RESOLUÇÃO CFM Nº 2.427, DE 08.04.2025
Revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero e dá outras providências.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, considerando as deliberações tomadas na XII Sessão Plenária Extraordinária, realizada em 8 de abril de 2025, resolve:
Art. 1º Consideram-se as seguintes definições:
I - pessoa transgênero: indivíduo cuja identidade de gênero não corresponde ao sexo de nascimento, não implicando necessariamente intervenção médica;
II - incongruência de gênero: discordância acentuada e persistente entre o gênero vivenciado de um indivíduo e o sexo atribuído, sem necessariamente implicar sofrimento;
III - disforia de gênero: grave desconforto ou sofrimento que algumas pessoas experienciam devido a sua incongruência de gênero. O diagnóstico de disforia de gênero deverá seguir os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR) ou o que vier a atualizá-lo.
Art. 2º O atendimento integral à saúde da pessoa com incongruência ou disforia de gênero deve contemplar as suas necessidades, garantindo o acesso a cuidados básicos, especializados e de urgência e emergência com acolhimento e escuta qualificada, garantindo ambiente de confiança e confidencialidade.
§ 1º As informações devem ser claras, objetivas e atualizadas sobre as possibilidades terapêuticas, ressaltando os riscos, as limitações e os potenciais efeitos adversos dos tratamentos propostos.
§ 2º Deve haver encaminhamento e trabalho conjunto com equipes multidisciplinares dentro da área médica.
§ 3º Garantia de que a tomada de decisão terapêutica seja pautada nas melhores evidências disponíveis, utilizando protocolos reconhecidos e aprovados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), bem como dentro das normas éticas vigentes.
Art. 3º Sobre a segurança do ato médico e do paciente, faz-se necessário:
I - antes de cada etapa terapêutica, o médico responsável pela prescrição e/ou procedimento deve informar o seu paciente, sempre em linguagem compreensível, sobre os benefícios, os riscos, as possíveis complicações e a reversibilidade, ou não, das intervenções que estão propostas a serem realizadas;
II - no caso do paciente menor de idade, as informações devem ser compreendidas tanto pelo paciente como por seus representantes legais;
III - essas informações devem constar no termo de consentimento livre e esclarecido, que deve ser assinado pelo paciente, se maior de 18 (dezoito) anos, ou pelos representantes legais, no caso do paciente menor de 18 (dezoito) anos;
IV - os pacientes menores de idade necessitarão assinar o termo de assentimento livre e esclarecido, que deverá estar adaptado para a sua compreensão;
V - toda e qualquer documentação (termos de assentimento/consentimento, atestados, evoluções clínicas, relatórios, pareceres e laudos) deve ser mantida em prontuário, garantindo segurança, sigilo e rastreabilidade das informações.
Art. 4º Antes de quaisquer intervenções hormonais e cirúrgicas para a pessoa com incongruência ou disforia de gênero, deve haver:
I - avaliação criteriosa e individualizada, respeitando as particularidades de cada paciente, inclusive faixas etárias, estado de saúde física e mental e condições sociais;
II - seguimento de protocolos aprovados e reconhecidos, considerando critérios de elegibilidade e preparo prévio às intervenções, sempre prezando pela segurança do paciente;
III - realização dos procedimentos cirúrgicos em ambientes autorizados e com infraestrutura adequada;
IV - acompanhamento médico contínuo - antes, durante e após cada procedimento clínico ou cirúrgico - fornecendo suporte para reabilitação, prevenção de complicações e monitoramento da saúde a curto, médio e longo prazos.
Art. 5º Fica vedado ao médico prescrever bloqueadores hormonais para tratamento de incongruência de gênero ou disforia de gênero em crianças e adolescentes.
Parágrafo único. Esta vedação não se aplica a situações clínicas reconhecidas pela literatura médica, como puberdade precoce ou outras doenças endócrinas, nas quais o uso de bloqueadores hormonais é cientificamente indicado.
Art. 6º Sobre a terapia hormonal cruzada:
§1º Definida como a administração de hormônios sexuais para induzir características secundárias condizentes com a identidade de gênero do paciente.
§2º Esta terapia está vedada antes dos 18 (dezoito) anos de idade.
§3º O paciente que optar por terapia hormonal cruzada deverá:
I - iniciar avaliação médica, com ênfase em acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico por, no mínimo, 1 (um) ano antes do início da terapia hormonal, conforme PTS;
II - obter avaliação cardiovascular e metabólica com parecer médico favorável antes do início do tratamento;
III - não apresentar doença psiquiátrica grave, além da disforia, ou qualquer outra doença que contraindique a terapia hormonal cruzada.
Art. 7º No âmbito da atenção médica especializada a pessoa transgênero para cirurgias de redesignação de gênero, fica determinado que:
§ 1º Os procedimentos cirúrgicos reconhecidos para afirmação de gênero encontram-se elencados no Anexo III desta Resolução.
§ 2º Os procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero previstos nesta Resolução somente poderão ser realizados após acompanhamento prévio de, no mínimo, 1 (um) ano por equipe médica, conforme PTS.
§ 3º Ficam vedados os procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero nas seguintes situações:
I - em pessoas diagnosticadas com transtornos mentais que contraindiquem tais intervenções;
II - antes dos 18 (dezoito) anos de idade;
III - antes dos 21 (vinte e um) anos de idade quando as cirurgias implicarem potencial efeito esterilizador, em conformidade com a Lei nº 14.443, de 2 de setembro de 2022.
§ 4º Os serviços que realizam esses procedimentos cirúrgicos deverão, obrigatoriamente, cadastrar os pacientes e assegurar a devida disponibilização dessas informações aos Conselhos Regionais de Medicina da jurisdição em que estiverem sediados.
Art. 8º Em casos de arrependimento ou destransição, o médico deve oferecer acolhimento e suporte, avaliando o impacto físico e mental e, quando necessário, redirecionando o paciente a especialistas adequados.
Art. 9º Indivíduos transgêneros que conservem órgãos correspondentes ao sexo biológico devem buscar atendimento preventivo ou terapêutico junto a especialista adequado.
§ 1º Homens transgêneros que mantenham órgãos biológicos femininos devem ser acompanhados por ginecologista.
§ 2º Mulheres transgêneros com órgãos biológicos masculinos devem ser acompanhadas por urologista.
Art. 10. As disposições desta Resolução não se aplicam a pessoas que já estejam em uso de terapia hormonal ou bloqueadores da puberdade.
Art. 11. Esta Resolução revoga a Resolução CFM nº 2.265/2019, publicada no Diário Oficial da União de 9 de janeiro de 2020, seção I, p.96.
Art. 12. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
JOSÉ HIRAN DA SILVA GALLO
Presidente do Conselho
ALEXANDRE DE MENEZES RODRIGUES
Secretário-Geral do Conselho
(DOU de 16.04.2025 - págs. 174 e 175 - Seção 1)
ANEXO I HORMONIOTERAPIA
Adulto (a partir de 18 anos)
A hormonioterapia cruzada no adulto deverá ser prescrita por médico endocrinologista, ginecologista ou urologista, todos com conhecimento científico específico, e tem por finalidade induzir características sexuais compatíveis com a identidade de gênero. Assim, objetiva-se:
a) reduzir os níveis hormonais endógenos do sexo biológico, induzindo caracteres sexuais secundários compatíveis com a identidade de gênero;
b) estabelecer hormonioterapia adequada que permita níveis hormonais fisiológicos compatíveis com a identidade de gênero.
As doses dos hormônios sexuais a serem adotadas devem seguir os princípios da terapia de reposição hormonal para indivíduos hipogonádicos, de acordo com o estágio puberal. Não são necessárias doses elevadas de hormônios sexuais para atingir os objetivos descritos da hormonioterapia cruzada e os efeitos desejados, além de haver o risco de efeitos colaterais. Os hormônios utilizados são:
a) testosterona, para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários masculinos nos homens transexuais;
b) estrogênio, para induzir o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários femininos nas mulheres transexuais e travestis;
c) antiandrogênio, que pode ser utilizado para atenuar o crescimento dos pelos corporais e as ereções espontâneas até a realização da orquiectomia.
O uso de estrógenos ou testosterona deve ser mantido ao longo da vida do indivíduo, monitorando-se os fatores de risco. A pessoa com incongruência de gênero ou transgênero deve demonstrar esclarecimento e compreensão dos efeitos esperados e colaterais da hormonioterapia cruzada, assim como capacidade de realizá-la de forma responsável.
ANEXO II ACOMPANHAMENTO PSIQUIÁTRICO
Criança pré-púbere (estágio puberal Tanner I)
As manifestações de disforia de gênero podem variar no decorrer das diversas fases da infância e suas diferentes faixas etárias. Em casos de dúvida diagnóstica e ausência de morbidades, nenhuma intervenção deve ser instituída, mantendo-se a devida observação.
O envolvimento dos pais, familiares ou responsável legal é obrigatório no acompanhamento de crianças, respeitando os preceitos éticos e específicos de cada área profissional envolvida.
O psiquiatra inserido na equipe multiprofissional e interdisciplinar responsável por acompanhar a criança deve se ater a observar, orientar, esclarecer e formular diagnóstico e psicoterapia - quando indicada -, assegurando o desenvolvimento da criança com diagnóstico de incongruência de gênero. Tais atitudes devem envolver não só a criança, mas também a família, cuidadores, responsável legal, escolas e outras possíveis instituições que tenham obrigação legal pelo cuidado, educação, proteção e acolhimento da criança.
Criança púbere ou adolescente (a partir do estágio puberal Tanner II)
Compreender e respeitar o que crianças e adolescentes manifestam a respeito de como se identificam é dever médico e aspecto essencial do cuidado à saúde. O acompanhamento psiquiátrico dos adolescentes será realizado por profissional capacitado e integrante da equipe multiprofissional.
Cabe ao médico psiquiatra, integrante da equipe de atendimento multiprofissional e interdisciplinar, elaborar laudos, relatórios ou atestados que se façam necessários.
Adulto (a partir de 18 anos)
A vulnerabilidade psíquica e social do indivíduo com incongruência de gênero ou transgênero é, em geral, intensa. São elevados os índices de morbidade nessa população, como transtornos depressivos graves, abuso/dependência de álcool e outras substâncias químicas, transtornos de personalidade, transtornos de estresse pós-traumático e transtornos de ansiedade.
O acompanhamento psiquiátrico será realizado por médico psiquiatra integrante de equipe multiprofissional. Caberá a ele formular diagnóstico, identificar morbidades, realizar diagnósticos diferenciais, prescrever medicamentos e indicar e executar psicoterapia, se necessário. Após avaliação psiquiátrica, serão contraindicadas a hormonioterapia e/ou cirurgia nas seguintes condições: transtornos psicóticos graves, transtornos de personalidade graves, retardo mental e transtornos globais do desenvolvimento graves.
Cabe ao médico psiquiatra, com a equipe multiprofissional e interdisciplinar, avaliar periódica e sequencialmente a evolução do indivíduo, mesmo após o encaminhamento para cirurgia de afirmação de gênero e sua realização, pelo período mínimo de 1 (um) ano.
ANEXO III PROTOCOLOS CIRÚRGICOS
A hormonioterapia é obrigatoriamente utilizada sob supervisão endocrinológica, ginecológica ou urológica no período pré-operatório, devendo ser avaliado se as transformações corporais atingiram o estágio adequado para indicar os procedimentos cirúrgicos.
Os procedimentos cirúrgicos para a afirmação de gênero são os abaixo descritos.
Procedimentos de afirmação de gênero do masculino para o feminino
Neovulvovaginoplastia
A neovulvovaginoplastia primária compreende: orquiectomia bilateral, penectomia, neovaginoplastia e neovulvoplastia. A neovaginoplastia com segmento intestinal só deverá ser realizada quando ocorrer falha ou impossibilidade do procedimento primário. Deve ser avaliada a condição da pele e prepúcio (balanopostites/fimose) com o objetivo de planejar a técnica cirúrgica de neovaginoplastia e a adequada disponibilidade de tecidos saudáveis. Além disso, deve ser realizada depilação definitiva da pele da haste peniana.
Mamoplastia de aumento
A mamoplastia de aumento poderá ser realizada em mulheres transexuais e travestis.
Procedimentos de afirmação de gênero do feminino para o masculino
Os procedimentos de afirmação de gênero do feminino para o masculino são:
a) mamoplastia bilateral;
b) mastectomia bilateral;
c) cirurgias pélvicas: histerectomia e ooforectomia bilateral;
d) cirurgias genitais:
- neovaginoplastia: que pode ser realizada em conjunto com a histerectomia e ooforectomia bilateral ou em momentos cirúrgicos distintos;
- faloplastias:
metoidoplastia, que compreende retificação e alongamento do clitóris após estímulo hormonal, considerada o procedimento de eleição para faloplastia;
neofaloplastia, com retalho microcirúrgico de antebraço ou retalho de outras regiões. É considerada experimental, devendo ser realizada somente mediante as normas do Sistema CEP/Conep.
Para complementar as faloplastias (metoidoplastia e neofaloplastia), são realizadas uretroplastia em um ou dois tempos, com enxertos de mucosa vaginal/bucal ou enxerto/retalhos genitais, escrotoplastia com pele dos grandes lábios e colocação de prótese testicular em primeiro ou segundo tempo.
Outros procedimentos destinados a adequação corporal para afirmação de gênero devem ser avaliados de acordo com o caso concreto.
Segregação dos procedimentos segundo potencial efeito esterilizador
1. Com efeito esterilizador
- Neovulvovaginoplastia (masculino → feminino): inclui a orquiectomia bilateral (remoção dos testículos), ocasionando perda irreversível da capacidade reprodutiva.
- Histerectomia e ooforectomia bilateral (feminino → masculino): consiste na remoção do útero e dos ovários, resultando em esterilidade permanente.
2. Sem efeito esterilizador
- Mamoplastia de aumento (masculino → feminino): cirurgia para aumento das mamas que não interfere na capacidade reprodutiva ou na produção de gametas.
- Mamoplastia bilateral (feminino → masculino): remoção ou redução de tecido mamário, sem remoção de ovários ou útero; não afeta a fertilidade em si.
- Cirurgias genitais (feminino → masculino) que não incluem remoção de ovários/útero:
Neovaginoplastia, quando não acompanhada de remoção de ovários e útero;
Faloplastias (metoidoplastia ou neofaloplastia), com ou sem uretroplastia e escrotoplastia, também não implicam, por si mesmas, perda irreversível da capacidade reprodutiva, desde que não haja associação com histerectomia e/ou ooforectomia.
ANEXO IV PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS)
O projeto terapêutico singular (PTS) é um conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, resultado da discussão coletiva de equipe multiprofissional e interdisciplinar a partir da singularidade dos sujeitos assistidos, permitindo, assim, promover atenção em saúde integral. O PTS abrange o sujeito em todas as etapas de seu acompanhamento, dando-lhe condições para que participe ativamente do processo terapêutico, sendo corresponsável por seu cuidado.
A criação de vínculos com as pessoas assistidas é fundamental para uma atenção humanizada. É importante articular as demandas dos sujeitos e as ações propostas pela equipe multiprofissional e interdisciplinar. O PTS deve também incluir, sempre que necessário, a participação da família e da rede social do sujeito nos processos de cuidado.
Cada pessoa vivencia sua identidade de gênero de forma singular, sendo necessário estabelecer metas para as ações em cuidado de saúde, assim como avaliações sistemáticas das etapas do processo. O PTS será desenvolvido respeitando-se as normatizações e diretrizes vigentes das especialidades médicas e áreas do conhecimento envolvidas nesse cuidado.
Na elaboração do PTS:
a) os profissionais da equipe ambulatorial serão responsáveis pela primeira etapa do PTS;
b) deve-se assegurar que todos os membros da equipe realizem atendimento à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero, para que identifiquem as singularidades de cada caso;
c) o PTS será elaborado em reunião de discussão da equipe multiprofissional e interdisciplinar, com a participação da pessoa com incongruência de gênero ou transgênero;
d) o atendimento médico deve constar de anamnese, exame físico e psíquico completos, incluindo na identificação do indivíduo nome social, nome de registro, identidade de gênero e sexo ao nascimento;
e) deverá constar a existência de histórico patológico, proporcionando os devidos encaminhamentos necessários;
f) considerando a fase peculiar do desenvolvimento, as ações sugeridas pelo PTS deverão ser construídas com crianças, adolescentes e seus pais ou responsável legal;
g) a assistência disponibilizada para crianças e adolescentes deverá estar articulada com as escolas e também com as instituições de acolhimento, quando for o caso, considerando a importante dimensão desses serviços no desenvolvimento infantil.