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A ameaça à sustentabilidade dos planos de saúde corporativos: O desafio de equilibrar a equação “oferta do benefício, viabilidade financeiro-atuarial e demandas judiciais”

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A ameaça à sustentabilidade dos planos de saúde corporativos: O desafio de equilibrar a equação “oferta do benefício, viabilidade financeiro-atuarial e demandas judiciais”

Marco Pontes RSMPor Marco Pontes

Plano de saúde é um tema polêmico que não sairá da agenda dos gestores das organizações tão cedo. Afeta a ANS, os empresários do setor, as empresas que patrocinam planos de assistência aos empregados, os gestores das áreas de controladoria, finanças e recursos humanos, os sindicatos, o Poder Judiciário e, finalmente, o consumidor, cidadão comum, lado mais fraco dessa intrincada equação. A raiz do problema surgiu no governo FHC, quando o então ministro Serra capitaneou a Lei para o setor. Sem dúvida, havia necessidade de regulamentação, face as anomalias que existiam. Todavia, a Lei n° 9656/98, que completou seus 20 anos recentemente, parece requerer uma revisão a fim de que possa atender aos novos anseios da sociedade. Caso contrário, corremos o risco de condenar uma legião de idosos ao abandono. Quando se observa uma elevação nos questionamentos judiciais e a criação de tensões entre as partes que envolvem o contrato, é chegado o momento de analisar profundamente as modificações que são necessárias de se implementar, de modo que seja possível retornar a um ambiente estável que privilegie a segurança jurídica do contrato sob a perspectiva de relação contratante x contratado.

Por outro lado, há a relação conflituosa entre a ANS e o Poder Judiciário. Recentemente, testemunhamos mais um capítulo dessa relação quando a Agência publicou a Resolução Normativa n° 433 que definia novas regras para cobrança de coparticipação e franquia em plano de saúde e a então presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, suspendeu o referido ato normativo.A tentativa de se alterar a forma de financiamento e compartilhamento dos custos com o usuário pode até se apresentar como legítima. Contudo, parece que o momento não foi o mais adequado, considerando todo o contexto político, social e econômico pelo qual estamos passando. Como explicar para o cidadão que, a partir de agora, ele terá de arcar com mais gastos com o plano de saúde (que já não são baixos) quando necessitar de atendimento médico? Não é tarefa fácil.

Com relação aos planos individuais, o que se vê é uma oferta extremamente escassa, que é explicada pela forma como o Estado determinou o modelo de operação e controle dos preços. Novamente, o marco regulatório clama por mudanças, uma vez que, no capitalismo do século XXI, não há espaço para tamanha interferência. Um exemplo disso foi a determinação da ANS de indexar o ajuste dos planos de assistência médica individuais, derivado das bases de dados de eventos indenizáveis que a ANS recebe das Operadoras. A iniciativa causou efeito contrário. As operadoras abortaram a comercialização dos planos individuais. Deixou de ser lucrativo. Simples assim. No capitalismo, não há espaço para desperdício. A inflação é apenas um dos fatores que contam na estrutura de formação de preços, dentre os quais também se destacam a implementação de novas tecnologias, a ampliação do rol de procedimentos por parte da ANS, o aumento de ganhos dos intermediários, dos hospitais, dos laboratórios mais qualificados, objeto de desejo de todos e à fraude.

O que determina o custo final ao consumidor, é o comportamento da sinistralidade, após toda a cadeia de valores que mencionei acima ser remunerada. A operadora não é a vilã desse estado de coisas. Ela apenas distribui o custo entre os consumidores, depois de pagar seus custos e acrescentar o lucro que julga ideal para manter a operação. Portanto, como podemos observar, a relação que rege os aumentos dentro do princípio da boa técnica atuarial é a sinistralidade ou a utilização do plano. O Estado não poderia ou deveria impor o ônus à iniciativa privada que não tem condições de absorver uma demanda cada vez maior. O Estado tem o dever de cumprir sua parte. Tal responsabilidade está contida na Carta Magna como sendo sua. É dever!      

Os maiores responsáveis por esse estado de coisas não são a ANS, o Judiciário e muito menos as empresas ou os empregados ativos e inativos, mas os membros dos Poderes Executivo e Legislativo que arquitetaram um projeto contrariando o bom senso e a racionalidade financeiro-atuarial. Sobreviveram os planos coletivos. Entretanto, a partir da adoção do IFRS no Brasil, as empresas se viram com um dilema: reconhecer os compromissos com o plano de assistência médica à luz dos artigos. 30 e 31 da Lei n° 9.656/98.

Uma das soluções que as empresas vislumbraram para fugir do impacto no Resultado foi assumir o compromisso integral do pagamento das parcelas do plano. Com efeito, a demanda foi parar nos tribunais até que a Justiça definisse se a coparticipação era contribuição ou não. Recentemente, o STJ definiu a questão, e corretamente definiu o óbvio. A coparticipação não é contribuição.

                Mas, afinal, por que as empresas passaram a assumir o custo integral do plano de assistência médica, e qual é a origem do compromisso da empresa com o plano de assistência médica? A resposta se encontra nos artigos. 30 e 31 da Lei n° 9.656/1998, na forma como regulamentados pela Resolução Normativa ANS n° 279/2011.

Ambos os dispositivos, no caso de rescisão do contrato sem justa causa, asseguram ao empregado – e a seus dependentes – o direito de manter sua condição de beneficiário do plano, nos mesmos termos de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral. Essa garantia gera uma obrigação da empresa em relação ao plano de assistência médica, que deve ser apurada e controlada para fins de atendimento às regras do IFRS que passaram a ser as regras locais de contabilização. Nesse contexto, é importante destacar que, independentemente de o plano ter sido modelado na categoria de pré-pagamento, pós-pagamento ou decorrente de outras combinações, a única condição para que a empresa fique exposta a esse risco financeiro-atuarial é o fato de o empregado, na fase laborativa, ter participado no custo da contraprestação. Será? Penso que há controvérsias. Voltaremos a essa questão mais adiante.

Outra solução comumente utilizada para reduzir o passivo com o plano de assistência médica foi a utilização da tabela de faixa etária, para a qual se alegava que os empregados das faixas mais elevadas estavam pagando por seu risco correspondente. Sim, de fato. A precificação passou a ser feita a partir do risco das faixas etárias mais elevadas para os mais jovens.

Com efeito, o art. 30 da Lei n° 9.656/98 se aplica aos ex-empregados, demitidos sem justa causa ou aposentados, que tenham contribuído com o plano de saúde, e lhes assegura o direito de permanência no plano pelo período mínimo de 6 meses até um máximo de 24 meses. Já o art. 31 do mesmo diploma legal garante aos ex-empregados demitidos ou aposentados que tenham contribuído pelo prazo mínimo de 10 anos, a possibilidade de manutenção do plano de saúde por prazo vitalício.

Adicionalmente, caso o indivíduo venha a se aposentar na empresa, tendo contribuído por um prazo inferior a 10 anos, lhe é assegurada a manutenção no plano à razão de 1 ano para cada ano de contribuição.

As garantias legais são estendidas ao grupo familiar dos titulares nas mesmas condições que o plano era oferecido ao titular quando atuava pela empresa. Em outras palavras, não pode haver perdas de garantias ou downgrade do plano. Assim, o único condicionante à manutenção dos ex-empregados – demitidos sem justa causa ou aposentados – na apólice da empresa seria, em tese, a assunção do pagamento integral do plano. Entretanto, em contraste ao entendimento de que a assunção do custeio integral do plano de assistência médica elimina o passivo, vem aumentando o número de atuários que entendem que o fato gerador do passivo não é o pagamento integral ao plano feito pela empresa, mas o benefício econômico ao qual a empresa fez jus e usou, enquanto ele foi empregado. Segundo essa lógica, a parcela que representou esse benefício econômico pode ser entendida como uma contribuição propriamente dita do empregado. Essa discussão deverá ser mais um elemento em favor dos empregados que são demitidos para justificar sua manutenção no plano de assistência médica, com mais peso do que a questão da coparticipação. Como podemos observar a judicialização da questão não foi encerrada.  

Visto dessa forma, por que as empresas brasileiras permanecem expostas ao passivo de longo prazo? Considerando o desenho atual do mercado de saúde brasileiro, em que são escassas as ofertas de planos individuais, a opção do ex-empregado por permanecer na apólice é uma realidade. Além de não contar com boas opções no mercado, ele tem a chance de continuar se valendo dos benefícios de estar em uma apólice coletiva.

A origem do potencial compromisso da empresa é gerada pelo fato de o ex-empregado continuar utilizando o plano de assistência médica. Mesmo arcando com o pagamento integral, o fato de usar o plano, por si só, afeta a sinistralidade. Como o reajuste dos planos coletivos de assistência médica levam em consideração a sinistralidade, a empresa acaba pagando um subsídio cruzado, gerado pela utilização daqueles que dela já se desligaram mas que continuam gozando do benefício, bem como daqueles que ainda estão no plano e que, eventualmente, conquistarão o direito de, ao serem demitidos sem justa causa ou aposentados, seguir constando da apólice coletiva.

Já que não é possível aplicar o reajuste do plano exclusivamente para a população de ex-empregados, os desequilíbrios de fluxos financeiros – i.e., as diferenças entre as receitas e despesas médicas do grupo de ex-empregados – ocorrem e acabam sendo financiados tanto pelos empregados em atividade laboral quanto pela própria empresa.

A égide contábil que nos fornece o direcionamento para a mensuração, para o reconhecimento e para a divulgação de benefícios aos empregados é o Pronunciamento Contábil CPC-33(R1), referendado pela Deliberação CVM n° 695 e alinhado às práticas internacionais de contabilidade – mais especificamente ao IAS-19(R1). Contudo, o universo de empresas antes restritos apenas às companhias de capital aberto foi estendido às empresas abrangidas pela Lei n° 11.638/07 a partir de 2015, quando a Receita Federal adotou as IFRS.

Logo de início, o Pronunciamento em questão estabelece que:

[o] objetivo deste Pronunciamento é estabelecer a contabilização e a divulgação dos benefícios concedidos aos empregados. Para tanto, este Pronunciamento requer que a entidade reconheça:
(a) um passivo quando o empregado prestou o serviço em troca de benefícios a serem pagos no futuro; e
(b) uma despesa quando a entidade se utiliza do benefício econômico proveniente do serviço recebido do empregado em troca de benefícios a esse empregado.”

Isso significa que o risco de subsídio cruzado é categorizado perante o CPC-33(R1) como um benefício pós-emprego na forma de um benefício definido, uma vez que os fluxos futuros de despesas não serão fixos e dependerão do desenvolvimento futuro e de eventos probabilísticos financeiros e demográficos.

A contabilização de planos de benefício definido envolve a utilização de técnica atuarial. A norma exige o emprego do método de crédito unitário projetado a fim de estimar, de maneira confiável, o custo final, para a entidade, do benefício obtido pelos empregados em troca dos serviços prestados nos períodos anteriores e corrente. Isso exige que a companhia determine quanto do benefício deve ser atribuível aos períodos anteriores e corrente e que faça estimativas (premissas atuariais) acerca das variáveis demográficas – e.g., rotatividade e mortalidade de empregados – e financeiras – e.g., futuros aumentos nos salários e nos custos médicos – que afetarão o seu custo.

Portanto, devemos lembrar que os planos de assistência médica, nos moldes destacados na introdução deste artigo, para fins de atendimento às regras do CPC 33(R1), apresentam-se como benefícios garantidos, com período de aquisição anterior ao período de usufruto, e que, nesse diapasão, seu pagamento depende da ocorrência de eventos probabilísticos e de premissas biométricas e financeiras durante o período de aquisição (regime de competência) e de usufruto (direito alcançado).

Por essa razão, o estudo atuarial deve abranger não somente a população de ex-empregados e aposentados optantes pela manutenção do plano corporativo, mas também a população de atuais ativos, uma vez que estes serão os futuros ex-empregados e/ou aposentados. A aplicação de qualquer restrição quanto ao contingente de expostos ao risco não encontra fundamento nos princípios contábeis estabelecidos pelo CPC-33(R1), tampouco na boa prática atuarial, a qual abarca metodologias e ferramentas para realizar as estimativas desses compromissos de longo prazo, associados ao risco de subsídio cruzado dos planos de assistência médica de forma confiável, de modo a aderir ao perfil da base de dados dos participantes ou segurados no plano de assistência médica, respeitando, assim, os postulados supramencionados.

Por outro lado, desde a adoção do Pronunciamento Técnico CPC 33 R1, muitas empresas assumiram o custeio integral, como forma de evitar o aparecimento do compromisso nas Demonstrações Financeiras e de ter o Resultado corroído. Por outro lado, na qualidade de consultor, em muitas ocasiões concluímos que os valores dos compromissos apurados por seus consultores superestimaram, de forma significativa, o valor do passivo atuarial por diversas razões. Dentre elas, destacamos: (i) o conservadorismo excessivo; (ii) o uso indevido de metodologias; e (iii) hipóteses não alinhadas com a realidade da empresa.

Por essa razão, temos convicção de que, apesar de os custos médicos tenderem à elevação nos próximos anos por fatores diversos, o passivo atuarial não terá o mesmo comportamento. Diante desse fato, concluímos que, na maioria das vezes, é melhor para a empresa manter o empregado participando do custeio direto do que assumir o pagamento integral do custeio, especialmente no atual cenário econômico.

Os principais argumentos que consideramos para concluir dessa forma são: o fato da judicialização ser uma realidade e a economia que a participação do empregado no custeio traz para empresa, liberando-a para fazer investimento, sem que o valor do Passivo afete o Resultado da companhia de forma tão severa.

O aumento da sinistralidade precisa ser resolvido por meio de uma gestão eficiente do plano de saúde. Não existe milagre. Caso contrário os custos permanecerão em uma escalada exponencial. Mudar de operadora a cada renegociação não é uma solução inteligente. Sob essa perspectiva surgem como desafios: a necessidade de gerir o programa com base em informações confiáveis para uma melhor tomada de decisão, estimular às mudanças de comportamento dos usuários (processo de educação e conscientização), incentivar os modelos de assistência médica voltados para promoção de saúde, prevenção de doenças e aspectos associados a qualidade de vida, isto é: tratar o empregado, antes que ele se transforme em um paciente para conter o gatilho da sinistralidade.  

Engajar o empregado a utilizar o plano de forma racional, incentivando-o a ter responsabilidade e cuidado com a própria saúde, investir em programas integrados e direcionados para acompanhamento do risco e custo relacionado à saúde, tais como: atividade física, medicamentos, nutrição, etecetera; caso contrário, os preços continuarão aumentando de tal forma que as empresas optarão por não mais oferecer esse benefício aos empregados, o que seria a condenação explícita de uma legião de trabalhadores ao atendimento precário do SUS, tendo como avalista dessa situação o Estado, isto é, aquele que deveria ser o principal agente do bem-estar da sociedade. Até quando as empresas terão condições de suportar os custos?    

Marco Pontes, é atuário e sócio da linha de Serviços Atuariais da RSM Brasil.

E-mail: marco.pontes@rsmbrasil.com.br

T. (11) 2117-1300 ou (11) 96474-6777