais pelos patrocinadores públicos para equacionamento de déficits. Em um cenário em que a Administração Pública Federal aportou, entre 2015 e maio de 2022, cerca de R$ 9,47 bilhões em fundos de pensão de patrocínio estatal[1], com previsão de novos aportes bilionários, o risco não é meramente hipotético. Nessa perspectiva, a fiscalização do TCU sobre a governança e a gestão de riscos das EFPC é entendida como mecanismo de proteção concreta ao patrimônio público.
Esse entendimento não surge em terra completamente virgem. O STF já havia sinalizado, em precedentes como os MS 34.738/DF e 38.718/DF, ambos relatados pelo Ministro Barroso, que a origem pública dos recursos (e não a natureza jurídica da entidade) é o critério determinante para atrair a competência do TCU, inclusive quando se trata de entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas por empresas estatais. A decisão no MS 37.802/DF, contudo, densifica essa linha interpretativa ao enfrentar diretamente a pretensão de exclusão das EFPC da esfera de controle de primeira ordem do Tribunal de Contas e, ao final, denegar a segurança pleiteada pelo SINDAPP.
Do ponto de vista do sistema, a mensagem é clara: para o Supremo, o TCU pode fiscalizar, de forma direta, a aplicação de recursos e a estrutura de governança das EFPC de patrocínio público, inclusive em aspectos sensíveis como políticas de investimentos, processos decisórios e mecanismos de gestão de riscos. Essa leitura dialoga com o movimento interno do próprio TCU, que, desde o Acórdão 3.133/2012, vem se afastando da ideia de um controle meramente “indireto” para consolidar uma jurisdição direta sobre essas entidades, revertendo o entendimento mais contido que havia prevalecido em 2011.
Em síntese, a ampliação da competência do TCU se apoia no argumento de proteção ao erário, mas tensiona o desenho regulatório concebido pela LC nº 108/2001, que estruturou uma verdadeira cadeia de fiscalização: a PREVIC como órgão técnico central, responsável pela supervisão direta das EFPC; os patrocinadores públicos com dever de fiscalização sistemática das entidades que financiam, reportando seus resultados à autarquia; e o TCU voltado ao controle dos próprios patrocinadores e da PREVIC. A partir de 2012, contudo, essa lógica foi gradualmente substituída pela ideia de que as EFPC de patrocínio estatal administrariam “recursos públicos” e, portanto, poderiam ser controladas diretamente pelo TCU, movimento reforçado pela IN TCU nº 99/2025, que institui rotinas de monitoramento contínuo e condiciona, em alguma medida, a agenda fiscalizatória da PREVIC às demandas do Tribunal.
Sob essa ótica, embora haja ganhos de transparência sobretudo em planos que admitem déficits – como os de benefício definido ou de contribuição variável na fase de benefício, em que desequilíbrios atuariais podem gerar aportes adicionais do patrocinador público –, a generalização do raciocínio para todo o universo das EFPC de patrocínio estatal dilui a fronteira entre recursos públicos e privados e projeta o controle externo sobre situações em que não há sequer possibilidade jurídica de déficits, como nos planos de contribuição definida. O resultado potencial é um “overload fiscalizatório”, com sobreposição de controles entre PREVIC, patrocinadores, TCU e outros órgãos, ampliando incertezas regulatórias.
A decisão no MS 37.802/DF, ao mesmo tempo em que valida a porta de entrada do TCU nas EFPC de patrocínio público, deixa em aberto o desenho fino da amplitude e da forma desse controle, sinalizando que a solução não passa por negar a competência constitucional do Tribunal, mas por reconduzi-la a um modelo coordenado e subsidiário: com a PREVIC reafirmada como eixo central de supervisão técnica, patrocinadores públicos cumprindo seu papel de fiscalização sistemática e o TCU intervindo de modo direto apenas quando houver clara conexão com recursos públicos ou falhas graves na atuação dos demais atores. Em última análise, a questão que se coloca não é se o TCU pode fiscalizar essas entidades, mas como essa competência será exercida: se como reforço a um ecossistema de supervisão já complexo ou como vetor de insegurança e duplicidade fiscalizatória, com impactos sobre a eficiência e a própria atratividade da previdência complementar fechada.
[1]Câmara dos Deputados (Brasil).Requerimento nº 271/2023 – CFFC. Relatório com informações extraídas do Processo TC 016.026/2020-9 do Tribunal de Contas da União. Brasília: Câmara dos Deputados, 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2344973&filename=Tramitacao-REQ+271/2023+CFFCAcesso em: 26.11.2025
Em dezembro de 2025


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