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Paridade contributiva no regime de previdência complementar: o caráter absoluto da vedação de aporte de recursos a entidades de previdência privada, por parte dos chamados patrocinadores públicos, em valores superiores aos vertidos por participantes

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Title: contributive parity in the complementary pension regime: the absolute forbiddance of supplying resources on private pensions entities by the so called public sponsors, in higher values than those injected by participants.

Leonardo Vasconcellos Rocha
Procurador Federal, Coordenador de Consultoria e Assessoramento Jurídico da Procuradoria Federal junto à PREVIC

RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de delimitar o alcance da única situação em que é permitido o aporte de recursos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista a entidades de previdência privada (CF/88, art. 202, § 3º): quando tais entidades públicas tornam-se patrocinadoras de um plano de benefícios e há paridade entre suas contribuições e a dos respectivos participantes. Busca-se compreender, primeiramente, os propósitos que impulsionaram a inclusão desta previsão no Texto Constitucional, por ocasião da Emenda 20/98. Posteriormente, é traçado um panorama das percepções do instituto da paridade contributiva no âmbito da legislação que regulamentou o regime de previdência privada (LCs 108 e 109, 2001), baseada nas inovações implementadas pela citada Emenda. Com base na coexistência e harmonização dos ditames constantes de ambos os diplomas, identifica-se o papel de cada qual na regulamentação dos preceitos da EC 20/98. Finalmente, conclui-se que o mandamento constitucional da paridade contributiva incide de modo pleno sobre qualquer que seja o aporte realizado por patrocinador sujeito à LC 108/2001 (norma específica), independentemente da correspondente classificação contributiva prevista na LC 109/2001 (norma geral).

PALAVRAS-CHAVE: Previdência complementar. Entidades públicas. Paridade contributiva.

ABSTRACT: The present work aims to define the scope of the only situation where it is permitted investment of resources of the Union, States, Federal District and Municipalities, its agencies, foundations, public companies and mixed capital companies in private pension funds (CF/88, art. 202, § 3): when such public entities become sponsors of a benefit plan and there is parity between their contributions and those paid by participants. We seek to understand, first, the purpose that prompted the inclusion of this provision in the Constitutional Text, by the Amendment 20/98. Later, an overview is drawn from the perceptions of the contributive parity rule under the private pension’s legal system (LCs 108 and 109, 2001), based on the innovations implemented by the aforementioned Amendment. Based on the coexistence and harmonization of the dictates contained in both acts, we identify the role of each in the regulation of the precepts of the EC 20/98. Finally, we conclude that the constitutional commandment of contributive parity fully covers whatever contribution made by sponsor subjected to the LC 108/2001 (special rule), regardless of classification corresponding provided for in LC 109/2001 (general rule).

KEYWORDS: Complementary Pension funds. Public entities. Contributive parity.

I INTRODUÇÃO

Entre as diversas previsões relativas ao regime de previdência privada incluídas na Constituição Federal pela Emenda Constitucional 20, de 1998, que reformulou seu art. 202, o presente trabalho concentra-se no que dispôs seu § 3º:

É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.

Segundo tal dispositivo, estaria, em regra, proibida a destinação de recursos públicos para fundos de pensão. A única exceção a tal mandamento consistiria na possibilidade de injeção de tais recursos por entidades públicas que assumissem a condição de patrocinadoras de um plano de benefícios operado por entidade de previdência complementar.

Neste caso excepcional, entretanto, fixou-se um balizamento, em princípio, clarividente: “em hipótese alguma sua [entidade pública] contribuição normal poderá exceder a do segurado”. Trata-se do instituto da paridade contributiva.

Ocorre que, não raro, operadores do sistema – patrocinadores, participantes, órgãos regulador e fiscalizador, bem como entidades fechadas de previdência complementar – relutam na delimitação da aplicabilidade desta contribuição paritária.

Isto se deve, em grande medida, ao vocábulo normal atribuído à contribuição de responsabilidade do patrocinador. A depender da linha interpretativa seguida, sua presença no texto do art. 202, § 3º, por si só, representaria a possibilidade de se instituírem contribuições outras, que não as normais, livres das amarras da paridade. Por outro lado, há o risco de, na abertura de precedentes de tal ordem, incorrer-se no completo esvaziamento da limitação imposta.

No intuito de dirimir tal controvérsia, busca-se compreender, primeiramente, os propósitos que impulsionaram a inclusão desta previsão no Texto Constitucional, de modo a nortear sua aplicação no plano infraconstitucional.

Posteriormente, é traçado um panorama das percepções do instituto da paridade contributiva no âmbito da legislação que regulamentou o regime de previdência privada (LCs 108 e 109, 2001), baseada nas inovações implementadas pela citada Emenda.

Com esteio na coexistência e harmonização dos ditames constantes de ambos os diplomas, identifica-se o papel de cada qual na regulamentação dos preceitos da EC 20/98, para, finalmente, se chegar a uma conclusão acerca do exato alcance da paridade contributiva.

II EMENDA CONSTITUCIONAL 20/98: A CRIAÇÃO DO INSTITUTO DA PARIDADE CONTRIBUTIVA

A Emenda Constitucional 20, de 15 de dezembro de 1998, foi o veículo legislativo responsável pela criação do instituto da paridade contributiva para as entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas por entes da Administração direta e indireta.

Convém, então, transcrever-lhe os trechos responsáveis pela disciplina do tema:

Art. 1º - A Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:
[...]
Art. 202 – O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, será facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.
§ 1º - A lei complementar de que trata este artigo assegurará ao participante de planos de benefícios de entidades de previdência privada o pleno acesso às informações relativas à gestão de seus respectivos planos.
§ 2º - As contribuições do empregador, os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.
§ 3º - É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.
§ 4º - Lei complementar disciplinará a relação entre a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada, e suas respectivas entidades fechadas de previdência privada.
§ 5º - A lei complementar de que trata o parágrafo anterior aplicar-se-á, no que couber, às empresas privadas permissionárias ou concessionárias de prestação de serviços públicos, quando patrocinadoras de entidades fechadas de previdência privada.
§ 6º - A lei complementar a que se refere o § 4º deste artigo estabelecerá os requisitos para a designação dos membros das diretorias das entidades fechadas de previdência privada e disciplinará a inserção dos participantes nos colegiados e instâncias de decisão em que seus interesses sejam objeto de discussão e deliberação.
[...]
Art. 5º - O disposto no art. 202, § 3º, da Constituição Federal, quanto à exigência de paridade entre a contribuição da patrocinadora e a contribuição do segurado, terá vigência no prazo de dois anos a partir da publicação desta Emenda, ou, caso ocorra antes, na data de publicação da lei complementar a que se refere o § 4º do mesmo artigo.
Art. 6º - As entidades fechadas de previdência privada patrocinadas por entidades públicas, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, deverão rever, no prazo de dois anos, a contar da publicação desta Emenda, seus planos de benefícios e serviços, de modo a ajustá-los atuarialmente a seus ativos, sob pena de intervenção, sendo seus dirigentes e os de suas respectivas patrocinadoras responsáveis civil e criminalmente pelo descumprimento do disposto neste artigo.
Art. 7º - Os projetos das leis complementares previstas no art. 202 da Constituição Federal deverão ser apresentados ao Congresso Nacional no prazo máximo de noventa dias após a publicação desta Emenda.

Depreende-se dos dispositivos colacionados, que a paridade contributiva é exigível para as entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas por órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista. Em especial, destaca-se a prescrição do § 3º do art. 202 da CF, incluída pela Emenda Constitucional 20/98, a qual impõe sua observância entre a contribuição normal das “patrocinadoras públicas” e dos segurados.

Com o propósito de possibilitar uma adaptação estruturada e os consequentes ajustes necessários, o art. 5º da norma em comento estabeleceu um prazo para a vigência desta imposição, o qual seria de dois anos contados a partir da publicação da Emenda ou, caso ocorresse antes, quando da publicação da lei complementar referida pelo § 4º do art. 202 da CF.

Em reforço à imposição referida, a EC 20/98, por meio de seu art. 6º, expressamente adverte os dirigentes de entidades fechadas de previdência complementar e de entidades governamentais patrocinadoras que o descumprimento da prescrição de paridade contributiva, com os consequentes ajustes nos planos de benefícios e serviços, ensejaria a intervenção em tais instituições e a responsabilização civil e criminal dos respectivos dirigentes.

Eis os principais delineamentos do novo instituto idealizado pela Emenda Constitucional 20/98. Pelos contornos apresentados, é possível perceber que se trata da concretização de uma medida voltada para a redução de dispêndios públicos e para uma racionalidade na gestão dos recursos públicos[1].

É cediço que planos previdenciários podem ser muito onerosos se muito generosos forem em seus benefícios. É sabido, também, que são numerosos os participantes e assistidos beneficiados por planos previdenciários oferecidos por entidades fechadas patrocinadas por entidades da Administração Pública direta e indireta.

Nesse sentido, a racionalização da gestão dos recursos públicos e uma redução de gastos públicos acabam por demandar a fixação de certos limites na conduta dos entes públicos enquanto patrocinadores de fundos de pensão. Quando se impõe uma restrição na contribuição dos patrocinadores públicos, inevitavelmente algumas benesses previstas nos planos de benefício terão que ser revistas, na medida em que poderão não ser mais viáveis atuarialmente.

A readequação dos benefícios ofertados pelas entidades fechadas de previdência complementar patrocinadas por entidades públicas, por uma perspectiva, é a outra face da moeda da imposição de uma restrição de conduta: a paridade contributiva imposta aos patrocinadores públicos.

Não é ocioso lembrar que a receita dos patrocinadores públicos advém dos tributos extraídos compulsoriamente de toda a sociedade ou dos preços pagos pela prestação de serviços públicos. A pressão para a sustentabilidade dos planos de benefícios patrocinados por entidades governamentais vai inevitavelmente pressionar a arrecadação dos tributos e preços públicos sobre o contribuinte.

Dessume-se daí que o equilíbrio almejado pelo constituinte reformador, entre a garantia de previdência para os empregados públicos e um nível razoável de arrecadação de tributos e de cobrança de preços públicos sobre toda a sociedade, passa por um maior comedimento com os dispêndios públicos e por um ajuste no equilíbrio entre a contribuição patronal e a contribuição do participante.

Na literatura jurídica, convergem os entendimentos[2] a respeito da Emenda Constitucional 20/98, no sentido que a nova diretriz constitucional visa eliminar os exageros que ocorriam: situações em que os patrocinadores públicos chegavam a contribuir em proporções muito superiores às contribuições dos participantes. Convergem para considerar que a medida constitucional é um mandamento de moderação, de lisura e de redução de dispêndios públicos exacerbados em detrimento do erário.

III A PARIDADE CONTRIBUTIVA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO E DAS LEIS COMPLEMENTARES 108 E 109, 2001.

Feito este preâmbulo acerca do contexto político em que se deu a reforma, explicitadas as razões que levaram à inserção do instituto da paridade no bojo do art. 202 da Constituição Federal, cumpre, então, traçar um panorama acerca das percepções desta regra no âmbito da legislação que se dispôs a disciplinar o regime de previdência privada.

E, quando se trata da influência da Constituição sobre o plano infraconstitucional, ganha especial relevo um único vocábulo, constante do § 3º de seu art. 202, cuja presença (a depender do viés interpretativo) poderia por em xeque o aludido espírito de economicidade: o adjetivo normal atribuído à contribuição de responsabilidade do patrocinador.

A razão para tanto está no fato de se ter preceituado que a contribuição normal do patrocinador não pode exceder a do segurado, ao invés da simples menção de que a contribuição do patrocinador não poderia incorrer em tal excesso. Ao assim dispor, o Texto Constitucional deu margem para interpretações no sentido de que somente as contribuições normais estariam sujeitas à paridade.

Na linha de tal raciocínio, bastaria, então, que a lei trouxesse outras espécies de contribuição para que se abrissem flancos potencialmente supressores da necessidade de observância de responsabilidade na aplicação de recursos públicos na seara da previdência complementar.

Foi justamente o que ocorreu.

Tanto a Lei Complementar 108/2001 quanto a Lei Complementar 109/2001 trazem espécies contributivas que se contrapõem à figura da contribuição normal. Aquela, a contribuição facultativa, esta, a contribuição extraordinária. Apresentam-se, pois, duas linhas de pensamento.

A primeira delas se vale do disposto na LC 109/01. Seus adeptos[3] defendem que, por ter a Constituição Federal mencionado tão-somente as contribuições normais, ao tratar da paridade contributiva (CF, art. 202, § 3º[4]), tal regramento não incidiria sobre as demais classificações de contribuições.

Desse modo, tendo o art. 19[5] da LC 109/2001 previsto contribuições normais e contribuições extraordinárias, não haveria que se falar em paridade em relação às hipóteses abarcadas por esta última espécie. Consequentemente, em tais situações não existiria óbice para o aporte majoritário ou, por que não dizer, unilateral de recursos por parte do patrocinador público a entidades de previdência privada.

Tal fenômeno estaria legalmente autorizado não só a pretexto de custear déficit ou serviço passado de planos de benefícios, como em temerárias situações previstas genericamente como “outras finalidades não incluídas na contribuição normal”. Em última análise, caberia a um regulamento determinar em que casos um mandamento constitucional deveria ou não ser cumprido.

O fato é que, como será demonstrado a seguir, esta desarrazoada relativização – podendo evoluir para um completo esvaziamento – do mandamento constitucional em apreço se deve a uma leitura isolada da Lei Complementar 109 (norma geral do regime de previdência complementar), desatenta aos ditames da Lei Complementar 108 (especificamente voltada ao papel dos patrocinadores públicos neste regime).

A segunda linha de pensamento baseia-se na coexistência e harmonização dos dispositivos constantes de ambos os diplomas, de modo a alcançar a correta identificação do papel de cada qual na disciplina do que fora preceituado pela EC 20/98.

E, de fato, é este segundo ponto de vista o que pode oferecer a resposta de maior relevância no presente estudo, a qual de antemão já pode ser apresentada: o mandamento constitucional da paridade contributiva incide de modo pleno sobre qualquer que seja o aporte realizado pelo patrocinador público.

Afinal, é a Lei Complementar 108, de 29 de maio de 2001, na dicção de seu art. 1º, a responsável por regulamentar, entre outros, o § 3º do art. 202 da Constituição Federal:

Art. 1º A relação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, inclusive suas autarquias, fundações, sociedades de economia mista e empresas controladas direta ou indiretamente, enquanto patrocinadores de entidades fechadas de previdência complementar, e suas respectivas entidades fechadas, a que se referem os §§ 3º, 4º, 5º e 6º do art. 202 da Constituição Federal, será disciplinada pelo disposto nesta Lei Complementar.

Significa dizer que, com relação às entidades reguladas pela LC 108/2001, o legislador optou por estabelecer que o conceito de contribuição normal constante do art. 202, § 3º, somente se contrapõe a uma espécie: a contribuição facultativa, sem contrapartida do patrocinador. É o que se pode inferir de seu art. 6º, § 2º[6], onde se define qual contribuição pode ser prevista pelos planos de benefícios, além da contribuição normal.

Cumpre esclarecer que tal constatação não constitui óbice à aplicação da LC 109, notadamente de seu art. 19, às entidades também regidas pela Lei Complementar 108. Mesmo porque, com relação a estas, não há qualquer diferenciação impeditiva da instituição de contribuições para o custeio de déficits, serviço passado[7], entre outras finalidades. Na verdade, quanto a este específico ponto, há que se respeitar tão-somente uma peculiaridade: para as entidades submetidas somente à LC 109 este custeio poderá ser de responsabilidade exclusiva do patrocinador, enquanto, no caso daquelas também sob o pálio da LC 108, sua contribuição (a qualquer título) em hipótese alguma excederá a do participante.

Caberia, aqui, fazer uma alusão comparativa, com o fito de aclarar ainda mais a ideia de que a imposição de respeito à paridade contributiva estabelecida pela EC nº 20/98 e pela LC 108 não importa em nenhum óbice à aplicação integral dos institutos da LC 109 para as entidades patrocinadas por entes públicos. A rigor, apenas se estabelece uma exigência a mais, frise-se, a paridade contributiva. Esta particularidade específica das entidades patrocinadas por entes públicos leva alguns autores[8] a se referirem à LC 108 como se fosse uma espécie de “lei de licitações” para tais entidades, “como forma de imbuir lisura compulsória”. Um exemplo a ilustrar a ideia apresentada seria de um Banco Público, o qual deve obedecer a legislação de licitações e contratos e também as exigências constitucionais de concurso público, o que, à toda evidência, não afasta a necessária observância às exigências da legislação do sistema financeiro brasileiro.

O equívoco residente na interpretação voltada a excluir a incidência da paridade nas chamadas contribuições extraordinárias está no fato de que tal entendimento se vale de um diploma voltado a estabelecer normas gerais (LC 109) para regulamentar um tema específico, tratado, em verdade, por norma igualmente específica (LC 108).

É que a Lei Complementar 109, como se extrai de seu art. 1º[9], foi editada no intuito de regulamentar o caput do art. 202 da Constituição Federal, que não cuida do instituto da paridade. Tal percepção fica evidente, quando a própria LC 108, em seu art. 2º, faz referência à LC 109, como sendo “[a] Lei Complementar que regula o caput do art. 202 da Constituição Federal:

Art. 2º As regras e os princípios gerais estabelecidos na Lei Complementar que regula o caput do art. 202 da Constituição Federal aplicam-se às entidades reguladas por esta Lei Complementar, ressalvadas as disposições específicas.

Em suma, a Lei Complementar 109 não poderia, quer em seu art. 19, quer em outros dispositivos, excepcionar o princípio da paridade inscrito no § 3º do art. 202 da CF, pelo fato de tal instituto não ser objeto de sua disciplina. Simplesmente não o “enxerga”. Nesse sentido pontua WLADMIR NOVAES MARTINEZ:

A LBPC não tratou da paridade de contribuição (art. 202,§3º, da Constituição Federal), mas a Res. CGPC n. 1/00, à vista dos arts. 5º/6º da EC n.20/98, determinou a aludida paridade, a partir de 16.12.00 para as EPC patrocinadas por estatais[10].

Não há, desse modo, possibilidade de se contrapor o conceito de contribuição normal inscrito no citado § 3º do art. 202 ao de contribuição extraordinária previsto no art. 19 da LC 109, pois esta antonímia parte do falso pressuposto de que a contribuição normal deste mesmo art. 19 teria o idêntico significado da contribuição normal do Texto Constitucional, o que, de certo, não se sustenta. Trata-se de concepções absolutamente distintas, na medida em que, como dito, a LC 109 é absolutamente estranha ao instituto inscrito no § 3º do art. 202 da Constituição, tratado especificamente pela LC 108, a quem coube regulamentá-lo: “a relação (...) a que se referem os §§ 3º, 4º, 5º e 6º do art. 202 da Constituição Federal, será disciplinada pelo disposto nesta Lei Complementar [LC 108, art. 1º]”.

Noutros termos, tem-se que a base de toda a argumentação de inexigência de paridade nas contribuições extraordinárias apoia-se na seguinte premissa: quando o art. 202, § 3º determina que, em hipótese alguma, a contribuição normal do patrocinador poderá exceder a do segurado, contrario sensu, está a admitir que outras modalidades de contribuição não estariam abarcadas por esta obrigatoriedade. Como visto, esta chamada interpretação contrario sensu é equivocada, na medida em que o parâmetro de contraposição, ao invés de ser a classificação inscrita na própria lei que regulamenta este dispositivo constitucional – LC 108/2001 –, é substituído por previsão legal que não se volta a discipliná-lo (a LC 109/2001).

Diz-se que o instituto da paridade é, de fato, estranho à classificação instituída pela LC 109, em seu art. 19, pois o critério norteador que a permeia é diverso: o da temporalidade, ou, nos termos de obra doutrinária coordenada por WAGNER BALERA, o da pontualidade[11]:

As denominadas contribuições normais são aquelas ordinárias, rotineiras, as quais provêm tanto dos patrocinadores/instituidores, como dos participantes, destinadas diretamente ao pagamento dos benefícios de natureza previdenciária.
São aquelas que são processadas e posteriormente cobradas, destinando-se à constituição de reservas técnicas.
No entanto, mesmo ocorrendo a cobrança das contribuições normais, este ato, por si só, não significa que haverá o efetivo pagamento, verificando-se, assim, o déficit ou a falta de recolhimento dos contribuintes por serviços já prestados no âmbito do plano, referidos na norma como serviços passados.
Assim, aquelas contribuições que não foram pagas pontualmente, transformaram-se, quando efetivamente recolhidas ao plano nas denominadas contribuições extraordinárias, as quais, ao fim e ao cabo, são destinadas, igualmente à constituição de reservas. (grifado)

Como se infere do fragmento supracitado, o vocábulo normal, na concepção idealizada no art. 19, tem relação com a ideia de ordinário, rotineiro, que ocorre em períodos certos. Diferencia-se da noção de extraordinário justa e exclusivamente em razão do momento em que o aporte é efetivamente realizado. Isso evidencia que a classificação, repita-se, é pautada tão-somente pelo fator temporal.

Baseando-se nesta noção, inclusive, WLADIMIR NOVAES MARTINEZ minimiza a importância de se fazer tal diferenciação:

Diferente das normais (mas, em última análise, ainda destinada ao custeio de benefícios), as extraordinárias convergem para a composição de déficits. À evidência, trata-se de convenção e designação de cunho contábil porque, ao final do processo, essas importâncias prestar-se-ão para o pagamento de prestações como as normais.[12]

Ainda que se socorra da análise fria do vocábulo extraordinário, fora do contexto de previdência complementar, a noção de tempo, como critério diferenciador permanece, sob a roupagem da habitualidade:

EXTRAORDINÁRIO. Além do ordinário ou do que é de costume, é a significação do vocábulo, composto de extra (além, fora de) e de ordinário (usual, comum segundo o costume). Nesse sentido [...] vem por imposição de uma necessidade, fora do habitual.[13] [...] ORDINÁRIO. Do latim ordinarius, de ordo, originariamente quer significar o que é posto em ordem, segundo a regra ou o costume. E, daí, sua significação técnica para exprimir o que está em ordem, é do costume ou se usa fazer, de que se deriva a significação de comum, usual, habitual.[14]

Por outro lado, a leitura da LC 108/01 evidencia, sem demandar grandes esforços hermenêuticos, que o critério utilizado para a classificação das contribuições nela tratadas é completamente diverso. Guia-se efetivamente pela ótica da responsabilidade. Ou seja, diferencia contribuições, como sendo de responsabilidade do patrocinador e dos participantes (normal) ou exclusivamente dos participantes, sem contrapartida do patrocinador (facultativas). Reafirma, ainda, em atenção ao princípio da paridade (o qual se dispõe a regulamentar) que a contribuição normal do patrocinador não poderá exceder à do participante:

Art. 6º O custeio dos planos de benefícios será responsabilidade do patrocinador e dos participantes, inclusive assistidos.
§ 1º A contribuição normal do patrocinador para plano de benefícios, em hipótese alguma, excederá a do participante, observado o disposto no art. 5º da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, e as regras específicas emanadas do órgão regulador e fiscalizador.
§ 2º Além das contribuições normais, os planos poderão prever o aporte de recursos pelos participantes, a título de contribuição facultativa, sem contrapartida do patrocinador.
§ 3º É vedado ao patrocinador assumir encargos adicionais para o financiamento dos planos de benefícios, além daqueles previstos nos respectivos planos de custeio.

Em resumo, o fato de o custeio do serviço passado, de déficits, entre outras finalidades, ser mencionado apenas na Lei Complementar 109 não exclui a possibilidade de tal prática no que se refere às entidades regidas pela Lei Complementar 108. É perfeitamente possível o custeio de déficits por meio da instituição de contribuições extraordinárias, nos termos do art. 19 da LC 109, exigíveis das entidades fechadas patrocinadas por União, Estados, Distrito Federal ou Municípios.

O que não se pode admitir é que tal se dê sem a observância da paridade constitucionalmente prevista. Mesmo porque não há qualquer previsão na Lei Complementar 109 a respeito da exclusão de tal mandamento. Como já afirmado, a normatização dela constante passa ao largo desta questão, uma vez que este tema não é objeto de suas disposições.

Vale ressaltar, por oportuno, que esta percepção não foi ignorada pelo Conselho de Gestão da Previdência Complementar. É extraída do disposto no art. 29, notadamente de seu parágrafo único, da Resolução 26, de 29 de setembro de 2008, onde se trata do equacionamento do déficit de planos de benefícios administrados por entidades fechadas:

Art. 29. O resultado deficitário apurado no plano de benefícios deverá ser equacionado por participantes, assistidos e patrocinadores, observada a proporção quanto às contribuições normais vertidas no exercício em que apurado aquele resultado, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que tenham dado causa a dano ou prejuízo ao plano de benefícios administrado pela EFPC.
Parágrafo único. Em relação aos planos de benefícios que não estejam sujeitos à disciplina da Lei Complementar nº 108, de 2001, o resultado deficitário poderá ser equacionado pelos patrocinadores, de forma exclusiva ou majoritária, sem a observância da proporção contributiva de que trata o caput.

Como se pode notar, o dispositivo acima transcrito, no que tange ao caput, praticamente reproduz o que já vinha disposto também no caput do art. 21[15] da Lei Complementar 109/01. Entretanto, acresce-lhe um parágrafo esclarecedor, de modo a lançar luzes sobre uma vedação antes implícita.

Ao preceituar que, em relação aos planos de benefício não sujeitos à LC 108/2001, o resultado deficitário poderá ser equacionado pelos patrocinadores de forma exclusiva ou majoritária, adverte, contrario sensu, que, naqueles sujeitos à LC 108/2001 há que se respeitar a proporção contributiva entre participantes, assistidos e patrocinadores.

Finalmente, não custa afastar ou dissociar a relação entre a responsabilidade pelo custeio do equacionamento do déficit e a responsabilidade por suas causas. A citada Resolução CGPC 26/2008 reproduz, neste ponto, o que a própria Lei Complementar 109/2001 já dizia, em seu art. 21: “[o] resultado deficitário (...) será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos (...), sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade ...”.

Nem a LC 109/2001, nem a Resolução CGPC 26/2008, por consequência, admitem a hipótese de majoração de contribuição, ou assunção integral do déficit, levando-se em conta o seu causador.

Ao contrário, ambas, ao indicarem a possibilidade de ação regressiva contra quem quer que tenha dado causa ao dano ou prejuízo, dão conta de que esta apuração de culpa e eventual ressarcimento se darão em separado e que o eventual retorno de recursos equivalentes ao déficit será aplicado na redução de contribuições ou melhoria de benefícios:

Art. 21
[...]
§ 3º Na hipótese de retorno à entidade dos recursos equivalentes ao déficit previsto no caput deste artigo, em conseqüência de apuração de responsabilidade mediante ação judicial ou administrativa, os respectivos valores deverão ser aplicados necessariamente na redução proporcional das contribuições devidas ao plano ou em melhoria dos benefícios. (Lei Complementar 109/2001)

Desse modo, tem-se por indiferente, para o fim específico de se fixar a proporção contributiva no equacionamento de déficits, a identificação do(s) agente(s) que tenha(m) eventualmente dado causa, ou de algum modo contribuído para o desequilíbrio atuarial que se busque corrigir.

IV CONCLUSÃO

Por meio da presente análise, foi possível demonstrar que a criação do instituto da paridade contributiva decorreu precipuamente da necessidade vislumbrada pelo constituinte reformador de maior comedimento com os dispêndios públicos. Consistiu num mecanismo de ajuste no equilíbrio entre as contribuições de participantes e patronais (cuja receita advém dos tributos extraídos compulsoriamente de toda a sociedade ou dos preços pagos pela prestação de serviços públicos), voltado a eliminar os exageros que ocorriam no estabelecimento de proporções contributivas muito superiores a cargo dos patrocinadores públicos.

Compulsando-se as determinações da EC 20/98 atinentes ao tema previdência complementar e o conteúdo das Leis Complementares 108 e 109 de 2001, responsáveis pela regulamentação das inovações implementadas pela Emenda, é possível compreender que a disciplina da paridade contributiva ficou a cargo exclusivo da LC 108.

Há que se atentar, portanto, para o equívoco em sua desarrazoada relativização e o conseqüente risco de se promover seu completo esvaziamento: uma leitura isolada da Lei Complementar 109 (norma geral do regime de previdência complementar), desatenta aos ditames da Lei Complementar 108 (especificamente voltada ao papel dos patrocinadores públicos neste regime).

É juridicamente inviável a contraposição do conceito de contribuição normal inscrito § 3º do art. 202 da Constituição da República ao de contribuição extraordinária previsto no art. 19 da LC 109. Esta antonímia parte do falso pressuposto de que a contribuição normal deste mesmo art. 19 teria o idêntico significado da contribuição normal do Texto Constitucional.

Como visto, em verdade, a LC 109 é absolutamente estranha ao instituto inscrito no § 3º do art. 202 da Constituição, tratado especificamente pela LC 108, a quem coube regulamentá-lo.

Portanto, pode-se afirmar com segurança que:

a) a paridade contributiva, prevista no § 1º do art. 6º da Lei Complementar 108/2001 não se restringe às contribuições normais a que se refere o inciso I do parágrafo único do art. 19 da LC 109/2001; e

b) esta determinação, prevista no § 3º do art. 202 da Constituição Federal e reproduzida no citado art. 6º, deve ser aplicada a toda e qualquer contribuição efetuada por patrocinador sujeito à disciplina da LC 108/2001, independentemente da classificação que lhe seja dada pela LC 109/2001.

REFERÊNCIAS

BALERA, Wagner (coordenação). Comentários à Lei de Previdência Privada – LC 109/2001. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves & VILLELA, José Corrêa. Previdência Privada Doutrina e Comentários à Lei Complementar n. 109/01. São Paulo: LTR, 2005.
MARTINEZ, Wladmir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Complementar. São Paulo: LTr, 2003.
RODRIGUES, Flávio Martins. Fundos de Pensão: Temas Jurídicos. Rio de janeiro: Renovar, 2003.
SANTOS, Jerônimo Jesus dos. Previdência Privada Lei da Previdência Complementar Comentada. Rio de Janeiro: Livraria Jurídica do Rio de Janeiro, 2004.
SILVA, Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 341-342 WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos. Previdência Privada Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Quartier Latin, 2005.


[1] Tais anseios vão ao encontro de preocupações mais amplas com a sustentabilidade do sistema previdenciário brasileiro como um todo e com o déficit fiscal, apontadas na Exposição de Motivos da Emenda Constitucional 20/98.

[2] Cf:WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos. Previdência Privada Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.204-205; RODRIGUES, Flávio Martins. Fundos de Pensão: Temas Jurídicos. Rio de janeiro: Renovar, 2003, p. 64-66; CORREIA, Marcus Orione Gonçalves & VILLELA, José Corrêa. Previdência Privada Doutrina e Comentários à Lei Complementar n. 109/01. São Paulo: LTR, 2005, p.42-53.

[3] Nesse sentido sustentam: RODRIGUES, Flávio Martins. op. cit., p. 65-69; SANTOS, Jerônimo Jesus dos. Previdência Privada Lei da Previdência Complementar Comentada. Rio de Janeiro: Editora e Livraria Jurídica do Rio de Janeiro, 2004, p. 271.

[4] Art. 202 [...].
[...]
§ 3º É vedado o aporte de recursos a entidade de previdência privada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, suas autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista e outras entidades públicas, salvo na qualidade de patrocinador, situação na qual, em hipótese alguma, sua contribuição normal poderá exceder a do segurado.
   
[5] Art. 19. As contribuições destinadas à constituição de reservas terão como finalidade prover o pagamento de benefícios de caráter previdenciário, observadas as especificidades previstas nesta Lei Complementar.
Parágrafo único. As contribuições referidas no caput classificam-se em:
I - normais, aquelas destinadas ao custeio dos benefícios previstos no respectivo plano; e
II - extraordinárias, aquelas destinadas ao custeio de déficits, serviço passado e outras finalidades não incluídas na contribuição normal.
   
[6] Art. 6º [...].
[...]
§ 2º Além das contribuições normais, os planos poderão prever o aporte de recursos pelos participantes, a título de contribuição facultativa, sem contrapartida do patrocinador.

[7] “Serviço passado é (...) a tradução do service past americano. Quer dizer a cobertura de periódicos especificados em cada caso, espécie de jóia, desembolso havido com a obtenção de recursos para cobrir, por exemplo, o período de trabalho do participante antes da admissão na EFPC.” MARTINEZ, Wladmir Novaes. Comentários à Lei Básica da Previdência Complementar. São Paulo: LTr, 2003,p. 202.

[8] WEINTRAUB, Arthur Bragança de Vasconcellos. op. cit., p.204-205.

[9] Art. 1º O regime de previdência privada, de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, é facultativo, baseado na constituição de reservas que garantam o benefício, nos termos do caput do art. 202 da Constituição Federal, observado o disposto nesta Lei Complementar.

[10] Comentários à Lei Básica da Previdência Complementar. São Paulo: LTr, 2003, p. 198.

[11] Comentários à Lei de Previdência Privada – LC 109/2001. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 146-147.

[12] op. cit., p. 202.

[13] SILVA, Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 341-342.

[14] Ibidem, p. 577.

[15] Art. 21. O resultado deficitário nos planos ou nas entidades fechadas será equacionado por patrocinadores, participantes e assistidos, na proporção existente entre as suas contribuições, sem prejuízo de ação regressiva contra dirigentes ou terceiros que deram causa a dano ou prejuízo à entidade de previdência complementar.