Aspectos processuais relevantes da minuta de Resolução do CNSP que dispõe sobre o agente de seguros. Os efeitos da sentença e os limites subjetivos da coisa julgada material


José Carlos Van Cleef de Almeida Santos, Mestre e especialista em direito processual civil pela PUC-SP. Graduado em direito pela PUC-SP. Professor do Curso de Especialização em Processo Civil da Escola Paulista de Direito. Professor assistente na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo. |
SUMÁRIO: 1. Prolegômenos sobre a comercialização de seguros. 2. Aspectos relevantes da minuta de Resolução do CNSP que disciplina o agente de seguros. 3. Um pouco sobre o agente de seguros: o direito estrangeiro, o direito brasileiro e a minuta de Resolução do CNSP. 4. Segue. As principais características do contrato objeto da minuta de resolução do CNSP base do presente estudo. 5. Partes e terceiros no Direito Processual Civil: distinção técnica de relevo para o assunto abordado neste ensaio. 6. Breves notas sobre os terceiros e suas espécies. 7. Os efeitos da sentença e a autoridade da coisa julgada: a propagação perante os terceiros. Notas introdutórias para a problemática inerente à relação entre o agente de seguros e a seguradora. 8. Segue. O agente de seguros e a seguradora: extensão dos efeitos da sentença e os limites subjetivos da coisa julgada. 9. Referências bibliográficas.
1. Prolegômenos sobre a comercialização de seguros.
As operações econômicas aptas a garantir a prevenção de riscos são definidas, em sentido técnico, como operações de seguro. A estrutura econômica do seguro é deveras particular e assenta-se sobre operações em massa, mediante as quais é possível fragmentar os riscos temidos pela sociedade (mutualismo).[1]
Com efeito “amadureceu, muito cedo, no espírito humano, a importância da solidariedade, como fator de superação das dificuldades que assoberbavam a vida de cada um ou da própria comunidade. Percebeu-se que era mais fácil suportar coletivamente os efeitos dos riscos que atingiam isoladamente as pessoas. O auxílio de muitos para suprir as necessidades de poucos amenizava as consequências danosas e fortalecia o grupo. A mutualidade, assim, serviu de suporte a todos os sistemas de prevenção ou reparação de danos”.[2]
Para que a base técnica do seguro seja garantida, as companhias de seguros devem operar seus negócios em larga escada e, para tanto, devem buscar canais de distribuição aptos a proporcionar a necessária difusão dos riscos inerentes às massas seguradas. A comercialização dos seguros, por consequência, é um fenômeno umbilicalmente ligado com a própria sobrevivência deste instituto jurídico.
Com efeito, o contrato de seguro é uma operação isolada apenas entre segurado e segurador, mas a multiplicação desses contratos para muitas pessoas, dando a mesma garantia sobre o mesmo tipo de risco, constitui a sua base técnica. A contribuição dessas pessoas formará o fundo comum de onde sairão os recursos para pagamento dos sinistros. O segurador funciona, assim, como o gestor do negócio: recebe de todos e paga as indenizações[3], mas caso não mantenha uma rede eficaz de comercialização, invariavelmente restringirá a sua percepção financeira sem, contudo, necessariamente diminuir a sua demanda por indenização.
Eis a razão do egrégio jurista Cesare Vivante já sustentar, em 1899, que “la imprese di assicurazione hanno bisogno di estendere i proprio rischi sul maggior numero possibile di assicurati; la propaganda è una necessità imprescindibile di esistenza e non solo di prosperità pelo loro commercio”.[4]
É de rigor destacarmos, nesse sentido, que a distribuição no mercado de seguros pode ocorrer de forma direta ou indireta. Há distribuição direta sempre que existir uma relação imediata entre a produção e o consumo, ou seja: quando se entrega a proteção diretamente da companhia seguradora (produtor) ao segurado (tomador, consumidor). Há, por outro lado, distribuição indireta quando a relação jurídica entre a seguradora e o segurado (produtor e tomador) é articulada de forma mediata, isto é: intermediada por uma terceira entidade (distribuidor).[5]
O ordenamento jurídico brasileiro encampa tanto a contratação direta de seguros quanto a indireta. O Decreto-lei nº 73 de 23 de novembro de 1966 tipifica que os seguros contratados por proposta devem ser intermediados por representantes legais ou corretores legalmente habilitados, enquanto que os seguros contratados por emissão de bilhete dispensam referidas intermediações (art. 9º e 10º).[6]
Cumpre-nos, neste ensaio, focar atenção às contratações indiretas de seguros, ou seja: aquelas que ocorrem mediante intermediação de terceiros. Conforme se verifica da leitura do artigo 9º do Decreto-lei nº 73/66[7] – assim como já ocorria em Gênova no século XV[8] – o nosso legislador pátrio permitiu que terceiros interviessem na contratação do seguro, mas expressamente indicou a figura do corretor habilitado como único profissional apto a intermediar a comercialização deste contrato.[9]
Contudo, não foi sempre assim. De efeito, o Decreto-lei nº 2.063/40 estabelecia que o agente de seguros poderia intermediar a contratação de seguros.[10] Ademais, a Portaria nº 28, de 21 de outubro de 1966, do extinto Departamento Nacional de Seguros Privados e Capitalização – DNSPC também previa o agente de seguros como apto a intermediar determinados contratos securitários, notadamente os relacionados com ramos elementares e acidentes do trabalho.[11]
Lembra o saudoso Pedro Alvim que realmente “a venda do seguro era feita antigamente pelos agentes do segurador, figura conhecida nas pequenas cidades do interior. Muitos não possuíam qualificação profissional. Sua missão era exclusivamente encaminhar os negócios. Qualquer pessoa frustrada noutras atividades poderia dedicar-se a operações de seguro, cujo desenvolvimento não tinha maior expressão para a economia do País. O agente era um preposto do segurador que lhe pagava comissões por negócios encaminhados e, às vezes, uma remuneração fixa”.[12]
Todavia, ao lado dessas entidades meramente captadoras, também destacava-se a figura do “agente emissor”, que conforme normatizado pela Resolução CNSP nº 019/78 era pessoa física ou jurídica munida de poderes de representação da proponente para aceitar e recursar propostas de seguros, emitir apólices, bilhetes, averbações, endossos e faturas mensais, receber e resolver reclamações em nome da seguradora. Note-se que este agente de seguros reunia, ainda, conforme expresso na Resolução em comento, um poder extremamente peculiar, qual seja “receber primeiras citações e representar a Sociedade, ativa e passivamente, em Juízo, no tocante às operações efetuadas na respectiva jurisdição”.[13]
O Decreto nº 56.903, de 24 de setembro de 1965 revela que, realmente, a figura do agente era usual no mercado de seguros, sendo, todavia, substituída paulatinamente pelo corretor de seguro, sobretudo em razão da especialização técnica que este profissional granjeou ao longo dos anos sobre matéria. Eis a redação do artigo 1º do referido Decreto: “o Corretor de seguros de Vida e de Capitalização, anteriormente denominado Agente, quer seja pessoa física quer jurídica, é o intermediário legalmente autorizado a angariar e a promover contratos de seguros”.
Após a promulgação do Decreto-lei nº 73/66, que enalteceu, de vez, a figura do corretor de seguros – já regulamentada pela Lei nº 4.594/65 –, o agente de seguros tornou-se profissional cada vez mais escasso no mercado securitário.[14] O artigo 100 do regulamento da Lei de Seguros – Decreto nº 60.459/67 – revela a intenção deliberada de nosso legislador em restringir ao corretor de seguros a prática da intermediação no comércio securitário.[15]
De efeito, a atividade dos agentes de seguros foi praticamente vedada no mercado securitário nacional em razão da impossibilidade destes profissionais receberem comissões pelos seguros angariados[16], fato derivado da legislação voltada à regulamentação e proteção dos corretores de seguros.
É inegável que a constante especialização dos corretores de seguros e carência do consumidor quanto às informações técnicas de extrema relevância no momento de se contratar um seguro[17] fez destes profissionais quase que o canal exclusivo das seguradoras, fato determinante para o agente de seguros caísse no verdadeiro esquecimento.
É necessário mencionar, também, que conquanto seja permitida a contratação direta de determinados seguros, esta prática nunca foi razoavelmente usual entre nós e, em geral, as seguradoras pouco investem em linhas próprias de comercialização, preferindo fomentar o mercado securitário através dos próprios corretores, até porque – conforme estabelecem o Decreto-lei nº 60.459/67[18] e a Lei nº 6.317, de 22 de dezembro de 1975[19] – mesmo nas contratações diretas a seguradora deve prestar a importância habitualmente cobrada a título de comissão para o Fundo de Desenvolvimento Educacional de Seguro, administrado pela Fundação Escola Nacional de Seguros – FUNENSEG.
Conforme crítica de Angelo M. M. Cerne estas disposições “interferiram nos direitos legítimos das seguradoras, cerceando seu direito de auferir lucro sobre a venda direta ao público, ou seja reter a corretagem em seu próprio benefício”.[20] Nada obstante, a legislação assim se mantém até os dias atuais.
Quanto às codificações, evidencia-se que o Código Comercial e o antigo Código Civil (1916) nada dispunham acerca da intermediação do contrato de seguro, assunto inegavelmente relegado às leis e resoluções especiais sobre a matéria. Em 1965, o Projeto de Código de Obrigações do Prof. Caio Mário da Silva Pereira chegou a propor a regulamentação do assunto em seu artigo 728[21], sem, contudo, entrar em vigência.
Somente anos mais tarde, em 2002, é que o Código Civil Brasileiro tratou da intermediação no contrato de seguro, e assim o fez através do seu artigo 775 com os seguintes dizeres: “os agentes autorizados do segurador presumem-se seus representantes para todos os atos relativos aos contratos que agenciarem.”
Como lembra Pedro Alvim, o preceito do artigo 775 do atual Código Civil Brasileiro foi assim justificado por seu autor, o Prof. Comparato: “o artigo mantém a regra do art. 728 do Projeto de 1965, como elemento de proteção ao segurado de boa-fé, não obstante as críticas formuladas pela Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e Capitalização”.[22]
De efeito, a tipificação da figura do agente de seguros pelo Código Civil Brasileiro atual propagou diversas discussões entre os operadores do direito securitário e, desde então, o que se observa é que a figura do agente de seguros ainda é pouco usual no mercado e continua bastante polêmica, principalmente em razão da ausência de regulamentação específica sobre a matéria.
Hodiernamente há, de um lado, uma tradição quase que esquecida em torno da figura do agente, cuja atuação foi recentemente revivida pelo legislador ordinário quando da promulgação do Código Civil Brasileiro atual e, de outro lado, uma lacuna no ordenamento jurídico que dá margens a confusões jurídicas totalmente impróprias quanto a este intermediador de seguros.
É deveras comum confundir-se, por exemplo, o agente de seguros com o corretor de seguros, assim como com o representante comercial, mandatário, comissário, etc.[23] A figura do agente – protagonista principal do presente ensaio – já é per se eivada de particularidades, o que lhe proporciona classificações cientificamente distintas[24], fato que coligado com a ausência de regulamentação específica, faz surgir no mercado securitário verdadeiros agentes transvestidos.
Nesse sentido, observam Ernesto Tzirulnik e Paulo L. T. Piza, que vige uma verdadeira desordem no âmbito da intermediação dos seguros, já que é comum que os agentes atuantes no Brasil sejam habilitados como verdadeiros corretores, que, conquanto autônomos por natureza, são subsidiados pelas próprias seguradoras em favor das quais angariam seguros, sem, todavia, emitirem apólices.[25]
Após longos anos e muitas críticas quanto à falta de regulamentação específica do agente de seguros o legislador ordinário – através do Projeto de Lei nº 8.034/2010 que contém um capítulo com seis artigos (Cap. IV, arts. 41 ao 46) dedicados aos intervenientes do contrato de seguros – propõe de lege ferenda delimitar a verdadeira feição do agente de seguros, atribuindo-lhe a natureza jurídica de preposto da companhia de seguros.[26]
E mais recentemente o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP propôs disciplinar o agente de seguros, e o fez através da minuta de Resolução base do presente estudo, que foi submetida à consulta pública pela Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, conforme Edital de Consulta Pública nº 011, de 14 de junho de 2013.
É sobre essa Resolução que nos debruçaremos neste ensaio, sem a menor pretensão de ineditismo quanto à matéria em comento.
2. Aspectos relevantes da minuta de Resolução do CNSP que disciplina o agente de seguros.
A proposta do CNSP define o agente de seguros como a pessoa jurídica que assume perante determinada seguradora a obrigação de promover a realização de contrato de seguros no mercado, por conta e em nome desta. O agente de seguros é um partícipe direto da cadeira negocial da seguradora, não se liga com esta através de vínculos de dependência, mas desenvolve suas atividades em caráter não eventual (art. 1º, caput).
Segundo dispõe a referida minuta, para que seja formalizada a atividade do agente de seguros em favor de determinada seguradora há de ser estabelecido um contrato no qual os poderes de atuação serão regulados, com maior ou menor abrangência (art. 1º, § 1º).
Desde logo destaca-se que, nada obstante o CNSP indicar a possibilidade dos poderes do agente de seguros sofrerem delimitações, parece-nos que em qualquer hipótese os poderes para a conclusão do contrato de seguro devem sempre ser preservados ao agente de seguros, pois de outro modo a própria figura objeto da regulamentação proposta perde a sua essência, sua razão de ser.[27]
Conforme a proposta de norma em análise, conquanto seja o agente de seguros pessoa jurídica obrigatoriamente independente da seguradora, deve sempre respeitar as instruções recebidas da agenciada e desempenhar suas atividades com clareza, urbanidade e diligência no atendimento aos proponentes, segurados, beneficiários e corretores de seguros e seus prepostos (art. 1º, § 2º).
Ressalte-se que ao que parece o preceito que impõe ao agente o dever de respeitar as instruções da seguradora, nada impede que atue, empiricamente, às margens do orientado, pois é ínsito à sua própria existência atividade de negociação.
A minuta em tela indica, expressamente, que a relação entre o agente de seguros e o proponente, segurado e beneficiário poderá ser intermediada por corretor de seguros ou seu preposto, de modo que deixa bastante claro que não há de se confundir estas duas figuras que possuem atuações totalmente diversas (art. 1º, § 4º). A distinção na atuação desses intermediadores do contrato de seguro também fica expressa quando a minuta dispõe que o agente de seguros é proibido de exercer atividade de corretagem (art. 1º, § 6º).
É curioso notar, ainda, que em um primeiro momento a proposta de resolução parece admitir a possibilidade da atuação concomitante de mais de um intermediador na celebração do mesmo contrato de seguro, na medida em que o agente poderá intermediar a relação jurídica a ser formalizada entre o contratante e a seguradora juntamente com o corretor (art. 1º, § 4º).
Todavia, se por um lado a minuta em questão admite a atuação conjunta destes intermediários no rito de formação do contrato, por outro dispõe que a contratação feita pelo proponente junto ao agente, sem a participação do corretor, caracteriza-se como venda direta da sociedade seguradora, levando a crer que o agente de seguros não atuaria, por conseguinte, na cadeia de distribuição indireta do seguro, mas, sim, na cadeira direta, o que lhe retiraria a qualidade de intermediador (art. 1º, § 5º).
A atuação do agente de seguros pode abranger a prática de uma gama extensa de atos, a depender do quanto regulado no contrato pactuado com a seguradora. O agente pode ofertar e promover planos de seguro no mercado, assim como receber propostas de seguro e emitir bilhetes e apólices individuais em nome da seguradora (art. 2º, I e II). Pode, ainda, coletar e fornecer à seguradora os dados cadastrais e de documentação de proponentes, segurados, beneficiários e corretores de seguros e seus prepostos (art. 2º, III). É possível que recolha prêmios, receba avisos de sinistros e preste indenizações em nome da seguradora (art. 2º, IV, V e VI). Está autorizado, também, a prestar orientações e assistência aos segurados, beneficiários, corretores de seguros e seus prepostos (art. 2º, VII e VIII). E pode, ainda, prestar apoio logístico e administrativo à sociedade seguradora, visando à manutenção dos contratos de seguro, assim como prestar outros serviços de controle, inclusive de dados das operações pactuadas com a sociedade seguradora (art. 2º, IX e X).
Evidencia-se que o agente pode desempenhar atividades umbilicalmente ligadas à própria prática securitária, que extrapolam a atuação na mera comercialização do contrato.
A minuta da resolução em análise dispõe, ainda, de forma clara que tanto a seguradora quanto o agente de seguros são responsáveis pela integralidade, confiabilidade, segurança e sigilo das operações realizadas. Ambos são responsáveis, também, pelo cumprimento das normas e dos regulamentos aplicáveis às operações que realizam, independentemente das medidas de ressarcimento previstas no contrato pactuado (art. 5º). Observa-se que o agente atua de forma muito similar à própria seguradora e liga-se diretamente ao fato jurídico base de seus propósitos.
Ao que tudo indica, a opção foi de imputar à seguradora a responsabilidade por toda e qualquer falha na operação desempenhada pelo agente de seguros, independentemente das disposições contratuais consentidas por estes (cujos efeitos são inegavelmente inter partes). Com efeito, o aspecto protecionista da minuta de resolução proposta pelo CNSP é inexorável e mesmo que se atribua à seguradora ampla responsabilidade pelos atos do agente, este será sempre responsável por atos próprios de forma direta (i.e. pessoalmente).
Nesta senda, frise-se que o agente de seguros também tem o dever de garantir a oferta e a promoção dos produtos de seguros inerentes ao negócio que explora de forma adequada, assim considerada aquela que assegure informações corretas, claras, precisas e ostensivas com relação ao produto comercializado e aos serviços decorrentes de sua contratação (art. 6º, I).
A minuta de resolução em questão inclui o agente de seguros no âmbito de fiscalização da SUSEP, que pode determinar, dentre outras penalidades, a suspensão e interrupção de suas atividade (art. 6º, § 3º e art. 7º). Isso, ao nosso ver, comprova que o agente de fato assume posição intrinsecamente relacionada ao direito subjetivo originado pela sua conduta na esfera do tomador.
O contrato pactuado entre o agente de seguros e a seguradora deve dispor sobre a responsabilidade desta sobre os atos praticados por aquele, inclusive na hipótese de substabelecimento de poderes a terceiros, porquanto as atividades do agente interferirem na composição do próprio contrato (art. 10).
Conforme já alertado não objetivamos exaurir os diversos aspectos inerentes à minuta de resolução, de modo que a síntese supra destacada – em que pese não substituir a leitura da minuta em questão – já é o suficiente para o que ora nos cumpre, uma vez que resta bastante claro que a figura cujo regulamento ora se expõe conquanto denominada agente de seguros em nada se confunde com aquela antiga espécie de agente, que de forma paralela ao seu habitual ofício apenas angariava propostas em nome da seguradora. Estamos, verdadeiramente, diante de um atuante multifacetado do mercado de seguros – um verdadeiro “player”[28] – cujas práticas abrangem além de intermediar contratos a prática de uma série de atos diretamente ligados ao negócio jurídico que fomenta, revelando-se instituto de configuração jurídica complexa.
3. Um pouco sobre o agente de seguros: o direito estrangeiro, o direito brasileiro e a minuta de Resolução do CNSP.
A literatura jurídica estrangeira demonstra que, em diversos ordenamentos normativos estrangeiros, a figura do agente de seguros foi alvo de constante atenção do legislador e é entidade amplamente conhecida no mercado securitário, não necessariamente nos mesmos moldes propostos pela minuta de resolução abordada neste ensaio. Pontos de contato, entretanto, são evidentes.
Com efeito, conforme lembra Angelo M. M. Cerne “em todo o mundo a classe dos agentes é maior do que a classe dos corretores; aqui no Brasil foi praticamente extinta”.[29] Todavia, com a promulgação do Código Civil Brasileiro atual (art. 775), com a proposta contida no Projeto de Lei nº 8.034/2010 (Cap. IV, arts. 41 ao 46) e, mais recentemente, com a sugestão de resolução do CNSP chegou a hora da figura do agente de seguros receber a atenção que lhe foi sonegada pelos estudiosos do direito ao longo dos últimos anos.
No direito inglês, conforme indica D. S. Hansell, há basicamente dois tipos de intermediários no mercado de seguros. Os “insurance brokers” (i.e. corretores de seguros) e os “insurance agents” (i.e. agentes de seguros).[30] Evidencia-se que o agente de seguros pode ser um profissional que não tem formação securitária e que atua exclusivamente prospectando negócios para intermediar com a seguradora a formalização de novos contratos, recebendo, para tanto, remuneração. Conquanto haja mais de uma espécie de agentes – que, inclusive, podem ser tanto do segurado quanto do segurador[31] – a figura que mais chama a atenção no direito inglês, para os propósitos deste estudo, é a do “agent with wide powers”.
A classe dos agentes com amplos poderes no ordenamento britânico, como esclarece D. S. Hensell, é composta por “persons authorized to act on behalf of the insurer with considerable ability to enter into contracts and generally conduct business”.[32]
Com efeito, o agente de seguro alvo da atenção do CNSP tem traços semelhantes com a figura do “agent with wide powers” do direito inglês, porquanto gozar da possibilidade de atuar de forma bastante ampla em nome da seguradora.
O agente de seguros também é há muito conhecido na Itália. Doutrinador de peso no direito securitário – Antigono Donati –, em sua obra em coautoria com Giovanna Volpe Putzolu, define o agente de seguros como aquele que “assume stabilmente l’incarico di promuovere la conclusione di contratti per conto di una impresa di assicurazione o di riassicurazione”.[33]
Para referidos autores o agente de seguros “é um colaborador autônomo da empresa (o chamado agente de gestão livre) e, como tal, não pode ser confundido com aquele que é preposto da empresa responsável pela gestão da chamada agência em economia”.[34] Por conseguinte, traço característico do agente de seguro na Itália é que desempenhe sua atuação de forma autônoma e sem vínculo trabalhista com a seguradora. Neste aspecto, a sistemática adotada pela minuta em análise assemelha-se à realidade italiana.
Há, no direito italiano, o “agente con rappresentanza” do “agente senza rappresentanza”[35]. Como o próprio nome indica, há agentes de seguro com poderes de representação e agentes de seguro sem poderes de representação. A diferença é total. Vivante, inclusive, indica que o agente de seguros “vero e próprio” é somente aquele que efetivamente pode concluir o contrato como se seguradora fosse, mesmo que submetido a graus de limitação.[36]
Com efeito, Cesare Vivante concluiu, desde muito cedo, que a figura do agente de seguros não é caracterizada pelo seu título, mas, sim, pelos seus atributos (rectius: atuação).[37] Referido autor frisa, com precisão, que “si deve distinguere che hanno il potere di concludere contratti, da quelli che hanno soltanto l’incarico di procacciare le offerte del pubblico”.[38]
A minuta proposta pelo CNSP também parece preservar, em todas as hipóteses, a possibilidade deste efetivamente concluir o contrato, de modo que é possível supormos que, assim como orienta a doutrina italiana, também a resolução em tela indica reservar a qualidade de agente de seguros para aqueles que concretamente atuam nos ritos de formação e condução do contrato de seguro em benefício ao negócio explorado pela seguradora.
Em Portugal – conforme dispõe o Decreto-lei nº 144/2006 – há três categorias de intermediários de seguros, que são os “mediadores”, os “agentes” e os “corretores”. Referida norma define o agente de seguros da seguinte maneira: “a pessoa exerce a actividade de mediação de seguros em nome e por conta de uma ou mais empresas de seguros ou de outro mediador de seguros, nos termos do ou dos contratos que celebre com essas entidades”.[39]
Na mesma esteira do quanto já sustentado por Vivante, J. C. Moitinho de Almeida frisa que é sempre importante distinguir entre os agentes “que apenas intervêm na obtenção de propostas de seguros, depois submetidas à apreciação da seguradora, e os que cumulam estas funções com poderes de conclusão de contratos, designados no direito britânico como underwiters.”[40]
De fato, não nos parece que o nomen iuris seja o responsável pela qualificação jurídica do agente. É necessário seja analisada a figura do agente da ótica de sua atuação concreta, de modo que a minuta de resolução proposta pelo CNSP parece caminhar no mesmo sentido do quanto sustentado pela doutrina italiana e portuguesa mais refinada, ou seja: o verdadeiro agente de seguros representa a seguradora e pode, em nome desta, concluir o contrato de seguros, não sendo o bastante que apenas fomente a intermediação entre o proponente e a seguradora.
No direito argentino os “intermediarios” dividem-se em “agentes institorios” e “agentes dependientes”, tudo dependendo se – de acordo com Isaac Halperin – “expresa o tácitamente estén o no autorizados a emitir pólizas y celebrar contratos”.[41] O mesmo doutrinador destaca, ainda, que “los primeiros tienen una actividad jurídica; los segundos, una esencialmente material”.[42]
Para Gustavo Raúl Meilij, outra autoridade em direito securitário, o “agente institorio está autorizado a pactar modificaciones o prórrogas de los contratos de seguro en vigencia, siempre que sean corrientes dentro del giro normal del asegurador”.[43]
A doutrina argentina – assim como as demais já revisitadas – emprega especial atenção à aparência que o agente de seguros efetivamente ostenta perante ao mercado (rectius: atuação efetiva nos negócios jurídicos que formaliza), e dependendo de sua atuação concreta pode encontrar-se em posição de mero fomentador ou de verdadeiro responsável pelos negócios da seguradora.[44]
Esta parece ser, também, a orientação da minuta de resolução ora em destaque. O agente de seguro atua em favor direto da sorte dos negócios da seguradora, podendo, inclusive, receber propostas, emitir apólices, angariar prêmios e prestar indenizações, como se seguradora fosse.
Entre nós, como já destacamos, conquanto esquecida o agente de seguros não é figura de todo desconhecida. Este – que não se confunde com o corretor de seguros[45] – conforme afirma Ricardo Bechara Santos é produtor independente e externo das seguradoras, mas que ao contrário de outras figuras atuantes na intermediação dos contratos de seguros atua, tão somente, em favor das seguradoras.[46] Ao nosso ver, esta característica está em relevo na minuta em comento.
Evidencia-se ultrapassada aquela figura de agente – tal como lembrada por Pedro Alvim[47] – que sem experiência e técnica relevantes era responsável pela simples angariação de interessados em contratar seguros. Resistiu, ao que tudo indica, todavia, o agente que funciona como verdadeiro longa manus das seguradoras, e que se assemelha, bastante, com os antigos “agentes emissores” previstos na Resolução CNSP nº 019/78.
Necessitamos, assim, analisar com pouco mais de cautela a natureza jurídica desse contrato e a figura do agente de seguros na atualidade.
4. Segue. As principais características do contrato objeto da minuta de resolução do CNSP base do presente estudo.
A doutrina especializada já denunciou que é inevitável – caso determinada atividade seja desenvolvida de forma empiricamente igual a do agente de seguros (com a possibilidade, inclusive, de se praticar determinados atos como se a companhia fosse) – mesmo esteja a respectiva entidade transvestida de outra figura jurídica (v.g. corretor de seguros), não há como afastar a conclusão (legal) que se trata de puro agenciamento de seguros.[48]
Nesse sentido, permanece inafastável o quanto afirmado por Vivante, quando ensinou que “per determinare la figura giuridica degli agenti non deve badare al loro titolo ma ai loro poteri”.[49] Com efeito, assim como sustenta Pontes de Miranda, parece-nos que se tem de examinar cada espécie, pois muitos agentes, de que se fala, não são agentes.[50]
Por isso merece aplausos o CNSP quando, de forma expressa, procura isolar as características próprias e singulares do contrato que faz nascer a atuação do agente dos demais contratos próprios de outros partícipes do mercado securitário, tais como, e em especial, do corretor de seguros (v.g. arts. 1º, §§ 4º, 6º; e 16).
Antônio Penteado Mendonça há muito alerta o mercado que – diferentemente do corretor – o agente é vinculado contratualmente à seguradora, com a função de representá-la de forma mais ou menos ampla, e não se restringe, obrigatoriamente, ao campo comercial, pois pode realizar outros atos próprios do negócio de seguros (v.g. regular sinistros), conforme seja pactuado com a companhia.[51]
O dicionário de seguros da FUNENSEG define que o agente de seguros “é aquele que em nome da seguradora comercializa apólices de seguros”.[52] Entendemos que, de fato, o agente desempenha atividade empresarial, em proveito próprio, nada obstante através da exploração de produto alheio.
Frise-se, conforme assevera Antigono Donati – Prof. Titular de Direito dos Seguros da Universidade de Roma – em seu conhecido “Trattato del diritto delle assicurazioni private” que somente “i prestatori di lavoro autonomo sono agenti ai sensi degli artt. 1742, 1753, 1903 cod. civ. quindi agenti di assicurazione in senso tecnico”.[53]
O agente de seguros apresenta-se como “un verdadero e proprio imprenditore”.[54]
Pontes de Miranda ensina que a independência é traço particular e essencial do agenciamento, de modo que não há de se cogitar a incidência de qualquer relação de trabalho entre o agente e a seguradora, pois “o agente-empregado, por mais que procure aparecer como empresa autônoma, não deixa de ser o que é; e vice-versa”.[55]
É de suma importância notar, ademais, conforme destaca Antigono Donati, que ao que tudo indica “il potere rappresentativo del l’agente al riguardo soltanto elemento accidentale del rapporto”.[56] Esta particularidade deve ser compreendida pelo o intérprete, porquanto extremamente importante ao estudo do instituto telado.
Com efeito, nada obstante a minuta de resolução proposta pelo CNSP indicar, expressamente, que o agente de seguros é um representante da seguradora, parece-nos que não se trata da regulamentação de um contrato de mandato propriamente dito, porque ao que tudo indica a representação exercida pelo agente de seguros é apenas um dos diversos elementos inerentes ao contrato que o liga à seguradora, não prestando para revelar a sua verdadeira feição.[57]
Como já tivemos a oportunidade de frisar em nosso “Manual de Direito Civil”, o “mandato é o contrato pelo qual determinada pessoa, que é denominada mandatário, recebe de outrem, que é denominada mandante, poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. É uma representação convencional, em que o representante pratica atos que dão origem a direitos e obrigações que repercutem na esfera jurídica do representado”.[58]
É visível a semelhança entre a normativa proposta pelo CNSP e a definição por nós proposta do contrato de mandato. Todavia, parece-nos que as circunstâncias especialíssimas do direito securitário fazem com que o agente de seguros diferencie-se do legítimo mandatário, uma vez que a sua atuação no rito de formação e de execução do contrato de seguro, invariavelmente, propagará efeitos sobre a sua própria esfera jurídica, o que não ocorre, necessariamente, na hipótese de mandato puro.
Ademais, a regra que o mandante obriga-se pelos atos do mandatário, salvo se praticados em excesso de poderes (arts. 673 e 679 do CCB) é há muito conhecida em nosso ordenamento jurídico e não se aplica nos mesmos moldes ao contrato de agenciamento de seguros. De fato, Eduardo Espinola lembra que “se o mandatário proceder em seu próprio nome, não terá o mandante ação contra os que com ele contratarem, nem estes contra o mandante. Somente o mandatário ficará diretamente obrigado, como se seu fora o negócio”.[59]
Cremos que ao agente de seguros aplica-se regime diverso. Salvo raras exceções em que de forma cabal é possível comprovar que o tomador do seguro tinha prévio e nítido conhecimento dos limites existentes entre a seguradora e o agente de seguros – e, portanto, contratou com quem não poderia contratar – tudo indica que os atos injustos praticados pelo agente propagarão efeitos imediatos sobre a sua própria esfera jurídica, assim como sobre a esfera jurídica da seguradora.
Nesse sentido, acreditamos aplicar à espécie a lição da melhor doutrina italiana, que propõe ser vedado à seguradora beneficiar-se das vantagens da atuação do agente e rejeitar as suas consequências quando apresentarem-se danosas. A responsabilidade ampla da seguradora é uma consequência inseparável do ofício que exerce em conjunto com o agente e representa o lado passivo de sua atividade empresarial.[60]
Portanto, conquanto o mandato seja, inegavelmente, um dos elementos próprios do objeto do contrato mantido entre o agente de seguros e a seguradora, não nos parece tratar-se, puramente, de contrato de mandato.
Antigono Donati – muito além de seu tempo – identificou que outro traço particular do agente de seguros é a estabilidade com que este colabora, mesmo que de forma autônoma, com os negócios explorados pela seguradora. Ou seja, não é agente de seguros aquele que desempenha a intermediação no mercado de seguros de forma eventual.[61]
Ora, é clarividente que a minuta proposta pelo CNSP encabeça o mesmo entendimento ao afirmar que o agente de seguros é aquele que assume “a obrigação de promover, em caráter não eventual e sem vínculos de dependência, a realização de contratos de seguro” (art. 1º).
O elemento da estabilidade, como lembra J. C. Moitinho de Almeida, aparece em diversos ordenamentos jurídicos como traço característico da relação entre o agente e a companhia. Referido elemento está presente, dentre outros, na lei austríaca que dispõe sobre o contrato de seguro, que define o agente de seguros como sendo “a pessoa a quem uma seguradora confia, de modo estável, a intervenção ou a conclusão de contratos de seguro”.[62]
Também por esse motivo, o contrato mantido entre o agente de seguros e a seguradora não é típico contrato de mandato, pois em regra este não tem caráter duradouro.[63]
A atuação do agente de seguros conforme proposto pela minuta do CNSP segue uma tendência mundial quanto à espécie, já que atribui a este a qualidade de um verdadeiro “player” coligado à seguradora. Consequentemente, parece-nos que a atuação fática e aparente do agente de seguros propagará efeitos tanto sobre a sua esfera jurídica quanto sobre a da agenciada.
Sobre este aspecto, chamamos a atenção para a jurisprudência alemã conhecida como “Auge und Ohr”, que reconhece que tudo o que chega ao conhecimento do agente de seguros, mesmo se tratando de fatos comunicados oralmente, é imputável à seguradora.[64] A interpretação do ordenamento jurídico alemão dá ênfase à atuação concreta do agente de seguros em face dos contornos literais do instrumento do contrato que este mantém com a seguradora. Assim, mesmo que despido de poderes, na hipótese do agente assumir uma postura que ao tomador do seguro diligente ostente a qualidade de legítimo para ofertar e concluir o contrato, seus atos vincularão a si e à seguradora, em virtude da proteção decorrente da boa-fé objetiva e da teoria da autoridade aparente (Anscheinsvollmacht).
Evidencia-se que a tendência do direito securitário tedesco é estabelecer a vinculatividade da seguradora aos atos do agente quando este gozar das prerrogativas de captação, negociação e conclusão do contrato de seguros, com ou sem poderes instrumentados para tanto[65].
A lei suíça sobre seguros (Bundesgesetzüber den Versicherungsvertrag), em seu artigo 34 regula a extensão dos efeitos praticados pelo agente de seguros à seguradora e estabelece que “Verantwortlichkeit des Versicherers für seine Vermittler. Gegenüber dem Versicherungsnehmer hat der Versicherer für das Verhalten seines Vermittlers wie für sein eigenes einzustehen”[66], isto é perante o tomador do seguro, o segurador deve responsabilizar-se tanto por seu comportamento quanto pelo de seus agentes.[67]
Evidencia-se que, assim como ocorre na Alemanha, a posição do ordenamento jurídico suíço coloca-se no sentido de – independentemente dos contornos da relação interna mantida entre intermediário e intermediada – atribuir mais valor para o que o agente de seguros “de fato é” do que para o que “deveria ser”.
O Código Civil Italiano, por sua vez, conquanto particular em alguns sentidos, alinha-se com a postura mais moderna do Direito Europeu e propõe em seu artigo 1.745 que “le dichiarazioni che riguardano l’esecuzione del contratto concluso per il tramite dell’agente e i reclami relativi alle inadempienze contrattuali sono validamente fatti all’agente.”[68]
Na França, ao que tudo indica, ocorre o mesmo. O Tribunal de Cassação Francês, por exemplo, já reconheceu válida a notificação destinada a resolver do contrato de seguro feita pelo segurado na pessoa do agente, independentemente de instrumento expresso de poderes, uma vez que na espécie em julgamento restou provado que o agente faticamente realizava todos os atos ligados à operação e à execução do contrato de seguro junto ao segurado.[69]
Na Espanha a “Ley de Mediación en Seguros Privados nº 09/1992”[70], dispõe em seu artigo 10.2 que “las comunicaciones que efectúe el tomador del seguro al agente de seguros que medie o que haya mediado en el contrato surtirán los mismos efectos que si se hubiesen realizado directamente a la entidad aseguradora. Asimismo, el pago de los recibos de prima por el tomador del seguro al referido agente de seguros se entenderá realizado a la entidad aseguradora, salvo que ello se haya excluido expresamente y destacado de modo especial en la póliza de seguro”.[71]
E para finalizarmos a nossa perquirição no direito estrangeiro, chamamos a atenção para o tratamento da matéria dada pelo ordenamento jurídico inglês – que de forma bastante parecida é seguido pelo sistema americano –, no qual vige a teoria da “ostensible authority” que dispõe sobre os efeitos propagados à seguradora pelos atos praticados pelo agente de seguros. De acordo com os ensinamentos do ilustre jurista Malcom A. Clarke através da aplicação desta teoria estende-se à seguradora todos os efeitos dos atos praticados pelo agente de seguros, sempre que o tomador do contrato tenha legítimas razões para crer que este atuava, faticamente, em favor e em benefício da segurada, mesmos não detendo poderes para tanto.[72]
Em que pese as inúmeras particularidades ligadas aos ordenamentos jurídicos em comento, o fato é que ganha inegável destaque para a doutrina mundial a questão da efetiva atuação do agente de seguros no mundo fenomênico, ou seja: cada vez mais importa verificar, independentemente do contido no contrato articulado com a seguradora (o que deveria ser), o efetivo comportamento do agente em face do segurado (o que é).
Entre nós, mesmo após tanto tempo de esquecimento da doutrina quanto ao assunto em abordagem, parece que aos poucos os estudiosos do direito securitário alinham-se às melhores orientações decorrentes dos ordenamentos jurídicos estrangeiros. Constata-se essa tendência, por exemplo, pelo Projeto de Lei nº 8.034/2010 que tramita no Congresso Nacional, que expressamente encampa a proposta que torna a seguradora vinculada aos atos cometidos pelo agente de seguros que atua em seu favor (arts. 42 e 43)[73], assim como pela própria minuta do CNSP ora em análise.
As constatações que acabamos de realizar, conquanto extremamente sumárias para a real dimensão do instituto e seus respectivos contornos – objetiva demonstrar que nada obstante o contido em lei (ou em resoluções administrativas decorrentes da eficácia indireta da Constituição[74]) a atuação do agente de seguros é tão intimamente ligada com a relação jurídica contratual do seguro, que a norma indica que mesmo que aja em nome da seguradora, eventuais comportamentos dissidentes da boa prática mercadológica, até mesmo quando não calcados em poderes de representação, atingem inexoravelmente a esfera jurídica da entidade seguradora.
Isso porque, com efeito, mesmo inexistindo poderes específicos para a prática de determinados atos – exatamente em razão da representação não deixar de ser um elemento acidental[75] e não essencial do contrato pactuado com a seguradora – o agente de seguros não adstrito à diligência que dele é esperada, vinculará a seguradora por que – conforme Pontes de Miranda – é na atividade do agente que há de se buscar a solução do problema.[76]
Todas estas peculiaridades também não se amoldam, perfeitamente, na égide do contrato de mandato puro e verdadeiro. E caso se tratasse de real mandato não haveria razão da minuta em questão prever que o agente de seguros submete-se ao controle da SUSEP, uma vez que estaria agindo, incondicionalmente, em nome e por conta da seguradora e em nada se comunicando, pessoalmente, com os ritos de formação e execução do contrato de seguro propriamente ditos.
Ademais, ressalte-se que nada obstante a redação do artigo 710 do Código Civil Brasileiro assemelhar-se sobremaneira com o artigo 1º da minuta de proposta de resolução em comento, acreditamos que o contrato mantido entre o agente de seguros e a seguradora também não se confunde com o contrato de agência, tal como previsto na lei brasileira. De efeito, afirma Arnaldo Rizzardo que pelo contrato de agência puro (CCB) o agente apenas angaria negócios para o representado, mas não tem poderes para obrigar o representado, nem para decidir em seu nome. Como se não bastasse, prossegue o referido autor em sua doutrina esclarecendo que na agência o agente é um intermediário que age em nome e por conta da empresa representada, não se responsabilizando, de modo algum, pelos negócios que intermedia.[77]
Esta concepção, como se pode perceber, vai de encontro aos propósitos da minuta de resolução em questão, assim como à doutrina mais avançada sobre a matéria.
De efeito, na mesma esteira da doutrina de Pontes de Miranda, parece-nos que nada obstante a coincidência de nomes, o agente de seguros tal como tratado na minuta em análise não insere-se no contrato previsto no Código Civil Brasileiro como agência (arts. 710 e ss.), até porque o traço característico deste é que o agente aja apenas até onde o seu agir não o ponha no lugar do agenciado[78].
O agente de seguros atua em face do segurado no verdadeiro lugar da seguradora. Tornam-se concretas as chances, portanto, do consumidor confundir o agente de seguros com a própria seguradora em seu desempenhar mercadológico, pois afinal pode além de pactuar o contrato coletar os prêmios e até prestar as indenizações diretamente ao tomador do contrato.
Pode haver (e acreditamos na maioria das vezes haja) uma verdadeira sobreposição de atuações entre o agente de seguros e a seguradora, característica esta única do contrato ora em comento, pois tanto no mandato, quanto na agência pode ocorrer representação no momento da intermediação e celebração do negócio, mas raramente o mandatário ou o agente realizam os atos próprios do mandante ou agenciado em face do tomador do produto ou serviço. A atuação destes exaure-se em um plano anterior à efetiva conclusão do contrato intermediado, e muito antes da sua execução.
Ademais, conquanto acreditarmos que o agente de seguros também realiza tarefas próprias do comissário, com este não se confunde pois age em nome da seguradora e não em nome próprio.[79]
O agente de seguros, também não se insere em contrato de prestação de serviços.[80]
O contrato alvo de estudo no presente ensaio, de acordo com o nosso entendimento, demonstra facies próprias e deveras particulares, o que lhe particulariza dos demais contratos nominados previsto no Código Civil Brasileiro.
Preferimos, dessa feita – até porque aqui não é o momento para tratar de forma mais aprofundada a questão – classificar a natureza jurídica do contrato objeto da minuta de resolução em comento como sendo sui generis.
E é sobre uma característica particular deste contrato sui generis que nos pautaremos daqui em diante: o potencial de vinculação da seguradora aos atos praticados pelo agente. A nossa análise ocorrerá, sobretudo, da ótica da relação jurídica processual eventualmente instaurada pelo segurado ou beneficiário contra o agente de seguros, através da qual se pode atingir a esfera jurídica da seguradora mesmo que totalmente estranha ao processo (i.e. terceira).
5. Partes e terceiros no Direito Processual Civil: distinção técnica de relevo para o assunto abordado neste ensaio.
A conceituação de parte para o direito processo civil não encerra simples importância teórica, muito pelo contrário, antes é necessária à solução de graves problemas práticos.[81] Identificar em uma determinada relação jurídica processual quem seja parte e quem seja terceiro é, antes de tudo, pressuposto de efetividade do processo, pois somente assim se precisa, com exatidão, quem está e quem não está submetido aos efeitos decorrentes da tutela jurisdicional prestada pelo Estado-juiz.
Conforme revela a conceituada doutrina alemã de Leo Resenberg “partes en el proceso civil son aquellas personas que solicitan y contra las que se solicita, en nombre proprio, la tutela jurídica estatal”.[82]
A doutrina italiana não discrepa deste entendimento, conforme desvenda Chiovenda, para quem “parte é aquele que demanda em seu nome próprio (ou em cujo nome é demandada) a atuação duma vontade da lei, a aquele em face de quem essa atuação é demandada”[83].
Jaime Guasp, pela doutrina espanhola, em seu conhecido “Derecho procesal civil”, que mais recentemente contou com a participação de Pedro Aragoneses, também acolhe esta conceituação e afirma que “parte es quien pretende y frente a quien se pretende, o más ampliamente, quien reclama y frente a quien se reclama la satisfacción de una pretensión”.[84]
Entre nós, posicionam-se do mesmo modo os nossos ilustres Professores Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem: “em sentido processual parte é aquele que pede (autor) e em face de quem se pede (réu) a tutela jurisdicional”.[85]
Frise-se, desde logo, que não há de se confundir o conceito de parte do processo com o conceito de parte do direito material. Para o processo civil a qualificação de parte respeita requisitos próprios que nem sempre se coadunam com os aspectos inerentes à qualificação de parte da relação jurídica subjetiva.
Conforme ministra José Frederico Marques “deve reconhecer posição de parte a todo aquele que formula uma pretensão e pede a aplicação jurisdicional no Direito, independentemente da indagação sobre a existência de legitimidade ad causam ou sobre existência do direito material em que descansa a referida pretensão.”[86]
Em virtude da inegável autonomia que ostenta o direito processual em relação ao direito material[87], o conceito de parte não pode ser vinculado à ideia de relação jurídica subjetiva deduzida para a qual o processo busca proteção.[88] Sobre a questão, Enrico Redenti bem esclarece que “en efecto se infiere que una cosa es el tener legalmente posición de parte en una relación de derecho sustancial (derecho subjetivo primario), otra cosa es el tener esa posición en una acción, y otra aún el tenerla en una relación procesal (proceso)”.[89]
O conceito de parte para o processo civil é autônomo ao direito material e pauta-se na qualidade do sujeito estar em juízo em nome e por força próprios, aduzindo pedido em face de alguém ou sendo alvo do pedido aduzido por alguém (pretensão processual exercida e resistida)[90].
Portanto, a teorização da parte no processo civil está intimamente ligada com o pedido de determinada consequência legal, ou seja com a pretensão processual a ser exercida em juízo (quem pede ou em face de quem algo é pedido)[91].
Pontes de Miranda alerta ser posição “equivocada, e que portanto deve ser afastada, a correlação necessária entre ser parte e ser sujeito da relação de direito material, ou mesmo portador de pretensão de direito material. O certo é que tal correlação pode existir, não existe sempre, nem implica, quando existe, nexo ativo.”[92]
De outra banda, a teorização clássica do conceito de terceiro deriva de uma operação de exclusão. Por mais singelo que pareça, de efeito para o processo civil quem não é parte, é terceiro. Assim, quem não pede algo, ou contra quem nada é pedido é terceiro para o processo.
Parafraseando o ilustre processualista José Carlos Barbosa Moreira podemos afirmar que terceiro é aquele que não é parte, quer nunca o tenha sido, quer haja deixado de sê-lo em momento anterior àquele que se profira a decisão[93].
Dessa feita, percebe-se que parte não é terceiro; e terceiro é todo aquele que não é parte. O conceito de parte, nestas condições, é obtido pela negação de quem seja terceiro e vice-versa[94]. A definição de terceiro respeita um critério residual.
6. Breves notas sobre os terceiros e suas espécies.
Conforme ministram Teresa Arruda Alvim Wambier e Luiz Rodrigues Wambier, há duas classes de terceiros no processo civil brasileiro, quais sejam: os desinteressados e os interessados. Assim é possível dizer que a qualidade de terceiros em relação a um processo comporta “níveis” ou “graus”[95].
Os terceiros desinteressados são absolutamente alheios ao objeto litigioso do processo[96], não sofrendo qualquer impacto advindo deste e não tendo qualquer pretensão ou mesmo ligação com a relação jurídica processual da qual não fazem parte. Estes terceiros não são atingidos nem pelos efeitos da sentença, nem pela coisa julgada advindas do processo. Para cada processo que tramita no Poder Judiciário brasileiro, a quase totalidade dos cidadãos é indiferente[97].
Por sua vez, os terceiros interessados são aqueles que podem, com maior ou menor grau, sofrer com o resultado do processo.
Importante destacar que dentro da classe de terceiros interessados, há duas espécies, quais sejam: os terceiros diretamente interessados e os terceiros indiretamente desinteressados.
Para a classificação proposta pela doutrina o que importa é o grau de afinidade (verdadeira intimidade) que a relação jurídica da qual o terceiro faz parte com a relação jurídica de direito material posto na causa a que ele é estranho.
Portanto, os terceiros interessados de forma direta são aqueles que possuem forte ligação com direito material controvertido no processo, já que a sorte do seu direito subjetivo depende, inexoravelmente, da sorte da proteção conquistada pela parte no processo (i.e. reflexos diretos em virtude da unicidade da relação jurídica).[98]
Os terceiros interessados de forma indireta, por ouro lado, não se vinculam, propriamente, à relação de direito material cuja proteção se objetiva através do processo, mas são titulares de relações jurídicas que de forma secundária podem sofrer reflexos do resultado da pretensão processual exercida pela parte.[99]
Conclui-se, de forma extremamente breve, que os terceiros interessados de forma direta se situam, em relação ao objeto litigioso do processo, em um grau de proximidade consideravelmente maior do que os terceiros interessados de forma indireta. Quanto mais proximidade do objeto litigioso do processo o terceiro ostente, mais efeitos sofrerá em relação aos provimentos jurisdicionais advindos deste processo. É o que basta, para os propósitos do presente estudo.
7. Os efeitos da sentença e a autoridade da coisa julgada: a propagação perante os terceiros. Notas introdutórias para a problemática inerente à relação entre o agente de seguros e a seguradora.
Na esteira do que sustenta a melhor doutrina é preciso distinguir os efeitos da sentença e o instituto da coisa julgada material.[100] Há muito Liebman advertiu que são coisas distintas a eficácia da sentença em relação a terceiros e a da coisa julgada em relação a terceiros.[101]
De acordo com Barbosa Moreira, a sentença como ato jurídico que é destina-se, naturalmente, a produzir efeitos e em razão disso é dotada de eficácia própria, assim considerada a aptidão, in abstracto, para produzir as consequências jurídicas (rectius: efeitos concretos) dela esperadas.[102]
A sentença pode produzir efeitos das mais diversas formas e estes fluem de acordo e no momento fixado pela lei, ou por quem a lei autorize fixa-lo.[103]
Em regra, a doutrina aceita a concepção que a eficácia da sentença – independentemente do momento de sua propagação – consiste na emanação de um comando, que declara, constitui ou modifica relações jurídicas, ou condena o devedor a dar uma coisa ou a fazer algo em favor de seu credor.[104]
A eficácia natural da sentença é subjetivamente ilimitada, pois “em regra a sentença destina-se a operar, e operará, sobre todas as relações e sobre todas as pessoas que se encontrarem em sua esfera de influência”. [105] Todos aqueles que se tenham, com maior ou menos proximidade, alguma espécie de conexão com o objeto litigioso do processo sofrem os efeitos da sentença que determina a atuação da lei no caso concreto.[106]
Com razão Liebman, nesse sentido, ao afirmar que diferentemente do que imperava quando a sentença era compreendida como um contrato ou um quase-contrato, a partir do momento em que esse pronunciamento jurisdicional recebeu a eficácia do poder soberano da autoridade em cujo nome é emitido, da qualidade pública e estatal do órgão que o prolata, é de todo inexplicável que valha apenas para um e não para todos como formulação da vontade do Estado para o caso concreto.[107]
A decisão judicial incide de forma objetiva sobre a relação jurídica que foi o seu alvo, não sendo dirigida a uma pessoa antes que a outra. Com efeito, “sofrem os efeitos da sentença todos aqueles em cuja esfera jurídica entra mais ou menos diretamente o objeto da sentença: antes de tudo e, necessariamente, as partes, titulares da relação afirmada e deduzida em juízo, e, depois gradativamente, todos os outros cujos direitos estejam de certo modo com ela em relação de conexão, dependência ou interferência jurídica ou prática, quer quanto à sua existência, quer quanto a possibilidade de sua efetiva realização”.[108]
No que se refere à coisa julgada (i.e. a situação jurídica nova que torna o comando da sentença imutável), em regra, apenas as partes figurantes no processo em que se formou a ela se submetem – “res inter alios judicata aliis neque nocet neque prodest” (CPC 472).[109]
Contudo, em determinadas situações – assim como ocorre com os efeitos da sentença – a coisa julgada também atingirá a esfera jurídica de terceiros. E estas situações, verdadeiramente diferenciadas, muito importam para o presente estudo.
Pautado na obra do ilustre doutrinador italiano Emilio Betti, Guilherme Estellita lembra que um dos motivos que justifica do ponto de vista do direito a extensão da coisa julgada ao terceiro é a condição de real subordinação em que este se encontra em face de um dos litigantes, considerada, para determinar essa condição, a situação jurídica de um em relação ao outro.[110]
Não se desconhece as inúmeras situações apontadas pela doutrina nas quais o fenômeno da extensão subjetiva da coisa julgada está presente.[111] Todavia – presos aos propósitos que ora nos cumprem – trataremos, apenas, da hipótese em que o terceiro é atingido pela coisa julgada porque a sua posição jurídica em face da relação decidida é efetivamente vinculada a de uma das partes.[112]
Leo Rosenberg esclarece, na hipótese em tratamento, que a extensão da coisa julgada ocorre na medida em que o direito material colocar o terceiro em posição jurídica de dependência com a posição da parte no processo.[113] A relação de dependência, frise-se, é sempre jurídica e nunca fática.
Já Enrico Allorio – em “La cosa giudicata rispetto ai terzi” – deixa claro que o reflexo subjetivo da coisa julgada na hipótese em tela decorre da vinculação jurídica existente entre a situação do terceiro e aquela decidida no processo. Para o ilustre processualista italiano “i nessi giuridici, più profondi, hanno sede nello stesso congegno della norma giuridica, nell’intima relazione tra fattispecie ed effetto”.[114] Em razão disso, para Allorio “il nesso giuridico che di regola giustifica l’influenza che il giudicato può avere per il terzo, è il nesso di pregiudizialità (o pregiudizialità-dipendenza) tra rapporti”.[115]
Com efeito, se a parte e o terceiro figuram em uma relação direta de contato com um dado direito subjetivo (mesmo que não haja co-titularidade) a coisa julgada formada sobre o pronunciamento jurisdicional a um destinado proporcionará efeitos direitos ao outro, conquanto terceiro – “auctoritas rei inter alios iudicatae”.
A norma jurídica, regularmente, opera atribuindo à situação de fato abstratamente prevista um efeito jurídico.[116] Contudo, afirma Allorio “non sempre, nel definire la fattispecie di un dato effetto giuridico, la norma richiama dei fatti materiali: talora, la costruzione è, invece, la seguente: effetti giuridici sono ricollegati ad altri effetti giuridici”.[117] Isso, porque o efeito jurídico disposto por tal norma se relaciona a da situação de fato material (rectius: concreta): isto é inevitável, porque o direito opera sobre a realidade e as suas decisões não podem relacionar-se com outra coisa que não a realidade.[118]
Se após a subsunção legal determinada norma logrou em propiciar efeitos sobre uma situação fática concreta e o fez através de um pronunciamento jurisdicional, que, após tornar-se imutável pelo trânsito em julgado, deu origem a um a situação jurídica nova conhecida como coisa julgada material, todos aqueles que se liguem diretamente com a relação subjetiva concreta que foi alvo da atuação do Estado-juiz estão vedados de rediscutirem a questão, pois a uma realidade deve-se fazer valer apenas uma resposta jurisdicional (unicidade da relação jurídica material).
Portanto, é forçoso concluir que ligando-se o terceiro à mesma relação jurídica que uma das partes do processo, a coisa julgada neste formada propagará efeitos ultra partes pois a realidade fenomênica é única: não há como a mesma situação concreta subsumir-se de formas distintas à mesma norma jurídica.
8. Segue. O agente de seguros e a seguradora: extensão dos efeitos da sentença e os limites subjetivos da coisa julgada.
De acordo com o já visto acima, é ínsito à figura do agente de seguros a prerrogativa de agir diretamente no mercado de consumo (v.g. concluindo contratos, emitindo de forma direta apólices e, dentre outros, recebendo, pessoalmente, prêmios).
Parece-nos inafastável a concepção do agente de seguros como um “player” coligado à seguradora, cuja atuação mercadológica lhe insere em uma situação intimamente ligada à relação jurídica substancial do contrato de seguro (ofertado pela seguradora, intermediado pelo agente, tomado pelo segurado e mantido, ao longo de sua execução, pelo agente).
Já demonstramos ser forte a tendência doutrinária e jurisprudencial nos ordenamentos jurídicos mais avançados do mundo – sopesando a extensão dos poderes do agente e a sua real e fática atuação empresarial – atribuir, em face ao tomador, maior prestígio à tese que tanto o agente quanto a seguradora são elegíveis a responder pelos danos decorrentes dos vícios ligados a relação jurídica contratual, já que por ambos articulada no mercado de consumo.
São diversas as conjecturas que podem desencadear o legítimo interesse do segurado em provocar a jurisdição para questionar o contrato de seguro (v.g. validade, abusividade, extensão da cobertura, prazo, valor do prêmio, etc.). Consideraremos, para os fins que ora nos cumpre, apenas as hipóteses nas quais a fomentação, conclusão e manutenção do contrato de seguro é de encargo do agente que atua junto ao segurado como se verdadeira seguradora fosse. Para restringirmos ainda mais a problematização, analisaremos apenas (e algumas) situações que propagam efeitos na esfera jurídica da seguradora em processo no qual figura como parte, apenas, o agente de seguros.
Acreditamos no mesmo sentido das posições contidas nos ordenamentos jurídicos da Alemanha, Suíça, Espanha, França, Inglaterra, Estados Unidos e Itália, que também entre nós – desde que o agente de seguros atue no mercado de forma a fazer com que o consumidor reconheça-o como a pessoa legítima para contratar, prestar os prêmios e cobrar as indenizações – não há como evitar a vinculação da seguradora aos atos que o agente praticar em face ao segurado. Afinal “protestatio contro actum no valet”.[119]
Além das diversas teorias aplicáveis à espécie (v.g. responsabilidade civil por fato de terceiro, responsabilidade civil do fornecedor, responsabilidade civil pelo descumprimento do dever de conduta, etc.), afigura-se intuitivo que gozando a seguradora dos benefícios provenientes da atuação do agente, deve suportar as consequências decorrentes de eventuais falhas cometidas, porquanto “ubi emolumentum, ibi onus; ubi commoda, ibi incommode”.
Frise-se: as hipóteses cogitadas a seguir consideram a posição do segurado diante do bloco composto pelo agente de seguros – seguradora, de modo que é nesse sentido que a parte final deste estudo deve ser enfrentada.
Em hipotético processo decorrente de demanda[120] ajuizada pelo segurado contra o agente de seguros (com quem contratou, prestou o prêmio e, inclusive, reclamou a indenização em virtude de determinado risco concretizado), já podemos, com segurança, classificar o segurado como parte, o agente de seguros também como parte, e a seguradora com terceira.
Constata-se que a lide[121] instaurada entre o tomador e aquele que integrou os ritos de formação e execução do contrato (e, faticamente, atuou junto ao segurado desde a fase de pontuação contratual) repousa sobre a relação jurídica de direito substancial também afeta à seguradora.
Neste cenário processual pretende-se discutir o contrato de seguros. O pedido[122] do segurado é formalizado contra de quem não é, propriamente, parte da relação jurídica de direito material para a qual se busca proteção jurisdicional.
Cumpre investigarmos, de antemão, se o agente de seguros tem legitimidade ad causam para apresentar resistência à pretensão processual do segurado que alcança direito da seguradora, independentemente da presença desta na relação jurídica de direito processual.
Para Liebman “è facile intendere che, dato il carattere strumentale, sostitutivo dell’azione, essa non è conferita di regola se non al titolare dell’interesse che essa tende a proteggere, e nei confronti del titolare dell’interesse che con esso si trova in conflitto. Sono questa persona, ad esse sole, che hanno diritto a ottenere una decisione sulla materia di questo conflitto.”[123]
Hodiernamente já não há mais dúvida que a legitimidade ad causam deve ser vista da ótica do direito subjetivo da parte. A análise desta condição da ação depende de uma necessária relação entre a parte e a causa e traduz-se na relevância que o resultado desta virá a ter sobre a esfera de direitos daquela, seja para favorecê-la ou para restringi-la[124].
Lembra De Plácido e Silva que o direito material – também chamado de subjetivo – “é o princípio criador de toda relação concreta de direito”.[125] Trata-se da situação jurídica – consagrada por uma norma – através da qual o titular tem direito a um determinado ato face do destinatário, que, por sua vez, tem o dever de praticar esse ato. O direito subjetivo é consagrado por uma norma de direito abstrata que conduz a uma relação trilateral entre o titular, o destinatário e o objeto do direito.[126]
O direito subjetivo estabelece-se como um vínculo, ligando o objeto a uma pessoa ou a um grupo de pessoas nas relações da vida em sociedade.[127] Lembra Eduardo Espínola Filho que é possível, inclusive, o direito subjetivo pertencer, em iguais condições, ou em quotas-partes desiguais, a várias pessoas. [128]
A relação entre o sujeito e o objeto pauta-se em um elemento de conexão, que é o responsável por sujeitar o objeto ao sujeito. Francesco Invrea, com brilhantismo, ensina que esse vínculo decorre da força de natureza ética em virtude da qual o objeto é atraído e entretido na órbita do titular, para o fim de lhe assegurar a ingerência imediata sobre o bem. Para o referido autor, essa força de atração é causa efetivamente operante no âmbito do direito subjetivo.[129]
Considerando que é próprio do direito material o vínculo que une o sujeito ao objeto é necessário que no mundo fenomênico ocorra determinado acontecimento capaz de resolver a realidade concreta. Ou seja: desenvolver na ação, na vida, o efetivo liame de conexão. Esse acontecimento diz-se fato jurídico, que constitui o elemento indispensável do direito subjetivo, porquanto, somente por meio dele, assume existência concreta uma determinada relação considerada abstrata.[130]
Conforme pondera José Castán Tobeñas “todo derecho subjetivo es la correspondencia de un deber jurídico, y supone una norma que lo delimite y garantice. (…) En definitiva, se da el derecho subjetivo cuando el precepto jurídico, o, en otros términos, la coercibilidad de una norma establecida a favor de alguien, se deja a la iniciativa y libre disposición de él. El derecho subjetivo equivale al poder exclusivo conferido a una persona para actuar en su propia ventaja la tutela jurídica”.[131]
O ordenamento jurídico vigente – no qual insere-se a minuta de resolução em comento – estabelece enunciados imperativos, de cumprimento obrigatório, aplicáveis à situações jurídicas concretas relacionadas aos atos de intermediação no mercado de seguros. Destinam-se a reger a conduta humana nesse setor econômico. Consideramos que o direito subjetivo cuja gênese seja calcada nos preceitos normativos destinados ao agente de seguros insere-o, inexoravelmente, na relação trilateral verificada no plano concreto como consequência direta de sua própria atividade empresarial, pela qual se une o titular do direito (segurado), o destinatário do preceito (agente e seguradora) e o objeto do direito (contrato de seguro).
Como partícipe dos ritos de formação e execução do fato jurídico que enseja o vínculo inerente ao direito subjetivo articulado entre o segurado e a seguradora, podemos identificar que o agente também atrela-se ao contrato de seguro por atos de vínculos próprios.
O agente, conquanto não figurar formalmente no contrato de seguro, não deixa de ter relação com o direito subjetivo do tomador, na medida que além de figurar como destinatário de normas próprias que lhe atribuem deveres jurídicos específicos, atua fática, real e diretamente na conclusão e na execução da avença. E diferentemente do proposto pelo CNSP, às vezes, o faz de forma pessoal.
A atuação do agente na criação do contrato de seguro (evidenciada através do efetivo movimento do plano abstrato para o plano concreto) é aferível na concepção do “ser” e não, propriamente, no do “dever ser”. É a conduta do agente – sua posição fática e não contratual – que lhe sujeita aos ditames legais sobre a espécie e, por conseguinte, ao liame material afeto ao segurado.
Havendo ilegalidade decorrente da atividade do agente, atribui-se ao segurado o poder de provocar a tutela jurisdicional para submetê-lo aos efeitos contidos no plano normativo em razão da existência de deveres jurídicos próprios que, eventualmente, tenham sido descumpridos. Caso fosse totalmente alheio ao direito subjetivo do segurado, nada justificaria fosse a conduta do agente regulada, de forma abstrata, na minuta proposta pelo CNSP para que, no plano concreto, operasse efeitos sensíveis.
Constata-se assim que, nada obstante a proposta no CNSP indicar seja o agente um “mero realizador” de fato jurídico de outrem, insere-o como destinatário de preceitos que regem o rito de formação e execução do contrato (e o faz conjuntamente com a seguradora). Em razão disso, acreditamos seja possível sustentar que o agente é afeto à estrutura do direito subjetivo do segurado juntamente com o ente segurador e, portanto, legítimo para defender em nome próprio, em juízo, as pretensões exercidas pelo segurado que sejam decorrentes ao descumprimento dos preceitos destinados ao agente e que, por consequência, impactam no contrato de seguro.
Com efeito, se o agente é legítimo para fomentar o mercado, identificar proponentes, concluir contratos, perceber prêmios, garantir a manutenção da relação jurídica securitária também deve o ser para defender a legalidade destes atos quando questionada pelo segurado. No plano processual, portanto, agirá o agente em nome próprio, mesmo se tratando de relação de direito material também, e principalmente, afeta à seguradora.
Sabe-se que apenas através do fato jurídico é que a avença securitária passa de uma situação abstrata (i.e. possibilidade jurídica de existir) para uma relação concreta (i.e. efetiva existência). Assim, nada obstante a minuta de resolução do CNSP propor seja o agente mero representante, acreditamos não haja como negar a sua ligação material com o fato jurídico controvertido no plano do processo, já que se apresenta como partícipe imediato do movimento jurídico que culminou no aparecimento da relação securitária positivada de fato.
A nossa proposta não é transmudar a realidade dos fatos. Ao contrário. É tentar deixar o ordenamento jurídico em um plano mais rente à realidade concreta de algumas situações excepcionais de fato. Pretendemos, apenas, alertar quanto aos detalhes da problemática proposta e, assim, antecipar eventuais problemas que a relação jurídica mantida entre o agente e a seguradora pode, concretamente, propagar.
Portanto, conquanto não ser a regra é possível que o agente ligue-se ao direito subjetivo do segurado controvertido no processo. Esta conexão não decorre da titularidade da responsabilidade pelo interesse segurado (objeto maior do seguro), mas do empreendedorismo do agente sobre o fato jurídico que une as partes figurantes no contrato.
Simoni Forni, nesse sentido, aduz em obra de fôlego sobre o tema que realmente o agente de seguro detém legitimidade substancial e processual em nome da seguradora em juízo, vinculando-a quanto ao resultado do processo.[132]
Desse modo, dependendo da situação concretamente evidenciada o agente de seguros deterá legitimidade concorrente com a seguradora para figurar no polo passivo do processo intentado pelo segurado, mormente quando a causa necessária para a provocação da jurisdição decorrer de sua postura falha ou injusta quando do desenvolvimento de suas atividades empresariais.
A nossa posição não deve, com efeito, causar espanto. Basta lembrarmos que até pouco tempo atrás o próprio CNSP dispunha de forma expressa (cf. Resolução 019/78) que o então “agente emissor” (entidade extremamente parecida com aquela prevista na minuta de resolução ora em análise) detinha legitimidade para figurar em processo que discutisse aspectos de sua atuação.
A relação mantida entre o agente e a seguradora pode encampar o fenômeno da substituição processual em razão da unicidade do direito material a ambos afeta. Trata-se, ao nosso ver, de um especial caso de legitimidade extraordinária no qual se evidencia que a seguradora terceira, por ligar-se ao direito controvertido no processo que envolve o segurado e o agente, vincula-se à sorte do quanto restar decidido pelo Estado-juiz.
Arruda Alvim lembra, com precisão, que a problemática da substituição processual situa-se na cisão e na diferenciação da parte processual em relação à material, que se assentarão em duas pessoas, ou, entes distintos – respectivamente, o substituto e o substituído[133]. E como visto, não há de se confundir estas duas realidades, porquanto mesmo não sendo parte exclusiva na relação de direito material, determinadas pessoas podem figurar como parte no plano processual em que se discuta aquela relação substancial.
No instituto da substituição processual a razão para o substituído ser atingido pelos efeitos da sentença e pela coisa julgada advindas do processo no qual o substituto figura como parte reside na própria essência da figura jurídica, pois carece de lógica seja permitido ao substituto atuar em juízo no lugar do substituído e, uma vez prestada a jurisdição, seja este livre para, pessoalmente, rediscutir o conteúdo da decisão jurisdicional em processo futuro[134]. Se assim não fosse, a segurança jurídica pilar base do Estado Democrático de Direito restaria comprometida. [135]
A leitura atenta da minuta proposta pelo CNSP denuncia, nesse sentido, ao nosso ver, que em determinadas circunstâncias o agente de seguros liga-se tão intimamente ao direito material controvertido pelo segurado, que poderá figurar, sozinho, em demanda por este intentada cujo objetivo seja questionar o contrato, mormente quando a gênese da lide decorra de sua própria atividade.
Está em posição de relevo, nessa senda, o artigo 1º, § 5º da minuta do CNSP ao dispor que as contratações efetivadas pelo agente não se inserem na cadeia secundária de distribuição do seguro. O agente encontra-se tão profundamente ligado ao negócio jurídico que explora que a sua atuação é, para o CNSP, considerada tal como se atuação da própria seguradora fosse (i.e. venda direta ao tomador).
Portanto, acreditamos que se para o plano comercial o agente tem ligação imediata com o contrato de seguro a ponto de inserir-se na cadeia primária de distribuição, no plano processual também pode ostentar essa proximidade com o objeto litigioso do processo e, por conseguinte, agir em juízo em nome próprio para defesa de direito próprio que se liga, também, a direito alheio (seguradora).
O teor do artigo 5º da referida proposta de resolução também revela o inegável grau de intimidade que o agente ostenta com o negócio jurídico que está destinado a empreender no mercado securitário. A proposta de normatização em comento ao dispor que o agente é responsável pela integridade e segurança das operações que realiza no mercado de consumo prescreve uma conduta que, se descumprida, opera em favor do segurado a possibilidade de lhe exigir que adote a conduta inobservada, em nítida relação de legitimidade entre o sujeito e o direito controvertido.
Parece-nos patente, assim, que caso o agente atuasse de forma totalmente alheia à esfera jurídica do segurado e não participasse, pessoalmente, da formação do fato jurídico ínsito ao direito subjetivo deste, não haveria de se falar em previsão de sua responsabilidade pelo ajustamento e pela higidez do contrato que articula. Realmente operasse o agente sempre e em todas as circunstâncias de forma impessoal e, apenas, em nome da seguradora, bastaria a responsabilidade desta fosse regulada, pois todo e qualquer ato praticado pelo agente seria, necessariamente, considerado praticado pela seguradora (aquele que age em nome exclusivo de terceiro não se insere na previsão abstrata da norma, mas faz com que o outro se insira).
Ademais, conforme rege o artigo 6º, I, da minuta de resolução telada, o agente também tem o dever de garantir a promoção adequada dos produtos de seguro no mercado consumidor. Caso viole este direito, ao segurado – inegavelmente – cabe a pretensão de exigir através da provocação do Estado-juiz que o agente pratique ou compense o fato realizado em desconformidade com o comando normativo. O agente liga-se à esfera jurídica do segurado.
Consideramos crível sustentar que a possibilidade do segurado exigir do agente a prática do ato que a norma prescreve como devido denuncia a ligação entre o titular do direito e o destinatário da conduta.
Verifica-se, por conseguinte, conforme a nossa proposta, que o agente é destinatário de vários preceitos contidos na minuta em comento (assim como na própria lei, sempre inafastável). Fosse o agente totalmente estranho à relação jurídica material de titularidade do segurado, inexistiria as previsões em comento, uma vez que o sujeito abstratamente previsto na norma deve, em regra, ser aquele que, no mundo fenomênico, seja o praticante dos atos concretos que se liguem à hipótese normativa abstrata.
Ademais, a minuta do CNSP propõe seja o agente fiscalizado pela SUSEP. Ora, ao nosso ver, qual seria o motivo dessa disposição caso o agente desempenhasse função de forma verdadeiramente impessoal? Como é plausível, a fiscalização da SUSEP justifica-se sobre aqueles que atuam no negócio jurídico securitário e parece-nos que se o agente figurasse quase que como um “fantasma” – pois sempre nas vestes da seguradora (rectius: em seu nome absoluto) – a fiscalização da SUSEP justificar-se-ia somente sobre o ente segurador, pois seria este o promotor dos atos por aquele exercidos.
Como visto, reconhece-se que o agente pratica atos que podem lhe colocar, ao lado da companhia, em posição muito próxima ao direito material articulado com o segurado, o que lhe torna legítimo, por consequência, para responder pelas implicações decorrentes de sua postura evidenciada no caso concreto.
Ocorre que em virtude da unicidade do direito material eventuais consequências impostas ao agente poderão propagar efeitos sobre a esfera jurídica da seguradora, fato para o qual deve o operador do direito securitário, cautelosamente, atentar-se.
Para ilustrarmos o ante exposto, imaginemos – à guisa de exemplo – que um contrato de seguro seja concluído diretamente com o agente que, além de celebrar a avença e emitir a apólice ao segurado, passa a receber deste todos os prêmios devidos. Todavia, ao invés de repassar os recursos angariados à seguradora, o agente os retém indevidamente.
Ocorre que, em dado momento, o risco temido concretiza-se e, por consequência, o segurado avisa o sinistro ao agente (com quem se relaciona desde a fase de pontuação), para gozar de suas prerrogativas contratuais. Contudo, em virtude do inadimplemento evidenciado na esfera jurídica da companhia, esta nega a prestação indenizatória sob o argumento de perda de direitos.
O agente, assim, informa o segurado quanto a impossibilidade de prestar-lhe a compensação clamada. Na conjuntura hipotética em referência restará configurada uma situação litigiosa que, com palpável razão de possibilidade, desaguará perante o Poder Judiciário para que seja solucionada.
Temos, de um lado, o segurado que contratou o seguro com o agente e prestou-lhe, correta e tempestivamente, todos os prêmios. De outro lado temos a seguradora de quem não há de se exigir, a priori, a prestação contratual quando lhe foi suprimida a contraprestação (indenização securitária vs. prêmio). Como ente determinante para a configuração do impasse está o agente.
Em demanda ajuizada pelo segurado contra aquele com quem, faticamente, relacionou-se desde a celebração do seguro – o agente – aquele aduz pedido para: i) seja cumprido, em termos, o contrato de seguro firmado, porquanto inexistir causa que configure legítima perda de direitos; e ii) subsidiariamente, seja o agente condenado a indenizar o segurado de modo a lhe restituir ao status quo ante.
Por opção o segurado não exerce o direito de ação contra a seguradora, já que sua relação foi articulada e faticamente desenvolvida, imediatamente, com o agente.
No exemplo, em que o segurado demandou contra o agente, que, como já visto, ostenta, para nós, legitimidade para figurar na relação jurídica processual, parece-nos configurada hipótese de substituição processual: a seguradora será substituída pelo agente, uma vez que se liga, inexoravelmente, ao direito controvertido. A lide anterior ao processo, inclusive, originou-se de ato do agente.
Após transcorrerem as fases postulatória, saneadora e instrutória do feito e não tendo a seguradora ingressado no processo através de alguma das modalidades de intervenção de terceiros, o juiz julga procedente a demanda e determina seja cumprido o contrato de seguro, por reconhecer inexistente causa de perda de direito.
Contra essa decisão não há recurso.
Forma-se, após o trânsito em julgado, coisa julgada material.
Em fase de execução, o agente não presta a indenização determinada e, insolvente, mesmo através dos atos típicos de agressão patrimonial o segurado não goza do quanto lhe foi reconhecido como devido. Redireciona-se, assim, a execução para a própria seguradora, pois, afinal, ostenta lídima relação material com o objeto litigioso do processo. Esta é intimada a cumprir o julgado e, espantada, procura questionar a sorte do julgado.
Na situação narrada, presos às nossas próprias premissas, temos que admitir que não será lícito à seguradora rediscutir a situação jurídica. Tanto a sentença quanto a coisa julgada formadas no processo triangularizado entre o segurado, o agente e o Estado-juiz espraiam efeitos imediatos contra a seguradora em virtude da unicidade da relação substancial que une todos os figurantes da cadeira fática narrada.
Conquanto tenha a seguradora ostentado qualidade jurídica de terceira até o redirecionamento da execução, deverá cumprir o determinado pelo Estado-juiz, afinal não há como supor inexistir a perda de direito à indenização do segurado em face do agente e, ao mesmo tempo, na mesma situação, existir perda desse direito em face da seguradora. A estrutura monolítica da relação material impede tal possibilidade. A realidade é única.
Aplica-se, aqui, com inegável clareza, o que Vivante classificou com a consequência inseparável do ofício que a seguradora exerce. Referido autor, com propriedade, sustenta que “la compagnia è però responsabile delle colpe che essi commettono nell’esercizio delle loro incombenze, come lo è ogni committente per le colpe del commesso. Le clausole de ‘suoi statuti e delle sue polizze che respingono quella responsabilità non valgono di fronte al pubblico. La Compagnia non può in pari tempo valersi dell’opera loro, additarli col proprio nome e col proprio credito alla fiducia del pubblico; profittare degli affari che le procacciano e respingere le conseguenze della loro attività quando le riesce dannosa. Questa responsabilità è una conseguenza inseparabile dall’ufficio che esercitano; è il lato passivo della loro attività; non possono essere gli agenti per l’affare compiuto a dovere e non agenti per quello compiuto slealmente; la contraddizione non lo consente”.[136]
A violação, pelo agente, do seu dever de conduta (“Verhaltenspflichten”[137]) na condução do contrato propaga efeitos em sua esfera jurídica, assim como na do segurador, uma vez que da ótica do segurado a relação interna mantida entre essas duas entidades não opera consequência alguma.
Planeemos, para melhor fomentar o debate, outra situação. Quando dos atos preliminares à conclusão do contrato de seguro o tomador presta declarações ao agente que, por sua conta, modifica-as na proposta submetida à seguradora objetivando a rápida conclusão do negócio.
Evidencia-se que o ato do agente propagou, no âmbito da relação jurídica contratual, mácula à base objetiva do negócio jurídico. Isto é: no contrato aleatório a base do negócio jurídico impõe a equivalência de riscos, que, com as informações relativas ao segurado mascaradas na proposta restou abalada.[138]
Na hipótese, para a seguradora o seu risco está determinado. Faticamente, contudo, o risco é maior, pois o fato agravante foi omitido pelo agente.
Em certa oportunidade o segurado atenta-se à redação da proposta e descobre que informações relevantes foram omitidas pelo agente. Caracterizada situação de interesse legítimo, o segurado demanda o agente para que insira no bojo do contrato as informações que quando da fase de pontuação lhe foram devidamente comunicadas.
A demanda é julgada procedente e através de sentença definitiva de mérito reconhece-se que os fatos agravantes originariamente informados pelo segurado ao agente consideram-se inseridos no contrato. A seguradora, terceira em relação ao processo, jamais foi comunicada acerca do processo.
Após a cristalização do comando jurisdicional contido na sentença pela formação da coisa julgada nada há de fazer a seguradora, uma vez que em razão da responsabilidade do agente consideraram-se insertas no contrato de seguro as circunstâncias de fatos que, inicialmente, foram omitidas. Sem prejuízo de eventuais pretensões regressivas, a seguradora não poderá questionar se insertas ou não as circunstâncias tratadas na relação material que mantém com o segurado.
Evidencia-se, portanto, mais uma hipótese de consequência direta a terceiro decorrente da estrutura monolítica do direito controvertido objeto da prestação jurisdicional em processo no qual figuraram como parte o segurado e o agente de seguros.
Cremos que outras hipóteses podem apresentar as mesmas características. Todavia, consideramos exaurido o presente ensaio, por termos atingido o nosso objetivo principal: alertar a comunidade jurídica para situações que podem propagar sérias consequências práticas no mercado securitário.
Para finalizar, sinalizamos que este instigante tema não pode ser melhor explorado neste momento, mas diante da tendência ilustrada na minuta do CNSP brevemente analisada e em diante da seriedade do assunto é tempo do operador do direito securitário melhor maturar os conceitos ligados à matéria, para contribuir cada vez mais com a evolução deste rico, vultoso e multifacetado ramo do Direito.
9. Referências bibliográficas