Coronavírus e o Contrato de Seguro
SUMÁRIO
Coronavírus e o Contrato de Seguro[1]
1. Introdução: riscos, seguros e resseguro
O seguro representa, na contemporaneidade, a ferramenta mais eficaz de transferência de riscos, até o momento criada pelo homem. Se, na fase que antecede ao seguro, o gerenciamento demonstrar a impossibilidade de o risco ser neutralizado ou mesmo extinto, a melhor alternativa será justamente a de transferi-lo para o seguro. Neste sentido, a preleção do professor Mendes: “o ser econômico racional tem a obrigação de se segurar, pois, o seguro tem por finalidade, exatamente, transformar as perdas aleatórias em simples despesas certas e previsíveis”[3]. A álea, de acordo com a definição reproduzida, está pautada tão somente no risco e, mais precisamente, no momento da incidência do evento danoso garantido pelo seguro, naqueles de natureza patrimonial, assim como nos seguros de pessoas (vida, saúde, acidentes pessoais). Em razão, também, de a garantia do seguro ter como objeto o “interesse” do segurado sobre o bem ou a pessoa, deixou de ter qualquer importância a diferenciação que existia estre um segmento e outro (seguros de danos e seguros de pessoas). Na pós-modernidade, a doutrina especializada propugna pela comutatividade do contrato de seguro, mesmo porque a prestação e a contraprestação das partes celebrantes são simultâneas e imediatas. O proponente paga o prêmio à seguradora e ela garante ao então segurado, desde logo, a indenidade - uma vez sobrevindo os eventos predeterminados durante a vigência da apólice. Todavia, não repousa apenas na materialização do sinistro a efetividade do seguro. O contrato oferece proteção ampla ao segurado: estado de segurança e de tranquilidade, além da sustentabilidade econômico-financeira, independentemente da ocorrência do sinistro.
A segurabilidade dos riscos está pautada na ciência relativa aos grandes números, guiada pela estatística e atuária, principalmente. A atividade seguradora, profissional, se desenvolve exclusivamente no campo do estudo das probabilidades, afastada a incerteza na operação, sendo que esta baseia o jogo e a aposta e não o seguro. A álea, na atualidade, centrada no risco, passa por processos de modelagens estatísticas e afins a tal ponto requintados, que permitem às seguradoras conhecer perfeitamente a exposição dos riscos ao longo dos anos e continuamente. Os sistemas eletrônicos atualmente disponibilizados para a análise e a projeção sistêmica dos riscos e dos resultados, são muito desenvolvidos e podem prover as seguradoras de margem de certeza quase absoluta nas suas operações.
Para consolidar esta introdução acerca da atividade seguradora na atualidade, emerge o contrato de resseguro, sendo necessário explorar dois aspectos sobre este modelo, extremamente complexo. Em primeiro lugar, compete definir o resseguro: através dessa operação, a seguradora (denominada “Cedente” neste tipo de negócio jurídico), transfere (cede) parte de suas responsabilidades assumidas através dos contratos de seguros a uma outra empresa, a resseguradora ou a várias delas, simultaneamente, de maneira proporcional ou não-proporcional. Este instituto, o resseguro, tem como função precípua indenizar a cedente, uma vez sobrevindo o sinistro[4]. Através dessa operação, as seguradoras adquirem várias vantagens: “a de maior capacidade de operação ou o aumento do volume de captação de negócios no mercado competitivo; substituição efetiva de capital (“surplus relief”); estabilização dos resultados por conta da homogeneização da sinistralidade; proteção contra riscos catastróficos; transferência de “know how” na subscrição de riscos (“underwriting”) e nos ajustamentos dos sinistros[5] (“claims handling”); outras”[6]. Em segundo lugar, é necessário ressaltar a internacionalidade do resseguro: a pulverização de riscos em âmbito global é salutar na medida em que minimiza a concentração de perdas em um determinado mercado doméstico, especialmente quando os riscos estiverem relacionados a catástrofes. Terremotos no Japão, no Chile e no México são exemplos de preocupações constantes encontradas naqueles países, sendo que programas especiais de seguros e resseguro são elaborados em face dos riscos inerentes. Furacões no Caribe, tornados nos EUA, enchentes em países europeus, são outros exemplos reincidentes[7]. Também endemias e até mesmo pandemias são passíveis de coberturas através do resseguro, como de fato acontece em vários países. Dessa forma, os contratos de resseguro, “protegem a Seguradora não somente contra o risco de perda individual, mas também contra eventos, catástrofes e acumulação”[8].
No Brasil, perdurou o monopólio estatal do resseguro de 1939 a 2007, sendo que a abertura se deu a partir da edição da Lei Complementar n.º 126, de 15 de janeiro de 2007. A cobertura de resseguro para catástrofes não teve evolução acentuada naquele período: o ressegurador monopolista oferecia a garantia para as carteiras dos seguros de pessoas, agrícolas e automóveis, mas não havia a preocupação, no tocante aos seguros de pessoas, com os riscos de endemias ou pandemias. Permaneceu, no período, apenas a garantia do resseguro para as coberturas clássicas e tradicionais: morte natural e acidental, sob o prisma de um mesmo evento poder atingir várias pessoas seguradas ao mesmo tempo. O mercado segurador nacional não se desenvolveu neste aspecto, mesmo após a abertura do resseguro, sendo que os maiores e mais importantes resseguradores internacionais já operam no país, desde 2007 ou mesmo antes disso como retrocessionários[9] do então ressegurador monopolista. A garantia para catástrofes, atualmente buscada pelas seguradoras do país, não difere muito do estágio que se observava no regime de monopólio do resseguro. As razões podem ser assim resumidas: a crença de que no Brasil não há eventos naturais; a falta de conhecimento das seguradoras locais sobre a cobertura e, na maioria das vezes, também pela ausência de bases estatísticas bem estruturadas; a busca pela garantia se dá apenas para aqueles riscos mais evidentes, assim como alagamentos que podem danificar vários automóveis e(ou) outros bens segurados por uma mesma seguradora e, no ramo de pessoas, eventuais acúmulos em decorrência de determinados eventos, como a queda de aviões. Não ficam totalmente isentos os demais países a respeito dessa situação de não cobertura de resseguro para os riscos de catástrofes, sendo que apenas diante de acontecimentos emblemáticos como o do coronavírus determinadas políticas e procedimentos acabam sendo alterados por alguns deles[10]. A mídia especializada internacional tem noticiado este tema em relação ao coronavírus e sobre os mais variados países e mercados de seguros. A reputação da indústria mundial seguradora e resseguradora, inclusive, está em jogo diante dessa pandemia que atingiu todos os mercados. Para um setor que “vende expectativa de proteção em momentos difíceis”, não poderá haver recuo, tampouco indefinições.
As seguradoras nacionais e também aquelas de capital estrangeiro, apesar de ter ocorrido a abertura do mercado de resseguro em 2007, continuaram a ofertar garantias de seguros tradicionais aos segurados brasileiros e não trouxeram, ainda, com raras exceções pontuais, outros modelos mais sofisticados, os quais elas comercializam nos respectivos países de origem. Este estágio atual do mercado de seguros brasileiro, pujante em produção de prêmios, mas não com a mesma medida em tecnologia de produtos securitários colocados à disposição dos consumidores, traz consequências num momento crítico como este, da pandemia do coronavírus. Do mesmo modo, a falta de conhecimento exato por parte das seguradoras locais acerca das funções do resseguro, propicia a inexistência de programas especialmente elaborados e visando a garantia de riscos de natureza catastrófica, os quais também acontecem no Brasil. Outro ponto que desfavorece a busca por programas de resseguro contra catástrofes, deixando de desenvolver o mecanismo garantidor, o fato de que grande parte dos desastres que ocorrem no país acabam atingindo as populações mais pobres, as quais não contratam seguros de nenhuma espécie e pela simples falta de recurso financeiro para tanto: desmoronamentos de encostas de morros com ocupações residenciais ilegais; alagamentos em várzeas de rios nas cidades, são os exemplos recorrentes. São questões que desafiam o mercado de seguros e que deverão passar por novo olhar a partir da pandemia do coronavírus e, necessariamente, também no tocante ao resseguro.
Sem esta introdução, a qual definiu as operações de seguro e de resseguro de acordo com os elementos essenciais de cada tipo de contrato, seria impossível retratar o tema objeto deste texto, no seguimento deste trabalho.
2. Questões concernentes ao tema seguros e coronavírus
Há, até o momento, clima de insegurança jurídica no tocante aos possíveis procedimentos que serão adotados pelas seguradoras em relação às apólices já em vigor, envolvendo os mais diversos ramos de seguros. Em face da pandemia do coronavírus, repise-se, estará em jogo também o aspecto reputacional do mercado de seguros no país e no mundo, uma vez que o sistema apresenta forte apelo de proteção social e, neste momento crucial e inusitado, todos os olhares estão voltados para a postura dos agentes que operam no setor. As seguradoras, mais especificamente os - produtos e serviços - oferecidos por elas, serão medidos com esta régua, firmemente. Todas as deficiências porventura existentes nas bases contratuais e que possam prejudicar a expectativa dos consumidores dos diversos tipos de seguros afetados, estarão muito mais expostas e em razão das especiais características do momento, de “aflição” e com prejuízos contabilizados para muitos. Parte considerável do questionamento que se apresenta para o tema pode ser resumida com as seguintes indagações:
As seguradoras, podem simplesmente recusar o pagamento de indenizações a título de exclusões pontuais porventura existentes nos contratos de seguros?
Ou elas podem, discricionariamente, desconsiderar a exclusão em razão do momento crítico representado pela pandemia, sem qualquer tipo de consequência em face da regulação à qual a atividade deve se submeter?
Quais são, efetivamente, os limites objetivos da atuação da iniciativa privada, positivados no ordenamento jurídico nacional?
A hermenêutica aplicável ao contrato de seguro, nessa situação pontual, pode variar para cada caso a ser analisado e dependendo, por exemplo, da (hiper)vulnerabilidade do segurado?
A exclusão para pandemia pode ser vista como uma cláusula “surpresa” ou “abusiva” em face dos segurados, consumidores hipossuficiente, na relação contratual securitária?
A seguradora pode alegar que não indenizará os segurados devido ao fato de que o contrato de resseguro não garante o risco de pandemia?
E os corretores de seguros, intermediários comissionados, podem ser responsabilizados pelo fato de que não indicaram para os proponentes-segurados apenas aquelas seguradoras que poderiam ter atendido adequadamente em relação à garantia dos riscos?
Quais os ramos de seguros mais expostos a este tipo de questionamento e de incidência de reclamações provenientes do coronavírus, enquanto fato gerador dos sinistros?
Os resseguradores podem ser acionados diretamente pelos segurados, na ausência de atendimento por parte das seguradoras?
No seguimento deste texto serão apresentadas as possíveis respostas para essas indagações e outras que porventura surgirem.
3. Coronavírus enquanto fato gerador de sinistros
São vários os aspectos que podem ser analisados e todos eles envolvendo situações que tangenciam os diferentes contratos de seguros. Podem ser verificados os elementos de natureza intrínseca relacionados àquele determinado objeto de cobertura do interesse segurado e sob o olhar da teoria geral dos contratos, envolvendo também o Direito consumerista e a regulação da atividade seguradora. Por outro lado, podem ser verificados em relação a situações extrínsecas ao contrato em si, mas que envolvem os agentes e a respectiva atuação de cada um deles, notadamente sob o viés da responsabilidade civil que permeia a atividade de intermediação. O resseguro, por sua vez, constitui negócio contratual apartado do contrato de seguro e deve ser analisado com base deste fator determinativo.
3.1. Ramos de seguros e a possível cobertura do risco
A eventual não cobertura para o atendimento de segurados contaminados pelo coronavírus e suas consequências parece estar fora de questão. No tocante à assistência inicial e pertinente à feitura do exame investigativo, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS se posicionou, desde logo, sendo que, em princípio, seria desnecessária a intervenção do Estado nessa questão, uma vez que cabia à iniciativa privada primar por suas responsabilidades perante os consumidores, sem mesmo este tipo de admoestação regulatória. De todo modo é sabido, mundialmente, que o “mercado de Saúde não está submetido ao jogo livre dos mercados, uma vez que existem várias regulações estatais que impedem em grande medida o pleno desenvolvimento das forças do mercado”[11]. O exame para detecção do coronavírus foi incluído no “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”, tornando-se, portanto, cobertura obrigatória para os beneficiários de planos de saúde com segmentação ambulatorial, hospitalar ou referência. A medida teve validade a partir de 13.03.2020 – data de publicação da Resolução Normativa nº 453, da ANS, no Diário Oficial da União. Interessa, neste tipo de intervenção estatal, o fato de que não se cogita se o preço do seguro cobrado dos aderentes-segurados poderá suportar ou não mais a parcela de risco compulsoriamente incluída e que deve ser considerada pelas operadoras. Na linha oposta, operadores do Direito têm questionado o fato de determinadas seguradoras virem a público declarar que desconsiderarão a exclusão da cobertura referente ao risco de pandemia nas apólices de Seguro de Vida, por exemplo, e justamente em razão de possíveis implicações regulatórias que poderiam proibir a medida e com sansões para a infratora. O momento de crise propicia, de fato, contradições lógicas e a ponto de não haver razoabilidade em determinadas declarações, mas que deverão passar por crivo mais acurado, e, muito provavelmente, em sede judicial.
O ramo Seguro de Vida será, juntamente com o Seguro Saúde, dos mais atingidos pela pandemia. Há, contudo, a controvertida questão da exclusão explícita dos riscos de endemia e pandemia, sendo que muitas seguradoras têm vindo a público anunciar que desconsiderarão a referida limitação contida nos contratos de seguro. Vozes contrárias também se levantam e com as mais diferentes justificativas: a exclusão deve simplesmente ser observada; a impropriedade administrativa dos dirigentes da seguradora ao acolherem a cobertura; o poder sancionatório do Órgão Regulador; o desequilíbrio das contas da seguradora, na medida em que ela não considerou o risco coberto quando da precificação do seguro; a determinação compulsória e extensiva a todos os demais ramos na hipótese de a seguradora oferecer tratamento permissivo para um determinado ramo; o reconhecimento da seguradora referente à cobrança de prêmio superestimado, uma vez que não previa a cobertura expressa para o risco; outros.
Todas essas justificativas devem ser analisadas individualmente à luz do Direito, assim como das demais áreas que compõem a atividade seguradora: atuária, contabilidade, matemática, investimentos e, neste caso específico, também os profissionais da saúde. Não há padrão único de aplicação, lembrando, prioritariamente, que o Seguro de Vida é o único contrato de seguro no qual o risco aleatório fica reduzido à data da morte, uma vez que há absoluta certeza sobre a ocorrência. Desse modo, as reservas matemáticas são específicas e levam, necessariamente, em conta também esta particularidade. Assim, pretender fundamentar o pretenso não pagamento da indenização por conta de o sinistro ter se dado em razão da pandemia, não se mostra plausível e sequer razoável. Há também, neste ramo, na formatação de seu preço, fator prevendo a possibilidade de ocorrer a antecipação da morte da pessoa segurada e este elemento é essencial nas considerações de natureza muito mais amplas e que devem ser observadas, abandonando-se, na condição de fator preponderante, a letra fria do contrato, a qual exclui o risco de pandemia. Desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor no Brasil, e sob a natureza de direito fundamental constitucional, o diálogo das fontes se tornou a metodologia hermenêutica vigente e requerida, sem retrocesso, tornando também possível a relativização dos contratos. O repertório jurisprudencial, neste sentido, é extenso.
Análises têm sido divulgadas pelas Agências de rating, assim como a Fitch, mostrando que no curto prazo haverá a deterioração dos mercados acionários e o declínio nas taxas de juros pressionarão os lucros, reservas e capital das seguradoras, notadamente nos segmentos de Saúde e Vida, cujos ganhos serão achatados pelo efeito direto dos custos elevados com os sinistros relacionados ao tratamento de pacientes infectados e pelas indenizações por morte, respectivamente. Essa é a natureza do mercado de seguros: tomar riscos e administrá-los da melhor forma possível, mas ficando sujeito a períodos bons e períodos ruins, conhecidos internacionalmente por “soft market” e “hard market”.
Para fechar este tópico, convém informar o volume de prêmios e sinistros recebidos/pagos no ano de 2019 pelo mercado de seguros brasileiro: “o seguro de vida movimentou R$ 43,1 bilhões, um crescimento de 14% em relação a 2018. O volume de indenizações pagas não chegou a R$ 10 bilhões. Neste ano, no entanto, a previsão é de alta significativa. Tanto por mortes, como também por inadimplência no crédito em bancos, operação que geralmente conta com um seguro prestamista[12] que é acionado em caso de não pagamento da dívida. Esse seguro tem um peso considerável nas seguradoras ligadas a bancos, que são as maiores do ranking do setor.”[13] Diante deste quadro numérico-financeiro, a preocupação já demonstrada por alguns operadores do Direito quanto ao dever de as Seguradoras “salvaguardarem a solvência do sistema, cuja mais grave ameaça é a quebra da base técnica-atuarial”, não parece corresponder à realidade e o argumento, que seria um pretenso filtro de impedimento, se rompe completamente. A base atuarial já levou em conta a morte de cada um dos segurados, inclusive. Considerando-se, também, que o Seguro Vida não é disseminado de forma abrangente na sociedade brasileira até o momento, ainda que a pandemia possa se apresentar catastrófica no país, mesmo assim não se vislumbra a pressão e o comprometimento anunciado em relação aos resultados das seguradoras que operam no país. Longe disso, parte significativa delas anunciou a renúncia ao risco excluído relativo a pandemias, sendo que o procedimento não só mantém o nome e a reputação das respectivas empresas, como também permite que elas cumpram o papel social que o seguro tem, notadamente em momento de crise como este, no qual todos os partícipes da sociedade são chamados a contribuir com o seu quinhão. O positivismo kelseniano do Direito, o qual prescinde do valor social das normas, jamais poderia contrariar esta posição empresarial tomada e os dispositivos normativos de natureza meramente administrativa, emanados do Órgão Regulador, jamais teriam, cumprida a hierarquia legal, o condão de justificar qualquer penalização às seguradoras. “Listas de Verificação”[14] da Susep, inclusive, foram derrogadas pela Lei n.º 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), redentora de parcela significativa do atraso tecnológico e normativo no qual o mercado de seguros nacional se situava. O mutualismo, por sua vez, princípio inerente à atividade seguradora, não pode servir de sucedâneo e tampouco pode ser utilizado de maneira reversa para a negativa, pura e simples, de pedidos de indenizações apresentados às seguradoras. A hermenêutica conclama e determina o olhar sistêmico do Direito, mesclado com as normas concernentes aos seguros, sob pena de ser prestigiada a injustiça, uma vez abandonado este critério. O princípio geral de Direito indicado no artigo 5º da LINDB[15], consolida este tópico: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
3.1.3. Seguro Fiança Locatícia
Este seguro, massificado na sua comercialização, tende a se tornar um dos protagonistas no ranking de reclamações de sinistros por conta da pandemia, apesar de determinações legais emergentes disporem sobre pagamentos de aluguéis e de certa forma beneficiando também as seguradoras. De toda forma, as condições contratuais brasileiras não são essencialmente objetivas e, por este motivo, podem gerar conflitos e possíveis questionamentos em sede judicial. Exemplo de risco excluído encontrado no mercado, nas Condições Gerais do referido seguro:
i) incapacidade de pagamento consequente de fatos da natureza ou atos do poder público.
Ou,
m) atos de autoridade pública, atos de hostilidade ou guerra, operações bélicas, revolução, rebelião, insurreição, confisco, tumultos, motins, greves e outros atos relacionados ou decorrentes destes eventos;
A interpretação a ser dada à exclusão pode se apresentar de maneira diversa. No caso de lojas em shoppings centers, por exemplo, há instrumentos legais de diversas esferas da administração pública e que efetivamente suspenderam as atividades comerciais. Mas mesmo assim, de que adiantaria o seguro se ele não oferecer proteção adequada ao locador no momento de crise? Para os imóveis residenciais, por sua vez, a subsunção à norma não é facilmente estabelecida, sendo que os inquilinos podem perder a capacidade financeira para cumprir os contratos de locação em decorrência das medidas adotadas pelo Poder Público.
Em outra apólice deste mesmo segmento, ela apresenta determinadas disposições contratuais que podem dificultar ainda mais o deslinde das questões que poderão surgir neste cenário. A seguir, a reprodução de uma das cláusulas que faz parte da apólice, sendo que há a obrigação de o Locador ingressar com a ação judicial contra o Locatário, sem que a seguradora indenize ou reembolse as respectivas despesas decorrentes, sob pena de perder o direito à indenização:
9. DA EXPECTATIVA DE SINISTRO
Considera-se como expectativa de sinistro o período que compreende o 1º (primeiro) aluguel ou encargos não pagos até a decretação de despejo através de sentença judicial. O Segurado deverá comunicar a inadimplência à Seguradora, imediatamente após o vencimento do 2° (segundo) aluguel e/ou encargos previstos na apólice, nos casos em que o Garantido deixe de pagá-los no prazo fixado no contrato de locação.
9.1. O Segurado obriga-se, sob pena de perder o direito a qualquer indenização, a providenciar e executar no tempo devido, todas as medidas necessárias a fim de minimizar os prejuízos, dando imediata ciência à Seguradora.
9.2. O Segurado deverá manter a Seguradora ciente da propositura e do andamento das ações judiciais e seguir suas eventuais instruções, sob pena de perda do direito ao recebimento de qualquer indenização.
9.3. Embora as negociações e demais atos relativos às ações judiciais ou procedimentos extrajudiciais com o Garantido sejam feitos pelo Segurado, a Seguradora poderá assistir tais negociações, quando julgar conveniente. O Segurado fica obrigado a fazer e permitir que se faça todo e qualquer ato que se torne necessário, ou possa ser exigido pela Seguradora, com o fim de efetuar-se a cobrança do débito. A intervenção desta e os atos relativos às negociações, não podem, em caso algum, acarretar-lhe maior responsabilidade do que as constantes dos limites previstos nas condições da apólice.
O Judiciário poderá interpretar que as determinações contidas na cláusula supra não se aplicarão em face das circunstâncias que envolvem o momento peculiar da pandemia, sendo que o seguro foi contratado justamente para a garantia do inadimplemento contratual, sendo este o seu objeto principal, a essência do risco coberto. A “cláusula 9”, particularmente a “perda de direito” especificada mais de uma vez no corpo do referido dispositivo contratual, e sequer sob a condição de “risco excluído”, na verdade desconstrói em grande parte a garantia essencial[16] mencionada no parágrafo anterior. Do mesmo modo, o clausulado não identifica se a Seguradora colocará à disposição do segurado os serviços advocatícios necessários, assim como as custas judiciais, para a persecução da ação de despejo, por conta dela, sendo que em princípio seria o procedimento mais adequado para a proteção efetiva daquele que tem o interesse no seguro. Simplesmente exigir do locador que interponha a ação de despejo logo no segundo mês da inadimplência, sem assumir as despesas correspondentes e, ainda, sob condição prévia taxativa para o reconhecimento posterior da cobertura do sinistro, pode ser visto como uma exigência excessivamente onerosa para com o segurado, descaracterizando a garantia essencial do contrato de seguro de fiança locatícia. Este entendimento sequer estaria condicionado ao fato da pandemia, ora em estudo neste texto, mas de ordem geral, desde sempre e para qualquer situação que se apresentasse diante de um clausulado com este tipo de determinação. Em função do fato representado pelo coronavírus, inclusive, o ordenamento jurídico nacional permite que seja feita a renegociação da dívida de aluguel, conforme a inteligência contida nos artigos 18 e 59 da Lei n.º 8.245/1991. Em face da importância deste assunto, repise-se, a necessidade de as apólices de fiança locatícia serem estruturadas de forma tal que possam apresentar, no âmbito das coberturas, também a assistência jurídica devida aos locadores em face do envolvimento judicial necessário para as ações de despejo, inerentes a este tipo de seguro. Simplesmente exigir a medida por conta e risco dos segurados não constitui, em princípio, um procedimento de boa formação técnica. Conforme Calmeiro, “o contrato de seguro tem de ser útil”[17] para quem o contrata. A onerosidade, sendo excessiva para com o segurado, pode e deve ser contestada, inclusive sob a regência do CDC, art. 51, inciso IV.
Impende, diante da discussão desse tema e em face da narrativa, apresentar a lição da professora Martins-Costa, quando ela lembra a todos que ”para a seguradora, que é a <<profissional do risco>>, há dever de informação acerca do objeto do contrato, das limitações e dos riscos não abrangido na cobertura, das circunstâncias ocasionadoras do pagamento da indenização, etc.”[18]. Questiona-se, então, se o seguro de fiança locatícia, com este tipo de cláusula limitativa, e uma vez dada a oportunidade de fato ao locador de conhecer os exatos termos da cobertura e as exigências requeridas, se ele manteria o interesse na contratação. Considerando-se, todavia, que na maioria das vezes o seguro é agenciado por imobiliárias e não por corretores de seguros profissionais, dificilmente as referidas circunstâncias são esmiuçadas.
3.1.4. Seguro de Lucros Cessantes
A questão que envolve este ramo de seguro, apesar de possuir forte conotação social neste momento de crise em relação à pandemia do coronavírus, não tem possibilidade de prosperar de maneira positiva para os segurados. Os clausulados do Seguro de Lucros Cessantes comercializados pelo mercado de seguros brasileiro, praticamente sem exceção, acobertam a referida garantia apenas quando consequente de danos materiais ou danos físicos sofridos pelos segurados, ou seja, quando os prédios e(ou) instalações também seguradas através de apólice de riscos de propriedades tiverem sofrido um sinistro decorrente de um risco coberto: incêndio, explosão, desmoronamento, colapso, alagamento, etc. Assim formulada, a apólice de Lucros Cessantes tem como pressuposto o dano material em primeiro plano, o qual não só danifica as propriedades, como também determina a paralização das operações empresariais. Com base nesses pressupostos técnicos do seguro, a inoperância proveniente da paralisia das atividades empresariais por conta do isolamento social, não constitui elemento para justificar o mecanismo indenizatório da apólice de Lucros Cessantes. Esta condição, inclusive, se apresenta de forma muito clara nos dispositivos contratuais, não podendo ser contestada sob este aspecto, uma vez que não apresenta lacunas, contradições ou dubiedades.
Em alguns países, há a possibilidade de o Seguro de Lucros Cessantes garantir também as perdas provenientes de outras situações que não apenas os danos materiais sofridos pelas propriedades seguradas, mas este fato não auxilia na construção de qualquer tipo de justificativa que possa obstruir o critério atualmente vigente no mercado de seguros nacional. Também naqueles outros mercados, mesmo os mais desenvolvidos, é comum a limitação da cobertura de Lucros Cessantes decorrente de danos físicos, sendo que a diferença em relação ao Brasil repousa no fato de que a ampliação para outros tipos de eventos é facilitada, uma vez submetido o pedido aos subscritores das seguradoras. Tema, inclusive, que necessariamente deverá ser objeto de tratativas entre os diversos agentes do mercado de seguros brasileiro, no período pós-coronavírus, e com vistas no aprimoramento das bases das coberturas atualmente praticadas e que demonstraram, incontestavelmente, obsolescência e nenhuma serventia em face da necessidade de maior amparo da garantia do seguro.
Segundo a Agência Moody’s, na “Alemanha, o seguro que protege as empresas também limita as compensações a riscos como incêndio, roubo, danos causados por elementos da natureza, mas não obriga a indenizar perdas ligadas a pandemias. Poucas empresas terão contratado a cobertura para risco de doenças transmissíveis, explica a Moody’s citando a autoridade local de supervisão Gesamtverband der Deutschen Versicherungswirtschaft (GDV)”[19]. A matéria se referiu ao seguro de lucros cessantes, objeto deste tópico. Diante desta constatação, até mesmo os países nos quais os mercados de seguros são mais desenvolvidos do que o brasileiro, foram todos surpreendidos pela pandemia do coronavírus. A Moody’s informou que também o Reino Unido, a França e a Suíça apresentam o mesmo cenário alemão e lembrou que diante do volume de reclamações de sinistros que se concretizará, a recusa do pagamento das indenizações correspondentes poderá malucar a reputação das grandes empresas de seguros e de resseguro europeias[20].
Verificando ainda mais as especulações que vêm ocorrendo nos países desenvolvidos e em razão da pandemia do coronavírus, constata-se que todos os tipos de seguros estão passando por filtros mais estreitos quanto ao real alcance das coberturas oferecidas pelas apólices vigentes. Discute-se, juridicamente, em outro nível de especulação, se a simples presença do coronavírus caracteriza ou não um dano material efetivo no âmbito das apólices que garantem riscos de propriedades. Perguntas abertas poderão despertar a necessidade de haver alterações na definição de “dano físico”[21], dependendo das decisões das cortes de justiça, quando o questionamento chegar até elas. Embora a maioria das apólices dos riscos de propriedades sejam omissas a respeito deste tipo de situação, algumas delas podem garantir, ainda que excepcionalmente, danos provocados por fungos, mofo e outras bactérias e, através deste tipo de abertura, pode-se chegar à conclusão que pelo fato de o coronavírus estar presente na propriedade segurada, o dano material estará estabelecido e com todos os reflexos dessa interpretação: cobertura para as despesas de descontaminação, por exemplo, assim como para as perdas financeiras e(ou) lucros cessantes decorrentes da paralisação das operações empresariais. A cobertura para as despesas com a descontaminação de fungos, bactérias e vírus pode ser encontrada, por exemplo, nos Programas de Seguros Ambientais nos EUA, país no qual o segmento é o mais desenvolvido mundialmente, e em alguns países da UE, com destaque para o centro internacional de seguros e resseguro que é a cidade de Londres[22], especialmente para estabelecimentos hospitalares. Diante da crise sem precedentes, não há dúvida de que muitas questões atualmente abertas em relação aos termos e condições dos clausulados das apólices vigentes serão colocadas em cheque e algumas delas até mesmo em sede judicial, dependendo do comportamento das seguradoras nos departamentos de análises de sinistros e também em razão do valor das perdas, que pode não suportar respostas simplistas e sem argumentos bem fundamentados.
Já se tem notícia, também, de que Seguradora no Brasil arcará com as perdas decorrentes dos lucros cessantes, nas apólices emitidas, até um determinado valor por segurado, mesmo as apólices prevendo apenas a garantia das perdas diretamente decorrentes de um dano físico. O ato representa a materialização máxima da função social do contrato de seguro em face da pandemia.
3.1.5. Seguro de Responsabilidade Civil Estabelecimentos Médicos e Odontológicos
Neste segmento, conhecido internacionalmente por Medical Malpractice Insurance, a garantia da apólice repousa na responsabilidade civil proveniente de erros ou omissões dos estabelecimentos e dos profissionais da saúde que neles atuam. Este seguro tem sido contratado em larga escala no Brasil nos últimos anos e a sinistralidade também tem se elevado, na medida em que a população reclama, cada vez mais assiduamente, e em razão não só do nível de consciência sobre os direitos que tem crescido, como também em função do elevado número de casos de sinistros consumados.
Com a crise estabelecida diante do número de pacientes acometidos pela contaminação do coronavírus, apesar do programa de isolamento social, a atuação dos profissionais da saúde se maximiza em relação às exigências e, em tais circunstâncias, as falhas podem acontecer com maior exposição. O seguro garante, ainda, as falhas e os danos causados aos pacientes em razão dos equipamentos utilizados nos estabelecimentos de saúde, os quais podem apresentar defeito, ou situações decorrentes do mal uso, por exemplo. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD (13.709/2018), também poderá ensejar algum tipo de dano aos pacientes, expondo ainda mais os estabelecimentos e os profissionais da saúde, com repercussões no Seguro RC Profissional, apesar de que os “danos morais”, na grande maioria das apólices brasileiras, somente se encontram garantidos se decorrentes de danos pessoais cobertos pelo seguro, salvo se a apólice dispuser, taxativamente, da cobertura para os chamados “danos morais puros”.
Questões relacionadas com a recusa de atendimento de pacientes, usualmente estão excluídas do escopo de uma apólice RC Profissional. A “mistanásia”, cujo termo denota a morte miserável, antes da hora, conhecida também como “eutanásia social”, não entra em discussão neste tipo de seguro, na medida em que a cobertura da apólice repousa nas consequências em si de um ato médico praticado, o que não é o caso na minastásia.
Neste seguro de RC Profissional, a “contaminação hospitalar” constitui um risco usualmente garantido pelas apólices.
Na mesma linha do Medical Malpractice, o Seguro de RC para o profissional autônomo garante as consequências das falhas profissionais do referido segurado, representadas por erros ou omissões no desempenho das suas atividades.
No Seguro de RC Síndicos, dentre os diversos tipos de seguros que garantem atividades profissionais, os síndicos podem se ver arrolados com questões do coronavírus, por exemplo pela ausência de vigilância adequada quanto ao cumprimento de normas determinadas pelos condomínios. São questões ainda desconhecidas, mas que podem surgir diante do quadro de crise e pelas circunstâncias um tanto quanto inusitadas.
Outras categorias profissionais podem apresentar também algum tipo de exposição em relação à pandemia em análise, mas muito remota a possibilidade, além dos tipos já retratados nominalmente neste texto. Situações antes não imaginadas, sendo que algumas delas podem ainda ser suscitadas futuramente, movimentarão os departamentos de sinistros das seguradoras e também os corretores de seguros, uma vez que esses profissionais serão chamados a responder por série de questões relacionados ao tema e sob a perspectiva de possível enquadramento na cobertura do seguro já contrato e vigente ou a ser contratado, dependendo do tipo de resposta que será apresentada ao interessado consulente. Nem sempre os produtos de seguros padronizados darão respaldo para as possíveis particularidades de cada interessado, mas nem por isso deixará de existir solução para o caso, requerendo a análise também especial por parte do corretor e da seguradora.
3.1.7. Seguro de Responsabilidade Civil de Diretores e Administradores – D&O
O D&O, em franco desenvolvimento no Brasil, não só em número de apólices emitidas e para os mais diferentes segmentos (empresas em geral – privadas e públicas; operadoras de fundos de investimentos; instituições financeiras; seguradoras; outras), mas também em razão do volume de sinistros reclamados, tem movimentado o mercado de seguros. No tocante ao risco representado pela pandemia do coronavírus, neste momento é ainda difícil estabelecer quadro completo das possíveis exposições dos administradores. De todo modo, em face também do isolamento social que a pandemia determinou, lembrando que a maioria dos empregados está atuando em home office, situações não antes ocorridas ou se foram, se apresentaram em grau de menor intensidade, agora estão maximizadas. Na projeção deste provável quadro, as possíveis violações de segredos e de direitos autorais; equipamentos (computadores e telefones) foram instalados às pressas, para viabilizarem acessos e a continuidade dos serviços; medidas e controles de segurança podem não ser possíveis com a mesma performance remotamente e diante de tamanha diversidade de locais de acesso aos sistemas; registros de utilização de cópias protegidas por copyright, etc. Todas as organizações de porte, particularmente aquelas que atuam em mercados regulados, passam por auditorias periódicas. Esses elementos poderão se tornar pontos de observação nas auditorias e relatados aos órgãos respectivos, com desdobramentos para os respectivos administradores e gestores.
No que concerne à responsabilidade civil dos administradores de Seguradoras, também sujeitos à garantia do Seguro D&O, algumas considerações podem ser projetadas, desde logo. Uma vez que não será ultrapassada de maneira simples e em curto espaço de tempo a questão relativa à discricionaridade que cada seguradora dispõe de fato para decidir sobre coberturas que se encontram taxativamente excluídas dos contratos de seguros, de Vida por exemplo, o D&O poderá ser acionado, invariavelmente. Acionistas minoritários, por exemplo, poderão questionar a deliberação dos administradores da Seguradora quanto à decisão de indenizar todos os sinistros reclamados, diminuindo a margem de lucro da empresa. Também o Órgão Regulador, de ofício, ao cumprir o seu papel fiscalizatório poderá fazer valer a sua competência e atribuição, por exemplo aplicando as sanções previstas[23] na Resolução CNSP n.º 243, de 2011 (dispõe sobre sanções administrativas no âmbito da atividade de seguro, cosseguro, resseguro, retrocessão, capitalização, previdência complementar aberta, de corretagem e auditoria independente no âmbito da Superintendência de Seguros Privados) e também nas disposições normativas advindas da Lei n.º 9.613/1998 (dispõe sobre os crimes de “lavagem” de dinheiro). A situação não poderá ser resolvida com base em sentimentos altruísticos ou mesmo sob o olhar de oportunidade em face da possível vantagem comercial que o procedimento representou, mas sim e, necessariamente, pautado no Direito subjacente. O pretenso Direito dos acionistas, por sua vez, embora possa passar pelas normas legais positivadas, cujo resultado seria, em princípio, muito mais cômodo e fácil de ser matematizado, encontrará toda a sorte de resistência na defesa. A mencionada Resolução do CNSP, retro, por exemplo, determina no art. 2º, inciso VI, § 3º que “não há infração quando o descumprimento de norma ocorrer por motivo de caso fortuito ou força maior devidamente comprovado”. Do mesmo modo, a Resolução prevê o arrefecimento da sanção quando não houver dolo (art. 2º, VI, § 4º). O seguro tem regras técnicas próprias e elas também devem servir de base, necessariamente, para a composição dos eventuais conflitos.
3.1.8. Seguro de Responsabilidade Civil de Corretores de Seguros e de Brokers de Resseguro
Embora aparentemente remota a possibilidade de os corretores de seguros e os brokers de resseguro serem acionados em face de suas respectivas atuações, neste texto todas as situações plausíveis foram elencadas e de modo a fecharem o círculo de riscos que a pandemia propicia no segmento de seguros. A eventual reclamação do segurado contra o corretor de seguros e sob a alegação de que ele não buscou o melhor alcance possível de cobertura para os riscos afetos, embora seja possível, não tem ainda no Brasil qualquer representatividade. De igual alcance, a pretensão da seguradora que contratou o broker de resseguro para a colocação dos seus contratos junto aos resseguradores e se sente lesada agora pela ausência de coberturas mais consistentes, inclusive da garantia para o acúmulo de sinistros provenientes de uma mesma causa (catástrofe). São situações que podem passar despercebidas neste momento no mercado de seguros brasileiro ou sem a postulação de possíveis direitos com base nelas, mas certamente deixarão de ser inconsistentes no futuro próximo, uma vez experimentado o prejuízo agora. No âmbito do resseguro e para a arquitetura das coberturas dos programas, tudo leva a crer que tanto os brokers, assim como as seguradoras passarão a ter maior cuidado e senso de observação sobre aquelas carteiras de seguros sujeitas a eventos catastróficos e propensos, a partir desses fenômenos, à acumulação de sinistros. Os corretores de seguros, por seu turno, deverão redobrar a atenção sobre as bases de coberturas dos diversos tipos de seguros, conforme as ofertas diversificadas feitas pelo mercado segurador. Os momentos cruciais como este da pandemia do coronavírus, determinam não só um olhar diferenciado e crítico sobre o status quo, como também sobre o porvir, necessariamente sem as mesmas falhas que forem detectadas agora. As exigências, em todos os níveis, galgarão outro patamar e, a partir dele, o mesmo grau para as respectivas responsabilidades dos atuantes no mercado de seguros.
3.1.9. Seguro de Crédito Interno e Externo. Seguro Garantia
Pautado na garantia do crédito em razão das vendas a prazo, o Seguro de Crédito Interno, em que pese o perdão da moratória, assim como a postergação dos prazos de pagamento que vêm ocorrendo, a inadimplência acentuada é esperada. No tocante ao Seguro de Crédito Externo, importadores de bens e serviços brasileiros também deixarão de cumprir os compromissos, redundando em grau expressivo de sinistralidade para os exportadores.
No Seguro Garantia, os clausulados das apólices não preveem explicitamente a exclusão de pandemias no caso de a obrigação segurada (de fazer; de entregar; de pagar) não poder ser adimplida. Há, em determinados modelos de apólices, a exclusão genérica para caso fortuito ou força maior. Essas figuras jurídicas, todavia, em tempo de anormalidade, podem ser relativizadas ou mesmo desconsideradas. Seja como for, discussões ocorrerão neste segmento, o qual presenta volume expressivo de contratações no país.
Vários outros tipos de seguros estão sendo atingidos, assim como o Seguro de Eventos - o qual prevê também a cobertura para as despesas decorrentes do cancelamento. Apresenta-se, neste caso, a emblemática transferência das Olimpíadas do Japão de 2020 para 2021; Seguros de Viagem; Seguro de RC Empregador – o qual estará especialmente exposto por conta da massificação do home office em caráter de urgência; Seguros de Riscos Cibernéticos[24] – em razão do mesmo motivo encontrado no Seguro RC Empregador, o fato de os empregados se concentrarem em suas respectivas residências e acessando remotamente os sistemas corporativos, pode aumentar o risco de ataques; Seguro de Responsabilidade Civil de Produtos – comercialização de novos medicamentos, além da responsabilidade dos fabricantes de EPI (equipamentos de proteção individual) em razão de possíveis defeitos de fabricação e(ou) inadequação dos produtos; Seguro de Testes Clínicos (Clinic Trials Insurance) – responsabilidade civil em decorrência de experimentos de novos medicamentos.
O contrato de resseguro não apresenta qualquer tipo de vinculação direta com os segurados e mesmo porque as partes celebrantes são Seguradora e Resseguradora. Este princípio, internacionalmente aceito, está normatizado na Lei Complementar n.º 126/2007, artigo 14º, com a seguinte redação: “Os resseguradores e os seus retrocessionários não responderão diretamente perante o segurado, participante, beneficiário ou assistido pelo montante assumido em resseguro e em retrocessão, ficando as cedentes que emitirem o contrato integralmente responsáveis por indenizá-los”. As relações e as responsabilidades decorrentes do resseguro são compartilhadas apenas entre as partes celebrantes. Diante dessa situação jurídica, os procedimentos que forem adotados pelas Seguradoras e que possam contrariar as bases dispostas nos contratos de seguros emitidos por elas, não serão automaticamente absorvidos pelos resseguradores, conforme os princípios e a legislação vigentes. Não há, portanto, solidariedade entre seguradora e ressegurador com base neste entendimento padrão, mundialmente acolhido. Aquelas seguradoras, portanto, que assumirem situações de coberturas extraordinárias de riscos que não estiveram presentes quando das negociações para a celebração do contrato de resseguro, assumirão integralmente o ônus desse procedimento.
No que se refere aos riscos de endemia e pandemia, concluindo, é relevante destacar que os contratos tradicionais de resseguro para os seguros de pessoas podem excluir expressamente essas situações, usualmente catastróficas e que requerem análises particularizadas para a eventual concessão de cobertura caso a caso.
Impossível ao Direito predeterminar a solução para todas as situações contratuais que emanam da sociedade, notadamente em razão de fato sem precedente como este da pandemia pelo coronavírus. Se não forem observadas as diversas fontes, a injustiça poderá ser prestigiada nesta hipótese, desconstruindo a base do Direito que visa, sob o domínio da equidade e da razoabilidade, a busca do justo. Na acepção sempre douta e contemporânea de Orlando Gomes, “para atingir o objetivo de racionalização jurídica da realidade social, o jurista constrói incessantemente”[25]. E o professor Junqueira de Azevedo colmata, lembrando a todos: “o paradigma jurídico, portanto, que passara da lei ao juiz, está mudando, agora, do juiz, ao caso. A centralidade do caso é este, o eixo em torno do qual gira o paradigma jurídico pós-moderno”[26]. Os diferentes contratos de seguro devem ser tomados sob esta ótica e sobre a finalidade precípua contida em cada um deles, sendo que também o ordenamento civil colabora para esta metodologia hermenêutica, ao determinar no seu artigo 112: “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem”. O contrato de seguro deve ser útil para quem o contrata e, havendo dubiedade ou lacunas nas bases contratuais, a interpretação deverá ser mais favorável ao segurado-aderente (art. 423, CC), prevalecendo ainda e necessariamente todos os demais elementos principiológicos contidos no Código de Defesa do Consumidor. Impende indicar, mais uma vez, e na condição de princípio hermenêutico fundamental estatuído pela LINDB, o disposto no artigo 5o: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
A iniciativa privada, neste particular as Seguradoras, são chamadas para colaborar com a respectiva cota nesta guerra contra os efeitos nocivos da pandemia do coronavírus. Atitudes que podem satisfazer os acionistas, podem redundar em mais tragédia para as pessoas seguradas, famílias inteiras. As seguradoras devem satisfazer os seus acionistas, mas elas também atribuem parcelas nos cálculos matemáticos que lastreiam a atividade-fim, na condição de custos administrativos, inclusive para o comissionamento de intermediários, além das remunerações internas para o pessoal de vendas e bônus para os executivos. Essas parcelas e outras podem ser pressionadas em tempos de crise. Nos seguros de pessoas, há ainda previsões matemáticas relativas a possíveis antecipações da morte dos segurados e, neste caso, especificamente, não haveria nenhum sentido técnico-jurídico em simplesmente negar o pagamento de indenizações aos beneficiários das vítimas do coronavírus, ainda que no texto das apólices se apresente a exclusão explícita para o risco de pandemia. A provável existência de “reservas ocultas” é outro fator que poderá ser utilizado a favor dos beneficiários neste momento crucial. Este tema já foi objeto de acirradas discussões em outros países já há algum tempo: “no momento existem reservas ocultas das companhias de Seguros de Vida, isto é, a diferença entre os valores contabilizados e o valor real do mercado dos capitais aplicados, de aproximadamente 25 bilhões de Euros. A Corte Suprema alemã deliberou num acordo doutrinário, que os clientes devem futuramente ter uma participação ‘apropriada’ e compreensível nas reservas ocultas, que, até o presente momento, foram completamente omitidas no cálculo de participação nos benefícios”[27]. Todas as reclamações de sinistros, portanto, deverão ser analisadas individualmente, cada qual com sua particularidade e à luz das bases técnicas subjacentes em cada ramo de seguro. A investigação, neste sentido, deve ser multidisciplinar, na medida em que a contabilização das contas, assim como a feitura das notas técnicas atuariais requerem conhecimentos especializados e que podem fugir do domínio dos operadores do Direito. Contadores, atuários, matemáticos e médicos devem atuar, simultaneamente e em conjunto, de modo a construírem as bases informativas para o possível reconhecimento de coberturas, diante de eventuais recusas injustificadas. Também os magistrados devem estar atentos a essas questões particularizadas, auxiliados por peritos especializados, sem açodamento nas decisões e com respaldo nos elementos ora indicados. A generalização e os paradigmas que foram utilizados até o momento, não mais condizem com a realidade do coronavírus. O mercado de seguros mundial não será, invariavelmente, o mesmo após a pandemia; o brasileiro tampouco.
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