Cassio Gama Amaral

Cassio Gama Amaral

Sócio do Machado Meyer Advogados. Advogado qualificado no Brasil e em Portugal. Doutorando em Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em direito pela Grande Escola de Comércio de Lyon/França e Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Experiência nas indústrias de seguros, resseguros, previdência privada e infraestrutura, assessorando clientes em deals, assuntos regulatórios e de contencioso, além de consultoria em diferentes ramos de seguros de grandes riscos. Envolvimento ativo em sinistros relevantes e em complexas disputas de (res)seguro e infraestrutura no Brasil nos últimos tempos. Professor de pós-graduação na Escola Nacional de Seguros e na Escola Superior de Advocacia, além de autor de diversas publicações sobre direito de seguros. Membro dos Conselhos Executivo e Consultivo do Instituto de Inovação em Seguro e Resseguros da Fundação Getúlio Vargas, da Associação Internacional de Direito de Seguros (AIDA), dos Comitês de Seguro, de Mediação e de Contencioso da International Bar Association (IBA), bem como dos Comitês Jurídico e de Garantia e Financiamento da ABDIB.

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Efeitos da Recuperação Judicial sobre o Seguro Garantia Judicial – Parte II - Execução Fiscal

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No último artigo desta coluna tratamos dos efeitos dos pedidos de processamento de recuperação judicial e da homologação do plano de recuperação para as apólices de seguro garantia apresentadas nas execuções de natureza cível e trabalhista, cujos créditos estão sujeitos à recuperação judicial do devedor.

Neste novo artigo, teceremos alguns comentários sobre os efeitos da recuperação judicial para as apólices apresentadas no âmbito das execuções fiscais, as quais não estariam a ela sujeitas.

Pois bem. Ao passo que nas execuções cíveis e trabalhistas o acionamento do seguro garantia fica condicionado ao trânsito em julgado da ação, nas execuções fiscais o sinistro pode ser verificado antes mesmo de definitivamente encerrado o processo.

Nos termos da Circular SUSEP nº 477/13, bem como da Portaria PGFN nº 164/14, que trata dos requisitos para a aceitação de seguro garantia em execução fiscal de débitos inscritos em dívida ativa da União, resta caracterizado o sinistro quando do não pagamento do valor executado pelo tomador, uma vez assim determinado pelo juízo.

Daí já se extrai (i) a subsidiariedade da responsabilidade das seguradoras diante do débito garantido, visto que o sinistro somente ocorre diante do não atendimento da intimação para pagamento do tomador e (ii) que apenas é relevante a determinação do juízo para pagamento, não necessariamente quando do trânsito em julgado.

Também consta dos referidos normativos que a seguradora será obrigada a depositar o valor garantido se até 60 dias antes do vencimento da apólice, esta não for renovada ou substituída pelo tomador.

Nesse contexto, em sede de execução fiscal, há risco de acionamento do seguro nos seguintes momentos: (i) recebimento dos embargos à execução sem efeito suspensivo; (ii) quando proferida sentença que julga improcedentes ou extingue sem exame de mérito os embargos à execução fiscal, sem que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso de apelação, (iii) quando transitada em julgado decisão final de improcedência ou de extinção sem apreciação do mérito dos embargos à execução ou da ação que discute a procedência dos créditos executados e (iv) quando não substituída ou renovada a garantia em até 60 dias antes do seu vencimento.

Destaque-se que os itens “i” e “ii” dizem respeito a matérias controvertidas nos tribunais, haja vista ser discutível se, diante do regime específico da Lei de Execuções Fiscais (“LEF”), seria possível o recebimento de embargos à execução fiscal sem efeito suspensivo, bem como se poderia o seguro garantia judicial ser acionado antes do trânsito em julgado, frente a sua equiparação a depósito judicial, conforme se extrai da LEF (artigos 9º, § 3º, 15, I, e 32, § 2º) e do quanto disposto no artigo 835, §2º, do Novo Código de Processo Civil.

Ao contrário do que se dá nas execuções de natureza cível e trabalhista, a execução fiscal não deve ser suspensa em razão do deferimento da recuperação judicial. Nesse sentido, o artigo 187 do Código Tributário Nacional dispõe que “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”. Seguindo a mesma tônica, o artigo 5º da LEF prevê que “a competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro Juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário”.

Ainda mais específico no tocante ao prosseguimento da execução fiscal, consigna o artigo 6º, § 7º, da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (“LFRE”) que “as execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a condição de parcelamento”.

Entretanto, a jurisprudência, especialmente o STJ, tem relativizado estes comandos. Isso se dá, principalmente, pelo fato de que, via de regra, as empresas em recuperação judicial possuem expressivo passivo fiscal, de modo que prosseguir com os atos de expropriação no âmbito das execuções fiscais certamente comprometeria o plano de pagamento futuro de outros credores e, consequentemente, o desfecho da recuperação e a continuidade da atividade produtiva.

De fato, eventual penhora de ativos e/ou leilão de bens da empresa recuperanda em sede execução fiscal que tramite independentemente colocaria em cheque o atendimento do quanto previsto no plano aprovado no bojo da recuperação judicial, o que, por sua vez, esvaziaria o seu propósito, voltado especialmente para a preservação da empresa.

Nesse contexto, a 2ª Seção do STJ, competente para julgamento das questões cíveis do Superior Tribunal, possui entendimento consolidado no sentido de que, a despeito de não ficarem suspensas as execuções fiscais, os atos de expropriação destes processos devem ser submetidos ao juízo da recuperação judicial (CC 116.213/DF).

No âmbito da 1ª Seção da Corte Superior, competente para julgamento das questões de direito público, o entendimento é controvertido entre as duas Turmas que a compõem. A 1ª Turma possui entendimento consolidado pela submissão dos atos de expropriação ao juízo da recuperação judicial (p. ex. AgInt no AREsp 777387/SC). A 2ª Turma, por sua vez, afirma que a execução fiscal apenas poderia ser suspensa se o deferimento da recuperação judicial se desse mediante o oferecimento de certidão negativa de débitos da empresa recuperanda. Caso o processamento da recuperação tenha se dado independentemente de tal exigência, deveria seguir normalmente execução fiscal, inclusive os atos de expropriação (REsp. 1.512.118/SP).

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, declarou ser da 2ª Seção a competência para solucionar os conflitos de competência entre o juízo da recuperação judicial e o juízo da execução fiscal (QO no CC nº 120.432).

Percebe-se, portanto, forte tendência do STJ para o reconhecimento de que, ainda que se possa admitir o prosseguimento das execuções fiscais concomitantemente com o processamento da recuperação judicial, quaisquer atos constritivos ou de expropriação da garantia prestada na execução fiscal devem passar pelo crivo do juízo da recuperação, incluindo o acionamento do seguro garantia judicial para execução fiscal.

Assim, ainda que a condição fixada na apólice para reclamação de sinistro se implemente em sede de execução fiscal movida em face de empresa em recuperação judicial, não poderia o juízo da execução fiscal determinar o seu acionamento, sendo reservada a competência para a prática de tal ato ao juízo da recuperação judicial.

Sanada a questão da competência para excussão da garantia, tem-se que, com o pagamento da indenização pela seguradora após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o crédito desta em face da tomadora teria natureza extraconcursal, não se submetendo, portanto, ao plano de recuperação judicial, uma vez que é crédito decorrente de obrigações contraídas pelo devedor durante a recuperação judicial, nos termos do artigo 67 da LRFE.

Se não se considerar o crédito da seguradora decorrente do pagamento da indenização securitária após o deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial um crédito extraconcursal que então, ao menos, seja ele considerado, para fins de classificação no seio da recuperação, um crédito de natureza fiscal, não nos parecendo lícito ao juízo da recuperação tentar desconsiderar a sua real natureza extraconcursal e enquadrá-lo como um crédito quirografário.

Em suma, concluímos que, no caso do seguro garantia prestado em sede de execução fiscal, via de regra, o sinistro se caracteriza com o não pagamento do tomador quando determinado pelo juízo, o que pode se dar antes mesmo do trânsito em julgado, apesar de haver controvérsia nos tribunais quanto a este último ponto. Além disso, a despeito da controvérsia nos tribunais inferiores, o STJ tende a decidir pela incompetência do juízo da execução fiscal para acionamento do seguro garantia, devendo tal ato ser submetido ao juízo da recuperação judicial. Finalmente, tem-se que, caso a seguradora venha a pagar a indenização após o deferimento do processamento da recuperação judicial, o seu crédito em face da tomadora teria natureza extraconcursal.

(24.07.2017)