Keila Manangão* |
Juliana Moura** |
Na última sexta-feira, 10 de março, foram publicados os acórdãos dos Recursos Especiais nº 1.874.811 e 1.874.788, ambos oriundos do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, os quais haviam sido selecionados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) como recursos representativos para o Tema Repetitivo nº 1112, relacionado ao Direito do Consumidor, e que tinha como controvérsia fixada a definição sobre “se cabe à seguradora e/ou ao estipulante o dever de prestar informação prévia ao proponente (segurado) a respeito das cláusulas limitativas e restritivas dos contratos de seguro de vida em grupo”.
Convém, inicialmente, recordar o contexto fático e jurídico que ensejou a interposição dos recursos supracitados.
Na ação na qual se originou o Recurso Especial nº 1874788, o Autor, tendo sofrido acidente de trânsito que lhe acarretou invalidez parcial permanente, visava receber o pagamento integral de indenização securitária com amparo em cobertura de Invalidez Permanente Total ou Parcial por Acidente (IPA) prevista em apólice de seguro de vida em grupo. O Juízo de primeiro grau decidiu que a indenização devida ao segurado deveria ser calculada na proporção da sua invalidez, com base na tabela prevista nas condições gerais do seguro, motivo pelo qual, tendo a lesão resultado em repercussão de grau médio (50%), a indenização devida ao segurado corresponderia a 12,5% do capital segurado. O Autor interpôs recurso de apelação alegando que faria jus ao valor integral do capital segurado sob o argumento de que não teria sido informado sobre a incidência de tal limitação. Argumentou que faria jus ao valor total previsto na apólice, sem qualquer redutor, pois não foi informado acerca do pagamento amparado no grau de proporcionalidade de sua condição física, atribuindo este dever de informação à seguradora. O apelo foi desprovido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, o qual entendeu que a obrigação de prestar os esclarecimentos sobre as condições contratuais recai sobre o estipulante, e não sobre a seguradora. Inconformado, o Autor interpôs Recurso Especial, o qual foi admitido e remetido ao STJ.
Já na demanda na qual se originou o Recurso Especial nº 1874811, o Autor pretendia receber o pagamento integral de indenização securitária decorrente de contrato de seguro de vida em grupo com cobertura de Invalidez Permanente Total ou Parcial por Acidente (IPA). Alegou ter recebido indenização inferior à que lhe seria devida, sustentando que não caberia a incidência de percentual de redução da indenização proporcional à sua incapacidade, tendo se verificado uma falha no dever de informação da seguradora. O Juízo de primeiro grau entendeu que no seguro de vida em grupo contratado por meio de estipulante, o dever de prestar informação é do próprio empregador, estipulante, de modo que, caso tenha ocorrido violação de dever à informação, este não pode ser imputado à companhia seguradora, motivo pelo qual julgou improcedente a ação. O Autor interpôs recurso de apelação, o qual foi provido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, para reformar a sentença e condenar a seguradora ao pagamento integral do capital segurado, descontando-se o valor pago administrativamente, o que fez sob o fundamento de que o referido dever de informação caberia à seguradora, a qual não teria se desincumbido do ônus de provar que o consumidor havia sido previamente cientificado das disposições contratuais limitativas. A Seguradora interpôs recurso especial, o qual foi admitido e remetido ao STJ.
Ao apreciar e julgar os referidos recursos, o STJ firmou a seguinte tese por maioria de votos, acolhendo os termos dos votos proferidos pelo relator, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva:
“(i) na modalidade de contrato de seguro de vida coletivo, cabe exclusivamente ao estipulante, mandatário legal e único sujeito que tem vínculo anterior com os membros do grupo segurável (estipulação própria), a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados acerca das condições contratuais quando da formalização da adesão, incluídas as cláusulas limitativas e restritivas de direito previstas na apólice mestre, e
(ii) não se incluem, no âmbito da matéria afetada, as causas originadas de estipulação imprópria e de falsos estipulantes, visto que as apólices coletivas nessas figuras devem ser consideradas apólices individuais, no que tange ao relacionamento dos segurados com a sociedade seguradora.”
Para melhor compreensão do sentido e alcance da tese firmada pelo STJ, algumas premissas que foram adotadas pelo próprio Tribunal na fundamentação dos acórdãos supracitados devem ser consideradas:
- Nos seguros de pessoas (vida e acidentes pessoais), a dinâmica do dever de informação prévia difere a depender de sua modalidade (se individual, se coletivo);
- Na modalidade individual, tanto a seguradora, quanto o corretor de seguros, devem prestar informações adequadas ao proponente quando da contratação. Esta, em regra, passa por duas fases. A primeira é a da proposta, em que o proponente se informa dos termos contratuais e também fornece à seguradora as informações necessárias para o exame e a mensuração do risco, indispensável para a garantia do interesse segurável. A segunda é a da recusa ou aceitação do risco pela seguradora.
- Na modalidade coletiva há a figura do estipulante, pessoa natural ou jurídica que contrata o seguro em proveito de um grupo que a ele se vincula.
- A chamada “estipulação própria” é aquela em que o estipulante mantém um vínculo de natureza associativa ou trabalhista com o grupo em proveito do qual contratará o seguro coletivo e negocia com a seguradora os termos e as condições contratuais. Nelas se inserem, exemplificativamente, os riscos cobertos, valores dos prêmios e das indenizações, prazos de carência, prazo de vigência, dentre outras disposições, inclusive as relativas às eventuais restrições de direito dos futuros segurados. Nessa fase, o dever de informação pré-negocial e contratual é da seguradora junto ao estipulante, que deve ser esclarecido adequadamente acerca das cláusulas contratuais e produtos e serviços oferecidos no mercado. Já na vigência da garantia, contudo, compete ao estipulante promover todas as formalizações da relação contratual, tais como adesões, desligamentos, atualização de dados cadastrais, dentre outros. Compete-lhe, ainda, prestar ao potencial aderente o correto esclarecimento sobre o produto contratado, já que não há nenhuma interlocução entre este e a seguradora. Por fim, concretizada tal adesão, compete também ao estipulante o dever de continuar a prestar aos segurados todas informações acerca dos termos, condições gerais e cláusulas limitativas de direito estabelecidos no contrato de seguro. Isto, todavia, não afasta a obrigatoriedade da seguradora de prestar informações, se e quando solicitada pelo estipulante ou por um ou mais segurados.
- Ainda nos seguros de “estipulação própria”, o estipulante é mandatário dos segurados, assumindo perante a seguradora a responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações contratuais, tais como a movimentação cadastral e o pagamento do prêmio recolhido dos segurados. Como decorrência lógica, o estipulante não representa a seguradora perante o grupo segurado. Ainda quanto a este tipo de estipulação, o STJ já firmou entendimento de que o estipulante não é o responsável pelo pagamento da indenização securitária, justamente porque atua como mandatário do grupo segurado. Por outro lado, a Corte reconheceu, em caráter excepcional, a possibilidade de se atribuir ao estipulante a responsabilidade pelo pagamento da indenização securitária na hipótese de mau cumprimento de suas obrigações contratuais (tais como o recolhimento indevido de prêmios após a extinção do contrato de seguro) ou de criação, nos segurados, de uma falsa, embora legítima expectativa, de que seria o responsável por esse pagamento.
- Na chamada “estipulação imprópria”, que é aquela em que o único vínculo entre o estipulante e o grupo segurado é o contrato de seguro, não havendo prévia relação associativa ou trabalhista entre ele e o grupo, as apólices coletivas deverão ser tratadas excepcionalmente como individuais para fins do relacionamento dos segurados com a seguradora. Isto significa, na prática, que compete à seguradora cumprir o dever de informação perante o segurado, aí inserindo-se o rol de cláusulas limitativas e restritivas de direitos. A necessidade de tal tratamento se reforça nos casos em que a atuação do estipulante é desvirtuada, o que ocorre quando este atua em prol dos interesses da seguradora (“falso estipulante”).
O Ministro Raul Araujo, que foi vencido no julgamento, manifestou o entendimento de que o dever de informação deve sempre estar na figura da seguradora, que “é quem explora o negócio e é o interessado em captar o negócio, ter a relação de contrato de seguro de vida com o grupo”, ponderando que o estipulante sequer deve ser responsabilizado, seja por levar esse benefício a seus empregados, seja por não fazer parte da cadeia de fornecimento, seja, ainda, por não auferir ganhos monetários.
Embora o posicionamento adotado pelo STJ no Tema 1112 já estivesse pacificado nas Turmas da Seção de Direito Privado, a iniciativa do STJ de selecionar os casos e formular a proposta de afetação da matéria como repetitiva para firmar uma Tese e classificá-la como Tema Repetitivo se justificou pelo número expressivo de demandas judiciais fundadas na mesma questão de direito, isto é, na definição sobre a quem competia, nos seguros de vida em grupo, o dever de informação, já que os Tribunais Estaduais continuavam a decidir a matéria de modo não uniforme e, mesmo dentro do mesmo Tribunal sobrevinham decisões em sentidos opostos, sendo os dois recursos selecionados justamente um exemplo disto. Com a edição do Tema Repetitivo, o STJ espera proporcionar maior segurança jurídica aos interessados e evitar decisões dissonantes nas instâncias ordinárias, já que a tese firmada deverá passar a ser observada. Para as seguradoras, o Tema 1112 representa um importante parâmetro para a atuação no segmento dos seguros de vida em grupo, pois consolida o entendimento amplamente difundido do mercado segurador quanto aos deveres de informação da seguradora e do estipulante, estabelecendo de forma inequívoca os papéis desses atores nas relações com o grupo segurado.
* Keila Manangão
Sócia Fundadora de Santos Bevilaqua Advogados
** Juliana Moura
Advogada de Santos Bevilaqua Advogados e Coordenadora
da carteira de contencioso de Seguros de Vida
Em 13.03.2023.