Sem-Título-1.pngWalter A. Polido
Walter A. Polido Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-São Paulo (2008). Professor-convidado de diversos centros universitários: Cogeae-PUC-SP; GVLaw-Rio e São Paulo; Faculdade de Direito da USP; UFRJ; UFRS; Escola Nacional de Negócios e Seguros, Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – ESA-OAB-SP; Universidade Positivo – PR; Escola da Magistratura em SP com IBDS; FESMP – Fundação Superior do Ministério Público de Porto Alegre; Centro de Estudos Jurídicos da Procuradoria do Rio de Janeiro]; PUC-Rio; Foi Coordenador acadêmico do MBA Gestão Jurídica do Seguro e Resseguro da Escola Nacional de Negócios e Seguros (sete turmas, desde a primeira em São Paulo – 2012-2019, uma em Goiânia-GO e uma em Porto Alegre – RS), assim como ex-coordenador do mesmo curso de especialização na OAB-ESA-SP (turma de 2019-20). Membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro - IBDS. Fundador e ex-presidente do Grupo Nacional de Trabalho em Meio Ambiente da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro. Árbitro inscrito na Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem CIESP/FIESP, no Centro Latinoamericano de Mediación y Arbitraje del Seguro y del Reaseguro – AIDA – ARIAS LatinoAmérica, Chile, na Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES, na Câmara de Arbitragem e Mediação do Oeste da Bahia – CAMOB e na Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – CAMARB – Atuação como árbitro em seguros e resseguros em diversas outras Câmaras: Brasil-Canadá, FGV-Rio, Amcham. Ex-Superintendente de Operações Nacionais e Membro do Conselho Técnico do IRB-Brasil Re (1975-1998). Ex-Diretor Técnico e Jurídico da Munich Re do Brasil Resseguradora S.A (1998-2008). Membro do Comitê de Regulação de Seguro e Resseguro da Faculdade de Direito da FGV-RJ. Autor de livros de seguros e resseguro [www.polidoconsultoria.com.br]; Consultor da Polido e Carvalho Consultoria em Seguros e Resseguros Ltda. (desde 2008); Sócio da Conhecer Seguros [www.conhecerseguros.com.br]; Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização em Direito do Seguro e Resseguro, do Instituto Brasil Portugal de Direito - IBPD; Membro titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC; Parecerista. http://lattes.cnpq.br/1585404610846349.
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SOAT – Seguro Obrigatório de Acidentes de Trânsito – PL n.º 8.338/2017 – é razoável a proposta legislativa na forma que ela se apresenta ou não?

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Há acentuado distanciamento do Brasil em relação aos países desenvolvidos em termos de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil de Automóveis. Limites de garantias e coberturas oferecidas se situam em patamares diferenciados, certamente com imensa desvantagem para o Brasil. Este desnível deveria constituir fator de preocupação para a sociedade brasileira, mas nunca foi objeto de questionamentos mais representativos. O brasileiro não tem cultura de seguro desenvolvida e rejeita qualquer tipo de compulsoriedade na contratação de seguros, seja qual for o tipo. O DPVAT – Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres tem cumprido insatisfatoriamente a sua função, enquanto instrumento de política pública, ainda que de relevante interesse social. O modelo vigente não é eficaz sob a perspectiva reparatória ou compensatória. Coberturas exíguas e limites de garantia ainda mais limitados, sem contar a distribuição dos prêmios arrecadado pela Seguradora Líder a diversas entidades, públicas e privadas, sem que haja plausibilidade alguma neste procedimento[2] . Entidades públicas devem ser mantidas com dotação orçamentária pela União e as privadas, em hipótese alguma, podem ter acesso a este tipo de provisão, assim como o comissionamento dos corretores de seguros que não exercem nenhum tipo de intermediação na aquisição do DPVAT. Para a Escola Nacional de Negócios e Seguros, entidade dedicada à formação de mão de obra técnica para servir ao mercado segurador privado, o repasse de parte da produção do DPVAT nunca se justificou. Não é atribuição dos proprietários de veículos do país subsidiar o ensino de seguros para a iniciativa privada.

Ao longo dos anos, o procedimento de pulverização dos prêmios foi criticado nos círculos mais reservados, mas deixou de ser alterado prontamente e prevaleceu daquela forma por longo período, de forma inexplicável. Recentemente, a Seguradora Líder deixou de repassar as parcelas de prêmios aos Sindicatos dos Corretores de Seguros[3] e à Escola Nacional de Negócios e Seguros, permanecendo o SUS e o Denatran como beneficiários. Esta política de subvenção de recursos não condiz com as funções precípuas dos seguros, nem se relaciona com qualquer princípio técnico subjacente aos referidos contratos. Seguro não é tributo e tampouco pode servir de sucedâneo para distribuições aleatórias dos prêmios arrecadados. Os prêmios de seguros devem ter por objetivo único a higidez da estrutura operacional da seguradora e especialmente a sua função garantidora dos riscos, sendo calculados e cobrados com base na frequência dos sinistros. Os segurados, proprietários de veículos, devem pagar o preço justo representado pelo risco assumido e outros encargos inerentes à operação, mas não os carregamentos que são feitos, de maneira inexplicável e injusta, de modo a serem direcionados ao SUS, Denatran, Sindicatos de Corretores de Seguros e Escola Nacional de Negócios e Seguros. Nada justifica este procedimento de pulverização, neste ou em qualquer outro tipo de seguro obrigatório. O Brasil precisa avançar neste sentido, se pretender, de fato, se alinhar aos mercados de seguros desenvolvidos e maduros. A sociedade consumidora, pagadora dos prêmios, sequer conhece, de forma transparente e objetiva, o mecanismo de repasses que tem sido perpetrado há décadas no país, com o aplauso das entidades do setor e dos órgãos estatais a quem incumbiria proteger os interesses dos segurados e beneficiários e não simplesmente homologar a “rifa” da conta dos prêmios arrecadados. A pulverização dos prêmios, impende destacar, foi estabelecida em outro momento histórico do país, sequer sob o regime democrático. Nada mais injusto, portanto, sob o olhar do Estado Democrático de Direito, que passou ao largo dessa discussão pontual. O DPVAT movimentou bilhões de reais em prêmios de seguros ao longo dos anos e as quantias sempre foram pulverizadas, conforme os percentuais mencionados, ao SUS e ao Denatran.

O “Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, ou por sua Carga, a Pessoas Transportadas ou não”, DPVAT, instituído no Brasil pela Lei n.º 6.194, de 19 de dezembro de 1974, foi operacionalizado por diversos modelos desde a sua criação e mais recentemente através de um Consórcio de Seguradoras, sob a administração da Líder Seguradora S.A. Todos os modelos apresentaram problemas, por diversos motivos, culminando na dissolução do referido Consórcio no final de 2020. Através de Resoluções, o Conselho Nacional de Seguros Privados, CNSP, buscou normatizar o processo de desativação do DPVAT, na forma como o seguro era operado, sendo que a Resolução CNSP n.º 400, de 29 de dezembro de 2020, estabeleceu as bases do "run-off" a serem observadas obrigatoriamente pela Líder Seguradora, enquanto responsável pela gestão e operacionalização do montante de sinistros ocorridos até 31.12.2020 e das ações judiciais que porventura forem interpostas sobre eles, ainda que posteriormente. A mesma Resolução estabeleceu a possibilidade de contratação, sob a gerência da Superintendência de Seguros Privados, Susep, de outra entidade jurídica encarregada do pagamento dos sinistros a partir de 1º de janeiro de 2021, sendo que em 15.01.2021 foi firmado contrato pela Superintendência e a Caixa Econômica Federal, a nova gestora do seguro obrigatório. O DPVAT, no contexto normativo informado, tende a ser substituído por outro modelo de seguro e conforme a prática encontrada em outros países desenvolvidos, os quais adotam os princípios do Seguro de Responsabilidade Civil pela Circulação de Veículos, com coberturas muito mais abrangentes e envolvendo também os danos materiais, além dos danos pessoais a terceiros. A comercialização, ou seja, a oferta do referido seguro deve ser operada por diversas Seguradoras interessadas no segmento, individualmente, sem a exclusividade que prevaleceu para o DPVAT, apesar de a composição do Consórcio ter apresentado várias Seguradoras ao longo de sua existência. O modelo de Seguradoras individualizadas também já foi experimentado durante a existência do DPVAT, sendo substituído pela formação de Consórcio. O maior problema ocorrido e motivador do fracasso do modelo DPVAT, entre outros, foi sem dúvida a despropositada distribuição da produção de prêmios a diversas entidades, governamentais e privadas: SUS, Denatran, Funenseg (Escola Nacional de Negócios e Seguros), Sindicatos dos Corretores de Seguros, na ordem superior a 50% em diferentes percentuais às mencionadas organizações.

O prêmio de seguro, de qualquer ramo, deve ter destino certo e único, que é a Seguradora responsável pela emissão da apólice e que assumiu os riscos garantidos por ela, devendo pagar as indenizações devidas. Qualquer repasse que porventura se afastar deste conceito, será impróprio, uma vez que ele descaracteriza a operação securitária na sua essência. Entidades da administração pública devem ser geridas mediante dotação orçamentária governamental e não através de seguros privados, seja qual for a pretensa justificativa apresentada. No tocante às entidades privadas, sequer há espaço para ensaiar qualquer tipo ou tentativa de justificação, pois que todas elas serão despropositadas e ilegítimas, assim como sempre foi o repasse do DPVAT no país, sendo que nenhuma das entidades beneficiárias sequer tinha a obrigação de demonstrar, publicamente, a destinação dada ao produto arrecadado, enquanto recurso coletivo. Os proprietários de veículos automotores devem pagar os respectivos prêmios pelo tipo ou categoria de cada veículo, mas visando tão somente a formação de fundo mutualístico para o pagamento dos sinistros que ocorrerem com a massa de riscos segurados. Qualquer outra destinação, repise-se, seria ilegítima e atribuiria carga de ônus extraordinária ao cidadão, pelo simples fato de ele ser proprietário de veículo. Este esquema de parafiscalidade não encontra argumentação suficiente para a sua conformidade legal, uma vez submetido ao filtro constitucional, mas mesmo assim ele perdurou por longo período no Brasil, baseado em várias leis que em princípio o legitimaram. Parafiscalidade, na medida em que, para os proprietários de veículos, o prêmio do DPVAT carregado era destinado com 45% dos prêmios ao SUS, conforme a previsão na Lei n.º 8212/91 e 9.505/97, mais 5% ao DENATRAN, conforme a Lei n.º 9.503/97. Para a Escola Nacional de Negócios e Seguros, o repasse vinha prescrito na Lei n.º 4.594/64, art. 19, com nova redação dada pela Lei n.º 6.317/75. Era repassado, também, aos Sindicatos dos Corretores de Seguros, Sincor. O referido carregamento do prêmio, pago pelos proprietários de veículos, permitia os repasses substanciais para as diversas entidades, sendo que o proprietário “assumia” a natureza de imposto extraordinário, mas sem qualquer contrapartida individual que pudesse ser exigida pelo pagador, agente passivo dessa relação[4]. A tendência que se verifica, também no Brasil, repousa na possibilidade de o modelo DPVAT, em processo de extinção, ser substituído pelo Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, similar ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativo de Veículos, RCFV, já comercializado no país há décadas e justamente para neutralizar os "gaps" de coberturas e de limites do DPVAT. Haverá, para o novo modelo, a compulsoriedade quanto à contratação, invariavelmente. Nessa linha de projeção do tema, convém ressaltar, que já existe PL no Congresso Legislativo Nacional e visando a discussão para a implantação do Seguro Obrigatório de Acidentes de Trânsito, SOAT, cuja proposta carece de reformulação em diversos pontos, uma vez que o texto original é primário em vários e importantes aspectos e inova pouco ou quase nada sob a perspectiva do malsucedido DPVAT, o que será comentado no seguimento deste texto, com detalhamento. Da trajetória malograda do DPVAT, importante extrair a lição sobre a inexequibilidade de eventuais proposições legislativas, qualquer uma delas descabida, de repasses de parte dos prêmios arrecadados em seguros obrigatórios para entidades que não às próprias seguradoras garantidoras dos riscos. Convém destacar, neste contexto, o fato de a Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização – CNSeg, ter incluído no Plano de Desenvolvimento do Mercado de Seguros, Previdência Aberta, Saúde Suplementar e Capitalização (PDMS), lançado em 2023 e com projetos de realização programados para até 2030, o novo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóveis.  

Os proprietários de veículos automotores devem pagar os respectivos prêmios pelo tipo ou categoria de cada veículo, mas visando tão somente a formação de fundo mutualístico para o pagamento dos sinistros que ocorrerem com a massa de riscos segurados. Qualquer outra destinação, repise-se, seria ilegítima e atribuiria carga de ônus extraordinária ao cidadão, pelo simples fato de ele ser proprietário de veículo. Este esquema de parafiscalidade não encontra argumentação suficiente para a sua conformidade legal, uma vez submetido ao filtro constitucional, mas mesmo assim ele perdurou por longo período no Brasil, baseado em várias leis que em princípio o legitimaram. Parafiscalidade[5], na medida em que, para os proprietários de veículos, o prêmio do DPVAT carregado[6] e de modo a permitir os repasses substanciais para as diversas entidades, “assumia” a natureza de imposto extraordinário, mas sem qualquer contrapartida individual que pudesse ser exigida pelo pagador, agente passivo dessa relação. Por fim, a tendência que se verifica, também no Brasil, repousa na possibilidade de o modelo DPVAT, em processo de extinção, ser substituído pelo Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, similar ao Seguro de Responsabilidade Civil Facultativo de Veículos, RCFV, já comercializado no país há décadas e justamente para neutralizar os "gaps" de coberturas e de limites do DPVAT. Haverá, para o novo modelo, a compulsoriedade quanto à contratação, invariavelmente. Nessa linha de projeção do tema, o Projeto de Lei n.º 8.338/2017, apresentado no Congresso Nacional e visando a implantação do Seguro Obrigatório de Acidentes de Trânsito, SOAT, carece de reformulação em diversos pontos, uma vez que o texto original é primário em vários e importantes aspectos e inova muito pouco ou quase nada sob a perspectiva do malogrado DPVAT. Na trajetória nada exitosa deste seguro obrigatório, importante extrair a lição sobre a inexequibilidade de eventuais proposições legislativas, no tocante ao repasse de parte dos prêmios arrecadados em seguros obrigatórios para entidades que não às próprias seguradoras garantidoras dos riscos. De maneira similar, tem sido comum o aparecimento de projetos de lei pretendendo introduzir o seguro ambiental no rol dos obrigatórios, alguns deles também com a previsão de farta distribuição dos recursos a entidades diversas. Este modelo tem de ser combatido, sempre, qualquer que seja a categoria do risco objeto do seguro.  

A primeira proposta brasileira de uma lei específica para o contrato de seguro, o PL n.º 3.555/2004, continha um capítulo dispondo sobre regras básicas pertinentes aos seguros obrigatórios, mas acabou sendo suprimido para permitir a redução do bloqueio feito ao mesmo projeto por instituições do mercado de seguros e de corretagem de seguros na ocasião. No mencionado PL já se procurava garantir conteúdos de coberturas e valores de modo a evitar a evasão dos prêmios arrecadados para fins estranhos ao interesse público[7].

O PL 8.338/2017, por sua vez, propõe a extinção do DPVAT e a inserção do SOAT no seu lugar. Resta saber, contudo, quais seriam as reais vantagens que se apresentariam, se existentes, na hipótese de o PL ser acolhido pelo Congresso Nacional. Beneficiaria, de fato, toda a sociedade brasileira, sendo que o DPVAT já demonstrou não ter eficácia comprovada na estrutura que se apresenta e não só em razão da pulverização dos prêmios arrecadados?

A Superintendência de Seguros Privados – Susep, instituiu uma Comissão Especial através da Portaria n.º 7070/2018, visando à análise aprofundada das alternativas possíveis relativas ao modelo de operação do seguro DPVAT no país, cuja iniciativa partiu de recomendação do Tribunal de Contas da União, TCU. O Tribunal entendeu que era o momento de acabar com o círculo vicioso em que se encontrava o atual modelo, sendo necessária a sua reformulação em busca da eficiência. Importante ressaltar que o TCU, em face mesmo da politização vigente nas Agências Reguladoras e nos demais Órgãos Reguladores dos diversos sistemas econômicos do país, tem tomado para si a missão relevante de defender os interesses coletivos e difusos dos cidadãos e particularmente dos consumidores de bens e serviços e busca suprir, desta forma, a lacuna existente. As agências e os demais órgãos afins deveriam passar por modificações estruturais no Brasil, assim como a Susep, sobre a qual o tema já foi analisado através do texto “A SUSEP será transformada em Agência Reguladora, com base no Projeto de Lei nº 5.277/2016?”[8]. O Brasil e a sociedade brasileira ressentem da ausência de equipamentos regulatórios atuais e não patrimonialistas, sendo que deveriam ser conduzidos sob a ótica política, permanente, do Estado e não simplesmente sob a política de ocasião dos Governos e, menos ainda, dos Partidos Políticos. O modelo nacional de seguros está acorrentado ao passado e sob o jugo do vetusto e ultrapassado Decreto-Lei n.º 73/1966, concebido sob outro olhar e pensamento contratual, sequer democrático e tampouco eficiente como vem determinado na Constituição Federal de 1988, no artigo 37.

Com vistas na Portaria Susep 7070/2018 e no PL 8.338/2017, convivem no país duas correntes distintas acerca do Seguro Obrigatório de Proprietários de Veículos: (a) a primeira analisa opções de reformulação das bases vigentes do Seguro DPVAT, mas mantendo a estrutura hoje conhecida; e (b) a segunda propugna pela disrupção total em relação ao modelo atual, colocando o SOAT no lugar do DPVAT, em regime de livre mercado, entre outras mudanças substanciais do sistema.

Há vantagens e desvantagens em cada um dos modelos, sendo que a tomada de decisão a respeito não pode se restringir à Susep e tampouco à Caixa, enquanto sucessora da Líder e nem mesmo aos corretores de seguros, com toda a certeza. A discussão deve ser muito mais ampla do que simplesmente apontar um modelo. Muito provavelmente será necessário criar uma versão intermediária, a qual poderia contemplar o que há de melhor e que já funciona de maneira comprovada no velho modelo, com a modernização proposta pelo novo, no que couber. Romper simplesmente com o modelo atual, pode não ser a solução mais plausível, até porque o mercado segurador nacional já experimentou outros regimes antes deste, e que também não funcionaram, desde a criação do DPVAT no país com a edição da Lei nº 6.194/74, alterada pelas Leis n.º 8.441/92, 11.482/2007 e pela Medida Provisória n.º 451/2008. O modelo de mercado livre para este seguro, inclusive, já foi testado no Brasil e não se mostrou adequado. Os mais variados modelos existentes pelo mundo afora deveriam ser pesquisados, apesar de o mercado brasileiro sempre preferir criar modelos “domésticos”, ainda que desarticulados com aquilo que há de melhor em outros países, já testados e comprovados no aspecto da eficiência.

O SOAT, segundo o PL em destaque neste texto, não constitui a panaceia para todos os males hoje conhecidos sobre o DPVAT, sem sombra de dúvida. Há lacunas no referido PL, sendo que questões relevantes foram simplesmente ignoradas e que muito provavelmente aflorarão na sequência do rito de apreciação do PL, se de fato acontecer a tramitação desta proposta legislativa.

Determinados temas são de difícil escolha, ou seja, a seleção do melhor modelo que pode conduzir procedimentos em detrimento de outros, sendo que alguns deles também não foram testados, ainda. Exemplos que podem ser destacados nessa discussão:

(a) manutenção de tarifa fixa e independente do perfil individual de cada risco, cujo mecanismo está muito mais próximo do imposto ou tributo, do que da concepção real do prêmio de seguro. A natureza compulsória da contratação e o papel social deste tipo de seguro, todavia, em princípio validaria a instituição de prêmios diferenciados apenas por categorias ou tipos de veículos;

(b) a determinação de prêmios pelo Poder Público é algo incompatível com a operação do seguro, notadamente pelo fato de que a atividade é desempenhada pela iniciativa privada, essencialmente. A prática tem demonstrado no Brasil que o tabelamento de preço, em qualquer setor, não é compatível com o livre comércio de bens e serviços. De qualquer maneira é muito mais razoável admitir que o Legislativo determine valores mínimos de garantias para danos pessoais (e por que não também para os danos patrimoniais) iniciais em seguros obrigatórios, do que os próprios agentes da atividade privada, mesmo quando regulados pela Susep, que é hoje um órgão subordinado ao Poder Executivo;

(c) uma vez mantida a padronização dos clausulados de coberturas, o valor agregado que a livre concorrência poderia impor seria totalmente neutralizado, deixando de beneficiar os consumidores do país, notadamente em face da prática muito recente, ou seja, a imposição desmedida da Susep em relação às bases contratuais dos seguros nacionais[9];

(d) a monopolização da operação conforme ela é exercida hoje parece evidenciar que há margem de ganho e lucratividade muito maior do que se ela fosse aberta para a concorrência de vários atuantes. No entanto, não pode ser desprezado o fato de que muito provavelmente as Seguradoras não terão interesse na operacionalização individualizada do SOAT, assim como já demonstraram não ter com o DPEM[10] ;

(e) a abertura do DPVAT/SOAT pode propiciar que as regiões menos desenvolvidas do amplo território nacional sejam abandonadas pela iniciativa privada, ficando os proprietários de veículos sem acesso ao seguro obrigatório;  

(f) a intermediação na contratação do SOAT, se compulsória, não atrelaria valor agregado, na maioria das vezes, mas apenas mais custo na operação, onerando desnecessariamente os consumidores de seguros. Em face da modernidade nos meios de comercialização dos seguros no mundo e também no país, a nova legislação, se for promulgada, deveria deixar sob única e exclusiva vontade dos consumidores interessados pelo seguro, realizá-lo com ou sem a presença do corretor de seguros, banido qualquer tipo de compulsoriedade, não mais bem-vinda e justificada neste novo século de alta tecnologia de informação e acesso a serviços. O atual DPVAT já prescinde do corretor de seguros, em que pese o fato de que havia acordo com a Seguradora Líder e os Sindicados dos Corretores de Seguros do país, com repasse de parte da produção do referido seguro para eles. A justificativa, neste sentido, se lastreava na narrativa de que os corretores orientavam os segurados, assim como os beneficiários do seguro no momento seguinte ao do sinistro e na busca das indenizações cabíveis, impedindo, inclusive, a ação de outros intermediários os quais, muitos deles, fraudavam e continuam fraudando as operações, em prejuízo exclusivo das vítimas. Não parece, contudo, que a intermediação de corretores possa ser considerada sine qua non em seguros do tipo examinado. Ao contrário, deve ser rompido este paradigma da compulsoriedade em qualquer modelo de seguro nacional. Há vários procedimentos espúrios que interferem na operação e passam também pela leniência que existe no Brasil em relação a advogados inescrupulosos e que continuam operando livremente, também nos procedimentos administrativos indenizatórios do DPVAT. A discussão, portanto, tem lastro muito maior do que a base de alegação feita pelos Sindicatos de Corretores de Seguros do país;

(g) o PL manteve a natureza jurídica do SOAT da mesma forma encontrada no DPVAT, ou seja, o risco é de responsabilidade civil decorrente da existência, uso e conservação de veículos terrestres motorizados em vias públicas, sendo que a garantia do seguro está estruturada na base de seguro de danos pessoais. Essa concepção contrasta com a modernidade, sendo que na maioria dos países o seguro pela circulação de veículos sempre foi efetivamente de responsabilidade civil e não de danos pessoais, assim como foi introduzido no Brasil, quase que em regime exclusivo, a partir da edição do Decreto-Lei n.º 814, de 04.09.1969, o qual limitou o seguro obrigatório de “responsabilidade civil de veículos automotores de vias terrestres” às reparações por danos pessoais. Na ocasião, pela discrepância existente em relação à legislação, uma vez que o Código Civil de 1916 vigente consagrava a responsabilidade civil subjetiva, ou seja, eram necessárias a investigação e a prova da culpa para a devida responsabilização do infrator, a lei que tratou do seguro obrigatório e as condições padronizadas da cobertura determinadas pelo CNSP (Resolução 25/1967), abarcaram a responsabilidade objetiva em face da teoria mais precisa do risco criado, o que certamente propiciou toda a sorte de conflitos na operação. O mencionado DL 814/69 modificou as bases do seguro, reduzindo drasticamente o seu escopo, sendo que novas bases contratuais foram expedidas pela Resolução CNSP 11/1969, consolidando o mesmo objetivo[11]. Importante destacar, ainda, que naquela ocasião, o Código Civil vigente, fruto do pensamento oitocentista que reinava no ocidente e com índole eminentemente patrimonialista e voluntarista, sequer cogitava dos direitos extrapatrimoniais com o mesmo destaque e importância encontrada atualmente (danos morais, por exemplo). A própria nomenclatura “danos pessoais” trazia com ela conceitos muito mais reducionistas e conservadores, se comparados ao movimento que se seguiu e que desconstruiu completamente essa concepção ultrapassada do Direito Civil. O novo Código Civil de 2002, através de seu artigo 927, § único, consagra o princípio da responsabilidade civil sem culpa, objetiva, certamente se aplicando também e necessariamente ao risco da circulação de veículos. Diante desta perspectiva legislativa, razão maior para o novo seguro DPVAT/SOAT ser recepcionado pelo novo ordenamento, ultrapassadas que estão e há muito tempo, as razões que levaram o DPVAT a ser reduzido a um mero seguro de danos pessoais no país e desarticulado dos seguros de responsabilidade civil. Não há mais como se desvencilhar do estudo e análise deste tema, neste momento crucial do mercado segurador nacional, na medida em que o mesmo mercado se propôs a inovar nas bases de comercialização do seguro obrigatório da circulação de veículos. Na hipótese de a concepção muito mais moderna ser acolhida, o RCFV – Seguro Facultativo de Responsabilidade Civil de Veículos, comercializado no Brasil justamente em face das inconcretudes das bases encontradas no DPVAT, desde a sua criação, perderia a hegemonia que detém atualmente, na medida em que o seguro obrigatório faria as vezes do facultativo, de forma muita mais apropriada. As Seguradoras do mercado nacional, sob esta perspectiva, teriam também muito mais interesse em operar com o seguro obrigatório de circulação de veículos, sendo que esta certeza não pode ser afirmada se forem mantidas as bases do DPVAT no eventual SOAT.

No tocante ao repasse de parte significativa dos prêmios do DPVAT e também no SOAT (artigos 15 e 16 do PL) a outras Entidades não tomadoras de riscos de seguros, requer a apresentação de comentários particularizados, em face da relevância do tema. O atual regime de repasse não se justifica sob qualquer pretexto. Se houver excedentes nos prêmios arrecadados e representados pela produção e lucratividade das carteiras correspondentes aos seguros obrigatórios, cabe às Seguradoras revertê-los aos próprios segurados, reduzindo o valor dos prêmios das renovações, ampliando a concessão de coberturas e afins, mas não os repassar a outrem, alheio à operação. Este princípio rege toda e qualquer operação de seguros, obrigatórios ou facultativos. Permeia, portanto, aquilo que se convencionou chamar de “justiça distributiva”, a qual se apresenta como dever-anexo nas operações de seguros, notadamente naqueles de caráter social, assim como se apresenta o DPVAT/SOAT. Em resumo, deve ser repudiada qualquer proposição legislativa que preveja a distribuição de prêmios arrecadados a partes alheias às seguradoras e segurados.

Apenas Governos autoritários desprezam os princípios inerentes à atividade seguradora privada, aproveitando o cochilo do Legislativo ou mesmo a omissão deliberada deste por força do regime, sendo que o ordenamento acaba acolhendo norma extravagante, desprovida de eficácia sob o filtro mais apurado da lógica que deve estar subsumida na lei, seja qual for ela. A narrativa encontrada é no sentido de que o SUS acaba atendendo os acidentes automobilísticos do país e sem aparelhamento que possa lhe permitir a busca da indenização devida junto ao seguro obrigatório, assim como o Constran que deve receber verba para intensificar campanhas publicitárias de prevenção e proteção de acidentes automobilísticos, certamente não convence mais ninguém, por mais altruísta que seja. O resultado se mostra neutro e jamais passou pela informação devida àquela parcela da sociedade, representada pelos proprietários de veículos, à qual é determinado um imposto ou tributo adicional que acaba não revertendo utilmente para o universo das vítimas dos acidentes de trânsito. Junto a esses repasses, os valores destinados aos Sindicatos dos Corretores de Seguros e também à Escola Nacional de Negócios e Seguros – atualmente suspensos, desconfiguraram completamente o conceito de contrato de seguro, mormente do prêmio de seguro, cuja parcela é devida pelo Segurado à Seguradora em face do risco tomado por ela, diante do legítimo interesse segurado. Comutatividade presente: prestação imediata pela Seguradora na garantia do risco predeterminado e a contraprestação representada pelo pagamento do prêmio pelo Segurado. O repasse a outras entidades não se justifica, de maneira alguma, notadamente para países que pretendem ultrapassar as linhas do pensamento atrasado, alinhando-se aos mercados de seguros mais desenvolvidos do planeta.

O PL 3.555/2004, atual PLC 29/2017 (do contrato de seguro), trazia no seu artigo 128, que acabou suprimido na sua redação final, regra muito importante e esclarecedora: “é vedada a utilização dos prêmios arrecadados com seguros obrigatórios para pagamentos a quem não seja a vítima ou seu beneficiário, salvo os custos da seguradora, operacionais e comerciais, desde que previstos nas respectivas notas técnicas e atuariais”. A exegese contida na mencionada proposição legal, suprimida no PL 29/2017, é bastante simples e contundente: o prêmio do seguro deve ser a justa medida do risco e dos encargos administrativos e fiscais que a Seguradora apresenta quando toma para ela a obrigação de garantir interesses dos segurados. O repasse a outras entidades, alheias ao conceito de tomador de riscos, constitui prática espúria e juridicamente condenável, devendo ser afastada, peremptoriamente, no Brasil. Os segurados devem pagar o preço justo pelos seus riscos segurados, nem mais e nem menos. Não se coaduna com a pós-modernidade o repasse, quase desmedido, representado por parafiscalidade indevida e criada por políticos que desconhecem a técnica subjacente aos contratos de seguros, privados ou públicos. Não é desta forma que as entidades governamentais devem ser providas, de maneira sub-reptícia, sem informação adequada, inclusive, para os cidadãos pagadores. Em Portugal, há questionamento doutrinário acirrado em relação a determinadas taxas impostas pelo Estado às Seguradoras e como destinatário dessa receita o ISP – Instituto de Seguros de Portugal, na medida em que os próprios segurados acabam pagando por este tributo extraordinário e sem que, individualmente, tenham algum tipo de contraprestação devida. Neste sentido, Rogério Ferreira e João Mesquita determinam que “não é quem paga tal montante quem, directa e especificamente, beneficia das prestações dos mesmos (o que talvez devesse justificar que muitas dessas receitas fossem substituídas por dotação orçamental), pelo que a forma de previsão e exigências de tais tributos, bem como da possibilidade e fixação do seu montante (v.g. por mera portaria), é de duvidosa constitucionalidade, por desrespeito da reserva de lei formal constitucionalmente prevista”[12]. Respeitada a semelhança dos temas aqui tratados é fácil concluir que o cidadão comum não pode contribuir, de maneira indireta, para a manutenção de entidades estatais, as quais deveriam ser mantidas exclusivamente através de dotação orçamentária. No tocante às entidades privadas, que não as próprias tomadoras de riscos – as Seguradoras, sequer haveria como cogitar delas na condição de beneficiárias do produto dos prêmios de seguros em face dos princípios gerais democráticos do Direito. O Brasil e o mercado segurador brasileiro, portanto, devem avançar neste sentido, urgentemente.

O já citado PL 3.555/2004 previa outros dispositivos importantes e relativos à discussão do tema deste texto, como o artigo 127: “as garantias dos seguros obrigatórios terão conteúdo e valor mínimos que permitam o cumprimento de sua função social, devendo o órgão regulador competente, a cada ano civil, rever o valor mínimo das garantias em favor dos interesses dos segurados e beneficiários”. Na redação do PLC 29/2017, as balizas normativas foram bastante reduzidas no correspondente artigo 123: “as garantias dos seguros obrigatórios terão conteúdo e valores mínimos que permitam o cumprimento de sua função social”. Em que pese o fato de os órgãos reguladores no Brasil nem sempre estarem aptos ou devidamente esclarecidos para determinarem situações tão importantes como essas, a previsão legal de continuidade e atualização dos valores se mostra certamente fundamental, de modo a não permitir que os próprios regulados, no caso as Seguradoras, determinem algo que se reveste de interesse muito mais coletivo do que corporativo. O Órgão Regulador se de fato estivesse composto fundamentalmente sob princípios da pós-modernidade (direção contratada de forma profissional e ampla, tempo determinado de mandato, política de gestão publicizada, representantes da sociedade especializada no conselho gestor, execução da política de Estado referente ao setor e não partidária de Governo, etc.), poderia sim representar e tutelar da forma que convêm os interesses sociais neste tipo de seguro.

As mencionadas balizas contidas nos artigos 127 e 128 do PL 3.555/2004 não poderiam deixar de existir no ordenamento nacional, na medida em que a produção legislativa sempre se mostra desarticulada com os reais objetivos dos seguros no país, muito provavelmente pela completa falta de cultura nacional sobre esta ferramenta de garantia à sociedade. Deste modo, tem sido comum a propositura da distribuição farta do resultado da comercialização dos seguros a entidades variadas e como se fosse essa a função social dos seguros obrigatórios. Nada mais injusto com aqueles que pagam os prêmios, os consumidores-segurados de determinadas categorias de riscos, os quais acabam sendo onerados duplamente nesta tributação indireta. As Entidades públicas devem ser providas por contingenciamento orçamentário do Estado e não pelos particulares, de forma indireta. Na linha de entendimento enviesado a respeito da função social dos seguros obrigatórios, são encontrados, repise-se, projetos de leis nas diversas áreas, sendo que na ambiental é bastante recorrente essa malograda tentativa. Projetos propugnam pela distribuição de partes significativas da arrecadação dos prêmios de seguros ambientais, enquanto obrigatórios, para a União, aos Estados e a Municípios, além do Fundo Nacional de Direitos Difusos, o qual, por si só, já comportaria modificações substanciais na sua estrutura, funcionamento e funções, pois que o modelo atual nunca atendeu aos cidadãos, deixando de cumprir a sua finalidade institucional. Completo e recorrente desconhecimento da matéria seguros, por todos os parlamentares nacionais. Raramente verifica-se a menção ao seguro na condição, entre outras, de garantias financeiras que poderiam ser exigidas dos empreendedores: caução bancária, constituição e segregação de capital próprio em face de ocorrências catastróficas, seguro. Este padrão, internacional, assim como foi utilizado na União Europeia desde a promulgação da Diretiva 2004/35/CE, deveria pautar os PL’s do Congresso Nacional, nos mais variados setores e proposições legislativas.

Por ser oportuna a discussão também deste tema, o PL 8.338/2017 (SOAT), manteve as garantias de Morte, Invalidez Permanente – total ou parcial e o reembolso das Despesas de Assistência Médica e Suplementares, sem qualquer perspectiva de inovação, há tempo requerida, mesmo no DPVAT. Abraçou, portanto, o modelo conservador de Seguro de Danos Pessoais ao invés do Seguro de Responsabilidade Civil e, mesmo assim agindo, desconsiderou qualquer possibilidade de redefinição dos termos, atualmente muito mais amplos na própria doutrina, ordenamento jurídico e jurisprudência dos tribunais. Os conceitos compreendidos por esses termos, portanto e conforme o mencionado PL, não mais correspondem às necessidades encontradas no ordenamento jurídico, carecendo de reformulação neste tipo de seguro e nos demais que se envolvem com eles: seguros de pessoas, seguros de responsabilidade civil, etc. Para Brandimiller, na sua magnífica obra-conceito, a nomenclatura utilizada pelo mercado segurador nacional se mostra desprovida de tecnicidade adequada, em vários sentidos. O autor se refere, por exemplo, ao termo “invalidez parcial” no sentido de que “o indivíduo é inválido ou não é inválido, não existe meio-termo”[13]. Para o termo “invalidez permanente”, o mesmo autor comenta: “trata-se de redundância, pois invalidez é uma condição definitiva: não existe temporariamente inválido”[14]. A nomenclatura das apólices brasileiras precisa ser revisitada, urgentemente e de modo que os conceitos sejam moldados à contemporaneidade do Direito e dos interesses da sociedade consumidora de seguros.

Entre os portugueses, por força das determinações comunitárias da União Europeia, o tema acerca das coberturas e do cálculo do montante indenizatório dos danos corporais em seguros obrigatórios de acidentes automobilísticos evoluiu bastante, se comparado ao padrão atual brasileiro. A partir da Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.05.2005[15], resultado do esforço europeu para harmonizar as diferentes posições encontradas nos Estados-Membros em relação à circulação de veículos automotores, Portugal sancionou o Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, o qual publicou a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil. O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, determinou o regime jurídico do procedimento de oferta razoável, da qual consta a avaliação do dano corporal, com regulamentações feitas pelas Portarias n.º 377/2008 e 679/2009, ambas da Secretaria de Estado do Tesouro e Finanças de Portugal. A mencionada oferta razoável, cujos critérios de valoração constam das Portarias, “fixam, nesta medida, apenas valores mínimos de proposta razoável, mesmo quando referenciam ‘até’ ou um intervalo de valores. (...) Nada impede que os seguradores aumentem os valores ou alterem os critérios legalmente previstos, desde que sejam mais favoráveis ao lesado”[16]. A jurisprudência portuguesa, a respeito dos critérios determinados pela legislação citada, tem sido uníssona no sentido de que a oferta não é vinculativa em sede judicial, servindo apenas como uma primeira proposta de composição dos danos havidos.

Não é à toa que em Portugal praticamente foi abandonada a utilização da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes do Trabalho, privativa dessa área do Direito, para ser adotado os mesmos critérios utilizados em acidentes automobilísticos, esses sim muito mais condizentes com a valoração das perdas e danos sofridos pelas vítimas, na contemporaneidade.

O Glossário constante da Portaria n.º 377/2008 portuguesa, deixa transparente a abrangência do tema, em todos os seus aspectos: avaliação do dano corporal; cura; dano biológico; dano-consequência; dano corporal; dano da dor; danos estético; dano evento; dano futuro; dano moral; dano morte; dano não patrimonial; dano patrimonial; dano patrimonial emergente; dano patrimonial futuro; dano permanente; dano potencial; dano temporário; incapacidade permanente; incapacidade permanente absoluta; incapacidade permanente parcial; incapacidade temporária; incapacidade temporária geral; incapacidade temporária profissional; prejuízo de afirmação pessoal; quantum doloris; sequelas funcionais; sequelas situacionais.

O Brasil e o Mercado Segurador nacional precisam avançar neste mesmo sentido, ampliando e modernizando a utilização dos critérios para a cobertura e a valoração dos danos pessoais[17] . Os paradigmas existentes não estão perfeitamente conformes com o Direito contemporâneo, notadamente em razão da doutrina jurídica pós-moderna, a qual valoriza o Homem, com supremacia. Não será feita a justiça, plenamente, toda vez que o quantum debeatur for estratificado com base apenas na remuneração recebida pela vítima, antes do sinistro. Não há meio termo nessas considerações. Na preleção de Perlingieri, colmatando o pensamento aqui expresso, “a avaliação equitativa prescinde do rendimento individual ou pro capite e concerne às consequências que o dano produz nas manifestações da pessoa como mundo de costumes de vida, de equilíbrios e de realizações interiores”[18]. A pessoa, portanto, não pode mais ser valorada com base apenas na sua condição de ser laboral e como se essa perspectiva fosse suficiente para compreendê-la integralmente.

Feitas as considerações contidas neste texto, e na linha de entendimento que elas circunscrevem, pode ser aferido que o PL 8.338/2017 não se encontra concluído, de forma alguma. O Legislativo tem o dever de analisar e contemplar os novos paradigmas, de modo a propiciar o giro conceitual existente, antes mesmo de simplesmente romper com o modelo DPVAT atual, nada inovando a respeito das coberturas do seguro e de suas respectivas abrangências, com completo desprestígio aos beneficiários diretos da pretensa nova legislação: os cidadãos brasileiros. Não cabe apenas às Seguradoras e aos Corretores de Seguros escolherem o modelo que julgam mais adequado. O tema é muito mais amplo do que este pequeno círculo de interesses. Deve ser melhor debatido, portanto, sendo que o Mercado de Seguros tem a obrigação singular da divulgação do assunto a todos os interessados.

[1] Texto revisto e atualizado pelo autor em outubro de 2023. O original foi publicado na Coluna do autor no site da Editora Roncarati [www.editoraroncarati.com.br]. Este texto atual, ampliado e atualizado, foi substituído naquele site.

[2] A arrecadação de prêmios relativos ao DPVAT era pulverizada na ordem de 45% para o SUS – Sistema Único de Saúde, conforme determinação prevista nas Leis nºs 8.212/91 e 9.505/97, mais 5% ao Denatran – Departamento Nacional de Transportes, conforme a Lei n.º 9.503/97. Havia, até muito recentemente, repasses dos prêmios arrecadados aos Sindicatos dos Corretores de Seguros e à Escola Nacional de Negócios e Seguros – Funenseg, por determinação de Resolução administrativa do CNSP – Conselho Nacional de Seguros Privados.

[3] “Os Sindicatos dos Corretores de Seguros – Sincor’s, reunidos em assembleia, decidiram, por unanimidade, (dos 23 sindicatos presentes), interromper o atendimento ao público no tocante à orientação e à recepção dos sinistros do Seguro DPVAT em todo o Brasil” (fonte: Fenacor), in: JNS – Jornal Nacional de Seguros, n. 307, São Paulo, maio de 2018, p. 8.

[4] Ver: FERREIRA, Rogério M. Fernandes. MESQUITA, João. A parafiscalidade na atividade seguradora. Coimbra: Almedina, 2012.

[5] Ver: FERREIRA, Rogério M. Fernandes. MESQUITA, João. A parafiscalidade na atividade seguradora. Coimbra: Almedina, 2012.

[6] No Seguro DPVAT, ao longo de sua existência e com cobrança compulsória dos proprietários de veículos automotores terrestres, sobre o prêmio relativo ao risco pela “existência e uso dos veículos”, houve a adição de mais da metade do valor e de modo a propiciar o montante de arrecadação compatível com a distribuição que era realizada do produto da comercialização do seguro, para as diversas entidades.

[7] “Art. 128. É vedada a utilização dos prêmios arrecadados com seguros obrigatórios para pagamentos a quem não seja a vítima ou seu beneficiário, salvo os custos da seguradora, operacionais e comerciais, desde que previstos nas respectivas notas técnicas e atuariais”.

[8] https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/A-SUSEP-sera-transformada-em-Agencia-Reguladora-com-base-no-Projeto-de-Lei-n%C2%BA-5-277-2016.html Último acesso: 04.10.2023.

[9] O processo de flexibilização das condições contratuais teve início apenas em 2020, culminando com a divulgação das Circulares Susep 621/2021 (seguros de danos – massificados); Circular Susep 637/2021 (seguros do grupo responsabilidades); Resolução CNSP 407/2021 (seguros de danos – grandes riscos); Circular Susep 639/2021 (seguros do grupo automóvel). Neste novo cenário, a Susep colocou em pauta a possibilidade de o seguro de RC Automóveis, até então relacionado diretamente a um determinado veículo segurado, se expandir para a garantia da responsabilidade civil do condutor – Seguro de Responsabilidade Civil Facultativa para Condutores de Veículos Automotores (RCFC), conforme a Circular Susep 639, de 09 de agosto de 2021.

[10] O seguro DPEM foi instituído pela Lei nº 8.374, de 30/12/91, que em seu artigo 1º alterou a alínea "l" do artigo 20 do Decreto-Lei nº 73, de 21/11/66. Tem por finalidade dar cobertura aos danos pessoais causados por embarcações ou por sua carga às pessoas embarcadas, transportadas ou não transportadas, inclusive aos proprietários, tripulantes e condutores das embarcações, independentemente de a embarcação estar ou não em operação.

[11] Leia mais: BRANCO, Elcir Castello. Do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1971.

[12] FERREIRA, Rogério M. Fernandes. MESQUITA, João. A Parafiscalidade na Actividade Seguradora. Coimbra: Almedina, 2012, p. 57.

[13] BRANDIMILLER, Primo Alfredo. Conceitos Médico-Legais para Indenização do Dano Corporal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 295.

[14] Idem, p. 295.

[15] Nas considerações apresentadas na Diretiva 2005/14/CE, há expressa menção ao fato de que “um montante mínimo de cobertura de 1.000.000 de euros por vítima ou de 5.000.000 de euros por sinistro, independentemente do número de vítimas, afigura-se razoável e adequado.” (item 10). Os comparativos nacionais, quer do DPVAT (tabelado oficialmente), quer do Seguro Facultativo de RC Veículos (limites contratados livremente pelos segurados), se mostram tão tímidos em termos de valores, que sequer se aproximam do paradigma europeu, deixando patente o grau de subdesenvolvimento da sociedade brasileira, de maneira incontestável. O legislador nacional tem papel preponderante nesta seara e de modo a impulsionar o desenvolvimento dos Seguros de RC Veículos através de moldes muito mais consentâneos com a contemporaneidade e a evolução do Direito, numa espécie de giro conceitual necessário. Simplesmente ignorar este tema, deixando de analisá-lo completamente e sob todos os aspectos concernentes, não resolverá as questões que se produzem no cotidiano. Alegar, ainda, que os brasileiros não estão preparados para a admissão de exigências mais concretas, particularmente em termos de limites mínimos de coberturas compulsórias, também não atende à realidade dos fatos, mesmo porque nem todos os proprietários de veículos no país contratam o DPVAT na forma como o seguro se encontra, ainda que os limites sejam irrisórios e acompanhados de prêmios também reduzidos. Essa realidade factual já existente – apesar da perpetuação do modelo ultrapassado, em tese não seria modificada e não pode, portanto, servir de justificativa para não ser tentada a modernização do modelo. O antigo e inicial RCOVAT (Seguro de Responsabilidade Civil Obrigatório de Veículos Automotores de Vias Terrestres), durou no país pouco tempo, sendo que ele garantia até mesmo os Danos Materiais. O mercado segurador nacional o transformou no DPVAT, com supressão da garantia dos Danos Materiais e da natureza de seguro de responsabilidade civil, cujo modelo estigmatizado e impróprio vigora até o momento, inexplicavelmente.

[16] GASPAR, Cátia Marisa. CHICHORRO, Maria Manuela Ramalho Sousa. A Valoração do Dano Corporal. 3ª Ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 22.

[17] POLIDO, Walter A. O estágio atual da cobertura para Danos Pessoais (Corporais) nos contratos de seguros de responsabilidade civil no Brasil. Novos danos e(ou) novos direitos. São Paulo: Roncarati e Conhecer Seguros, 2020. Disponível em e-book gratuito www.editoraroncarati.com.br; www.conhecerseguros.com.br; www.polidoconsultoria.com.br | POLIDO, Walter A. Danos Pessoais sofridos por empregados do segurado durante a circulação de veículos: aspectos jurídicos e técnicos das coberturas. In: TZIRULNIK, Ernesto. BLANCO, Ana Maria. CAVALCANTI, Carolina. XAVIER, Vítor Boaventura. (Orgs.) Direito do Seguro Contemporâneo. Edição Comemorativa dos 20 anos do IBDS. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 275-304.

[18] PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 808.