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Em matéria de Transporte Aéreo Internacional, o STF, ao julgar o RE. 636.331, determinou que a limitação de responsabilidade prevista em convenção internacional deve prevalecer frente o disposto no Código de Proteção e Defesa do Consumidor

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Por Paula Rodrigues [1]

No último dia 13 de novembro, foi publicada a decisão proferida pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário nº 636.331. O recurso foi interposto por Societé Air France em disputa relacionada a extravio de bagagem.

A decisão submetida à análise do STF foi proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e afirmava que o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei Federal 8.078/1990) deveria prevalecer sobre tratado internacional quando este último se mostrasse incompatível com os direitos e benefícios previstos no primeiro. Em consequência, a limitação de responsabilidade prevista na Convenção de Varsóvia, posteriormente atualizada pela Convenção de Montreal, não deveria ser aplicada no que tange a indenização por extravio de bagagem.

O caso levou 6 anos para ser julgado pela Corte Suprema. Finalmente, em 25 de maio de 2017, seus Ministros, por maioria de votos (9x2), reverteram a decisão proferida pela corte carioca, consagrando as provisões da convenção internacional dobre o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, com base na Constituição Federal.

O julgamento foi destacado como “leading case” e sua conclusão – apesar de não ser formalmente vinculante em razão do sistema de Civil Law brasileiro – é uma recomendação para as instâncias inferiores. A tese foi registrada sob o nº 210 e afirma o seguinte:

"Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor"

Em razão da importância do caso, a IATA (International Air Transport Association), a IUAI (International Union of Aerospace Insurers) e a American Airlines Inc. participaram do julgamento como amicus curiae [2] , um mecanismo previsto na lei processual civil brasileira que autoriza partes interessadas a intervir em casos de repercussão geral para fins de aconselhamento.

O Ministro relator, Gilmar Mendes, mencionou na fundamentação de seu voto dois julgamentos anteriores do Supremo Tribunal Federal em que haveria aparente conflito entre a Convenção de Varsóvia e o Código de Proteção e Defesa do Consumidor: o Recurso Extraordinário 351.750, julgado pela Primeira Turma [3], concluiu que o tratado internacional não poderia ser aplicado quando conflitasse com o Código de Proteção e Defesa do Consumidor; já no Recurso Extraordinário 297.901-5, a Segunda Turma [4] considerou prescrita reclamação ajuizada por consumidor contra transportador aéreo após 2 anos, baseada na Convenção de Varsóvia. A relevância da discussão e necessidade de sua pacificação estava, assim, devidamente evidenciada.

Dando seguimento a sua decisão, o Ministro Gilmar Mendes levantou três principais pontos a serem discutidos:

 (i) o possível conflito entre o princípio constitucional que impõe a defesa do consumidor e a regra do art. 178 da Constituição Federal;

(ii) a superação da aparente antinomia entre a regra do art. 14 da Lei 8.078/90 e as regras dos artigos 22 da Convenção de Varsóvia e da Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional; e

(iii) o alcance das referidas normas internacionais, no que se refere à naturezas jurídica do contrato e do dano causado.

O Ministro mencionou que, apesar da Constituição Brasileira ter elevado a proteção ao consumidor – parte em regra em desvantagem frente ao fornecedor de produtos e serviços – a direito fundamental e pilar da ordem econômica, igualmente obrigou observância aos acordos internacionais relativos ao transporte internacional aéreo. Assim, faz-se necessária uma interpretação sistemática do texto constitucional para harmonizar as previsões em seu texto.

O sistema legal brasileiro prevê que lei especial deve prevalecer sobre lei geral (critério lex specialis). Adicionalmente, uma norma posterior evita a aplicação de normal anterior (critério lex posterior). A Convenção de Varsócvia foi internalizada no Brasil em 1931 (Decreto 20.704, publicado em 24/11/1931), enquanto o Código de Proteção e Defesa do Consumidor é datado de 1990. Todavia, as alterações à Convenção de Varsóvia – incluindo o Protocolo Adicional nº 1 e a Convenção de Montreal – foram publicados no Brasil em 1998 e 2006, após o CPDC.

Por outro lado, o Ministro entendeu que seria por demais simplista concluir pela prevalência do acordo internacional com base no critério cronológico. Para ele, a principal razão para a aplicação da Convenção de Varsóvia reside na sua especialidade frente às regras gerais consumeristas (critério lex specialis).

Com isso, ele excedeu os contornos do caso em discussão – reclamação de extravio de bagagem – para concluir que todas as previsões acerca de limitação de responsabilidade da Convenção de Varsóvia e suas alterações posteriores deveriam prevalecer sobre o Código de Proteção e Defesa do Consumidor na hipótese de aparente conflito de normas.

Importante ressalva foi feita, contudo, no sentido de que a premissa acima apenas se aplica em reclamações relativas a dano material – e não dano moral – e no caso de transporte aéreo internacional, não em voos domésticos, com base na redação do art. 178 da Constituição Federal [5].

A mesma conclusão foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 766.618, interposto por Air Canadá, também destacado como “leading case” na matéria e julgado conjuntamente com o Recurso Extraordinário 636.331. A controvérsia, nesse caso, referia-se ao prazo prescricional. Os Ministros aplicaram o prazo de 2 anos previsto nas Convenções de Varsóvia/Montreal, evitando o prazo quinquenal do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. O Ministro Roberto Barroso foi o Relator para o caso.

Espera-se que a tese desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal pacifique a discussão em respeito à aplicabilidade da limitação de responsabilidade no transporte aéreo internacional, não apenas de passageiros, mas também de cargas, no qual, em regra, as disposições do Código de Proteção e Defesa do Consumidor não deveriam sequer ser ventiladas, em razão da relação mercantil entre o transportador e o proprietário da mercadoria.

Essa é uma boa notícia para os transportadores aéreos e seguradores/resseguradores e uma indicação positiva do Supremo Tribunal Federal pela aplicação das convenções internacionais, trazendo a esperança de um Brasil mais conectado com as práticas e regras do mercado mundial.

[1] Advogada Associada a Chalfin, Goldberg, Vainboim & Fichtner Advogados Associados. Pós-graduada em Direito Empresarial e Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ). Especializada em Direito Bancário e Marítimo pela mesma instituição e em Direito Marítimo pela Universidade de Southampton-GB (41st IML Maritime Law Short Course). Cursando o L.LM Executivo da King’s College University, em Londres, com concentração em resolução de disputas internacionais, curso com previsão de conclusão em 2018.

[2] Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.

[3] Decisão publicada em 24 de setembro de 2009; Relator Ministro Ayres Britto.

[4] Decisão publicada em 31 de março de 2009; Relatora Ministra Ellen Gracie.

[5] Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

(21.11.2017)