Apólice de Reclamações com Notificações – conceito e aplicação. Os triggers das apólices RC, E&O, D&O e Ambiental
Entre os desafios encontrados nos seguros que garantem a obrigação reparatória da responsabilidade civil dos segurados está a caracterização da data efetiva do sinistro. Na sequência, a determinação da apólice que o indenizará, uma vez coberto pelo seguro contratado. Os riscos de natureza “long-term exposure” (longa latência), ou seja, quando o sinistro se materializar em consequência de um fato gerador que se prolongar no tempo, até a sua manifestação efetiva, devem ser especialmente considerados e avaliados nesse contexto.
De maneira a evitar conflitos intermináveis, os mercados de seguros, tecnologicamente maduros, desenvolveram alguns modelos de gatilhos (triggers) disparadores do mecanismo indenizatório para as apólices dos segmentos de RC e correlatos. Na verdade, eles foram desenvolvidos ao longo de décadas, especialmente nos EUA, a partir de necessidades pontuais, ora visando a maior proteção dos segurados, ora das Seguradoras e(ou) de ambos. Se para os segurados é importante e necessário dispor de mecanismo objetivo e preciso, preservando os legítimos interesses, também para as Seguradoras interessa a determinação de modelos efetivos e que permitam o conhecimento exato dos riscos em exposição e a projeção do comportamento deles, a partir da subscrição, no médio e no longo prazo. O fator IBNR (sinistros ocorridos, porém não conhecidos ou não reclamados) pode variar e muito, dependendo do modelo utilizado. Também a precificação dos seguros está relacionada a este fator, entre outros. Cada modelo existente foi desenvolvido para um determinado segmento, sendo que já foi testada e constatada a inaplicabilidade de um modelo único, considerando-se que nos primórdios todas as apólices RC eram comercializadas na “base de ocorrências” (trigger > apólice vigente na data da ocorrência do sinistro). Este modelo, portanto, não foi suficiente para atender à diversidade de riscos e situações encontradas nos seguros RC, E&O, D&O e Ambientais.
O mecanismo da apólice à “base de reclamações” (claims made) foi criado nos EUA nos anos de 1980, em razão dos mais variados conflitos judiciais que surgiram a partir de múltiplas demandas envolvendo sinistros de longa latência, sendo que o sistema tradicional de apólice à base de ocorrências não se apresentou eficiente diante das inúmeras questões que surgiram: qual apólice deveria indenizar os sinistros de RC Produtos envolvendo medicamentos utilizados ao longo de vários anos, assim como os sinistros com próteses de silicone, dispositivos intrauterinos, talidomida, entre outras tantas linhas de produtos comercializados. Do mesmo modo, surgiram questões relacionadas a sinistros envolvendo empregados que manipulavam amianto (asbesto) e também os sinistros envolvendo poluição ambiental e o resultado de erros e omissões no desempenho de atividades profissionais diversas. Diante da crise implantada, as Seguradoras tiveram de escolher entre deixar de oferecer os seguros de RC aos consumidores ou estipular novas bases de subscrição e que pudessem também oferecer garantia de controle para elas sobre as exposições dos riscos aceitos, com limitações objetivas. A segunda opção prevaleceu e a apólice claims made foi desenvolvida pelo ISO – Insurance Service Office, logo se espalhando para os demais mercados de seguros do mundo, inclusive o brasileiro[1].
A apólice de reclamações veio ao encontro dos anseios das Seguradoras, na medida em que elas precisavam não só delimitar as suas exposições diante dos riscos de longa latência, como também oferecer base contratual objetiva e que pudesse vincular uma determinada apólice para o pagamento das indenizações, sem qualquer dificuldade ou discussão a respeito. Nas apólices tradicionais de ocorrências, as Cortes de Justiça norte-americanas decidiram, no final dos anos 1970, pelo somatório dos LMI (limite máximo de indenização) relativos a um dado período de tempo e envolvendo várias apólices, sempre que nas ações judiciais restava dúvida sobre a data efetiva da ocorrência do sinistro. A decisão maximizou o volume das indenizações, mas prejudicou financeiramente muitas Seguradoras que não se encontravam preparadas para o cumprimento desse tipo de obrigação. A “claims made”, então, diferentemente da apólice de ocorrências, cujo gatilho disparador (trigger) do mecanismo indenizatório está centrado na data da efetiva ocorrência do sinistro, determinou que o gatilho seria disparado com a reclamação do terceiro prejudicado ao segurado, ao pleitear a indenização. Esse modelo, revolucionário no segmento dos seguros de RC, passou a ser utilizado largamente pelos mercados internacionais, inclusive o brasileiro, desde o final dos anos 1980. No mesmo período, o mercado norte-americano evoluiu o conceito da claims made tradicional, especialmente no segmento de Seguros Ambientais, uma vez que as apólices pertinentes não mais apresentavam apenas os contornos clássicos dos seguros de responsabilidade civil. Nos riscos ambientais, as apólices americanas passaram a conceder também garantias de coberturas relativas aos custos com a limpeza dos próprios locais de propriedade ou sob o controle dos segurados, atingidos por um sinistro de poluição. O mecanismo da claims made pura não teria como atender a essa especificidade do seguro ambiental, na medida em que não haveria a figura do terceiro reclamante e sim, e necessariamente, o próprio segurado. O gatilho, então, passou a ser duplo neste tipo de seguro específico: reclamação do terceiro ao segurado (claims made) e reclamação do próprio segurado à Seguradora tão logo ele tomasse conhecimento do sinistro (claims made + first manifestation or discovery / reclamações + primeira manifestação ou descoberta).
Determinados mercados internacionais, no tocante ao segmento de risco Medical Malpractice (Seguro de Risco Profissional ou E&O de Profissionais da Saúde), passaram a utilizar um novo modelo de trigger, também originado da claims made pura, com duplo mecanismo disparador: Reclamações + Notificações do Segurado. Esse tipo de apólice foi concebido com base nas seguintes situações pontuais:
Esse modelo atende perfeitamente ao segmento de E&O de Profissionais da Saúde, em face das particularidades da profissão médica, conforme ficou demonstrado no exemplo acima. Não significa afirmar, necessariamente, que o mesmo critério pode ser aplicado a toda e qualquer atividade profissional, indiscriminadamente.
Os triggers não foram criados de maneira aleatória, mas de acordo com as necessidades encontradas ao longo dos anos na subscrição dos seguros de RC, respeitadas as especificidades dos diversos segmentos de riscos. Cada categoria, portanto, enseja a aplicação de um determinado tipo de trigger, não existindo um modelo genérico que possa ser utilizado em todas as situações.
Os Subscritores e os Corretores de Seguros devem estar atentos e perfeitamente familiarizados com as particularidades de cada situação de risco, conforme o resumo a seguir:
Em RC Profissional de Empresas Projetistas de Engenharia, para exemplificar pontualmente, é inadequado o modelo Reclamações com Notificações, na medida em que o sinistro estará configurado sempre e quando o Segurado constatar o erro de projeto; não haverá, portanto, a fase prévia da “notificação” de um fato e na condição de o sinistro ser efetivamente configurado posteriormente. Uma vez constatado o erro de projeto, o sinistro estará objetivamente materializado, competindo ao Segurado “avisar” o sinistro imediatamente à Seguradora, nos termos do artigo 771 do Código Civil[2]. Diferente, portanto, daquela situação encontrada com o profissional médico que, uma vez errando no diagnóstico e descobrindo o seu erro posteriormente, notifica o fato à Seguradora. O sinistro não ocorreu, ainda, uma vez que não ficou constatada a lesão ao paciente, de pronto, podendo, até mesmo, não se materializar diante da mudança da terapia que fora aplicada inicialmente. Mas no E&O Empresas de Projetos de Engenharia, a mesma lógica não se aplica. São especificidades que precisam ser consideradas no underwriting dos diferentes seguros E&O, na medida em que elas são cruciais para a completa transparência e objetividade do acionamento do mecanismo indenizatório das respectivas apólices. Repise-se, não existe modelo genérico e único que possa atender a todas as categorias e situações de riscos, de maneira perfeita.
No Seguro E&O para Corretores de Seguros e(ou) de Resseguro, teria alguma justificativa o fato de o profissional descobrir a sua falha e nada fazer a respeito, ocultando a situação perante todos os interessados? Certamente que não, mesmo porque o corretor-segurado tem a obrigação de empreender todos os esforços possíveis no sentido de suprir a lacuna deixada pela sua ação ou omissão, de modo mesmo que o defeito na prestação do serviço, para o qual ele foi contratado pelo cliente, não produza nenhuma consequência danosa ao interessado. Então, se o corretor puder simplesmente “notificar” esse fato à Seguradora e manter-se inoperante diante do fato ocorrido, já justificaria a adoção do modelo “Claims Made com Notificações” para o seguro E&O da referida categoria? A resposta é negativa, de pronto. Nessa situação pontual, bastante diferenciada do erro de diagnóstico do profissional médico, a chance de a falha na prestação do serviço vir a causar uma perda financeira futura ao cliente do corretor-segurado pode e deve ser neutralizada diante do preenchimento possível da lacuna descoberta a tempo. O segurado, ao suprir a falha, simplesmente cumprirá a obrigação profissional que lhe cabe, pois que não lhe competia silenciar e aguardar o possível resultado de sua prestação de serviço defeituosa, sem qualquer ação imediata. Todavia, se ele não agir dessa forma e uma vez constatada a sua inação mais a frente, poderá incorrer no agravamento intencional do risco, perdendo o direito à garantia do seguro, conforme o disposto no artigo 769 do Código Civil[3]. Ainda, uma vez constatado o erro e ficando comprovado que a ação e(ou) omissão já resultou em perda financeira ao cliente, então o sinistro estará deflagrado, mesmo que o cliente (terceiro) não tenha apresentado, até aquele momento, o pedido de indenização. O seguro, importante relembrar sempre, deve ser útil para quem o contrata e a boa-fé objetiva, que permeia necessariamente a relação entre as partes, deve estar presente antes, durante e após a vigência do contrato, conforme o disposto nos artigos 422 e 765 do Código Civil brasileiro[4] [5].
Então, a conclusão que se pode chegar de forma instantânea, a partir da exposição conceitual da hermenêutica de uma apólice E&O, é que também para a categoria Corretores de Seguros e Resseguro, o modelo adequado para o trigger da apólice é o de “claims made pura”, sem a condição especial de “notificações”, a qual se mostra inapropriada ao caso. Esse raciocínio deve ser aplicado a cada uma das atividades profissionais, nos seguros E&O, sendo que dificilmente alguma delas escapará da lógica aqui apresentada em relação aos corretores de seguros e resseguro, com exceção dos profissionais da área médica (medical malpractice), já explicitada nesse texto. Subverter os critérios técnicos subjacentes a cada modelo de apólice não pode gerar benefício algum a qualquer uma das partes do contrato de seguro; longe disso, a adoção de um modelo inadequado pode propiciar um conflito e com possível judicialização, dependendo do caso e do valor envolvido, uma vez sobrevindo o sinistro. O mercado segurador brasileiro não pode se isolar dos demais mercados internacionais e criar situações anômalas não encontradas em outros países. As operações são cada vez mais globalizadas através do resseguro aberto, inclusive. Convém, portanto, adequar-se às bases técnicas que prevalecem nos mercados desenvolvidos e que foram criadas de acordo com as experiências adquiridas e muitas vezes em função dos malogros já vivenciados diante de modelos inadequados. Convém aprender com os erros e os acertos experimentados por outros mercados.
Em D&O também não há nenhum sentido prático na concessão de apólice Claims Made com Notificações, uma vez que esse mecanismo não foi estruturado para essa categoria de seguro. A apólice de reclamações pura constitui, sem dúvida alguma, o melhor modelo aplicável aos seguros D&O, assim como é utilizado nos mercados internacionais. As Seguradoras no Brasil, mesmo aquelas de origem estrangeira, não têm observado adequadamente essas especificidades técnicas e, ao misturarem todos os modelos e conceitos, acabam criando verdadeiros imbróglios, os quais têm gerado conflitos desnecessários por ocasião dos ajustamentos dos sinistros. Seria desejável, portanto, que as bases técnicas fossem observadas, readequando as práticas inapropriadas e que propiciam mais conflitos do que solução e proteção aos segurados.
A regulamentação da apólice claims made no Brasil
A Susep regulamentou a apólice de reclamações no Brasil, através da Circular nº 235, de 21.10.2003, muitos anos depois de o IRB-Brasil Re, então monopolista nas operações de resseguro no país, ter introduzido o sistema no mercado nacional no final dos anos 1980. Através da referida Circular, foram apresentadas também as disposições especiais para as apólices à “base de reclamações com notificações”, sem distinção de aplicação para esta ou aquela categoria de risco, fato que motivou a utilização desenfreada do modelo, sendo que o procedimento foge da prática internacional.
Na definição contida no Anexo II, art. 5º, da mencionada Circular, foram determinados os seguintes termos:
“A notificação deve ser apresentada durante a vigência da apólice, tão logo o segurado tome conhecimento do fato ou circunstância relevante, que possa acarretar uma reclamação futura, por parte de terceiros, nela indicando, da forma mais completa possível, os dados e particularidades do evento, tais como: [...].”
A “notificação”, portanto, não se apresentou de maneira discricionária para o Segurado, mas como obrigação, sempre que a apólice fosse emitida nessas bases. A Circular Susep nº 252, de 26.04.2004, revogou a 235/2003, mas nada alterou em relação às disposições especiais do modelo híbrido de reclamações com “notificações”. Em seguida, a Circular Susep nº 336, de 22.01.2007, revogou a 252/2004 e modificou as disposições especiais, mas manteve praticamente intacto o conceito inicial da 235/2003, assim como a compulsoriedade da notificação à Seguradora, tão logo o segurado tomasse conhecimento de fatos ou circunstâncias que pudessem acarretar uma reclamação futura. A Circular Susep nº 348, de 1º.08.2007, alterou a 336/2007, mas nada modificou a respeito das “notificações”. Mais recentemente, através da Circular Susep nº 437, de 14.06.2012, a Autarquia introduziu no mercado nacional as condições contratuais padronizadas do ramo Responsabilidade Civil Geral e, no contexto das referidas condições, foram mantidas as bases referentes à apólice de reclamações com notificações, conforme os termos da denominada Cláusula Específica nº 324. Do mesmo modo, outros dispositivos não sofreram modificações, como a definição de “Apólice à base de reclamações, com cláusula de notificações”, constante do glossário, item 25, das Condições Gerais, inclusive quanto à compulsoriedade da notificação pelo segurado. Não tipificando a aplicação da Cláusula Específica nº 324, as Seguradoras passaram a adotar o modelo para toda e qualquer categoria de risco não só do ramo RC Geral, como também em Riscos Profissionais e D&O, sem qualquer distinção pontual, sequer observando o padrão internacional vigente.
Com o advento da regulamentação do Seguro D&O no país, inicialmente através da Circular Susep nº 541, de 14.10.2016, a Autarquia indicou que as Seguradoras poderiam emitir as apólices na base de reclamações pura, cujo critério é o usual no mercado externo, mas também com a “Cláusula de Notificações”, conforme o disposto no item III, do art. 1º da referida Circular:
“Tipo especial de contrato celebrado com apólice à base de reclamações, que faculta, ao segurado, exclusivamente durante a vigência da apólice, a possibilidade de registrar, formalmente, junto à seguradora, fatos ou circunstâncias potencialmente danosos, cobertos pelo seguro, mas ainda não reclamados, vinculando a apólice então vigente a reclamações futuras que vierem a ser apresentadas por terceiros prejudicados (se o segurado não tiver registrado, na seguradora, o evento potencialmente danoso, e este vier a ser reclamado, no futuro, por terceiros prejudicados, será acionada a apólice que estiver em vigor por ocasião da apresentação da reclamação)”.
No dispositivo em destaque, ficou ressaltada a discricionariedade absoluta outorgada ao segurado pela Susep, no sentido de notificar ou não o fato potencialmente danoso à Seguradora, sem qualquer ônus diante da não notificação, diferentemente do critério que ainda prevalece nas demais Circulares da Susep, citadas nesse texto.
A discricionariedade admitida pela Susep não merece elogio, na medida em que, em tese, o dispositivo privilegia a omissão, contrariando o princípio jurídico concernente ao dever de comunicação imediata à Seguradora, o qual pode ser extraído do ordenamento positivo nacional, notadamente nos artigos 769 e 771 do Código Civil[6] [7]. A Circular Susep nº 553, de 23.05.2017, revogou a 541/2016, sendo que o disposto no art. 3º, III, manteve a mesma redação contida no instrumento revogado em relação à apólice de “reclamação com notificações”, cujo modelo tornou-se basicamente o padrão nacional.
Convém apontar que nos mercados externos, especialmente nos países desenvolvidos, não é este o modelo aplicado nas apólices D&O e tampouco no ramo RC Geral e mesmo nos Seguros E&O. Os princípios concernentes a cada um dos tipos de apólices são observados com exatidão e não por força simplesmente do rigorismo técnico, mas porque há efetiva inteligência em cada um deles e por isso mesmo eles foram criados. Aplicar um mesmo e único modelo na condição de “padrão genérico de apólice à base de reclamações com notificação”, sugere não só o desprestígio da conformidade técnica, ignorando as especificidades de cada modelo existente, como também determina possíveis pontos de conflitos, inclusive em sede judicial, para o possível deslinde das questões suscitadas.
Para o estudioso dos temas técnicos e jurídicos afetos aos seguros retratados nesse texto, torna-se perfeitamente transparente qual o melhor modelo para cada categoria de risco, distintamente. Todos os subscritores dos diversos segmentos que adotam esses modelos de apólices de reclamações e seus desdobramentos, devem conhecer os detalhes e de forma a não subverterem a ordem técnica subjacente a cada um deles.
Pode ser observado, ainda, no mercado brasileiro, a confusão que se apresenta na nomenclatura adotada para os diferentes modelos, especialmente em relação ao termo “notificação”, desde a tradução e a transposição dos clausulados estrangeiros para os modelos nacionais. O termo “notification”, original da língua inglesa encontrado nos clausulados internacionais e em diversos tipos de seguros (RC Geral, E&O, D&O, Ambiental) não equivale, necessariamente, ao termo “notificação” objeto desse texto e das Circulares da Susep. Aqui reside grande parte dos problemas e mesmo das assimetrias técnicas encontradas nos diversos clausulados nacionais. Essa questão é fundamental, portanto, e merece ser esmiuçada.
Nos wordings internacionais de D&O, por exemplo, os textos trazem praticamente o seguinte texto padrão:
No texto reproduzido não há qualquer equivalência entre o termo “notification” e a figura da “notificação de fatos ou circunstâncias” contida nos dispositivos das Circulares da Susep indicados nesse estudo. A “notification” apenas ressalta a obrigação de a reclamação efetiva do sinistro, apresentada pelo terceiro contra o segurado, ser avisada imediatamente à Seguradora ou em prazo não superior a sessenta dias, conforme os termos da cláusula em destaque. Trata-se, portanto, de apólice “claims made pura”, sem a referida extensão para as notificações de fatos e circunstâncias, prevista nas Circulares da Susep. O texto reproduzido constitui o padrão usual no mercado externo, sem exceções.
Ainda em relação ao Seguro D&O, pode ser encontrada a cláusula/definição a seguir, no mercado nacional:
Aviso de Sinistro: é a comunicação específica de uma Reclamação efetuada durante o período de vigência da Apólice ou que seja efetuada durante o Prazo Complementar ou Prazo Suplementar, desde que tenha sido notificada durante o período de vigência da Apólice e que o Segurado é obrigado a fazer à Seguradora com a finalidade de dar conhecimento imediato a esta da ocorrência do sinistro, visando evitar ou minimizar a extensão dos prejuízos.
Comentário: a definição se mostra confusa e ambígua, podendo prevalecer, no caso de conflito entre as partes contratantes, o disposto no artigo 423 do Código Civil[8]. Trata-se de mais um exemplo típico de tradução mal elaborada do texto original, usualmente estruturado sob outras bases técnicas e do Direito aplicável, repercutindo em desconformidades quando transpostas para as bases vigentes no Brasil e sem o cuidado de adaptação pontual de cada termo empregado. Da leitura do texto, depreende-se que a Seguradora apenas pretendeu aplicar o conceito de apólice claims made pura, nos moldes nacionais e com prazos complementar e suplementar determinados pela Susep[9], ressaltando que o Aviso de Sinistro deve acontecer “imediatamente”, tão logo o segurado tome conhecimento de uma reclamação efetiva. A cláusula, portanto, trata do sinistro já deflagrado e não de fatos ou circunstâncias que poderão ocasionar uma reclamação de sinistro futura. De toda forma, ao incluir a expressão “desde que tenha sido notificada durante o período de vigência da apólice”, o termo “notificada” fatalmente será relacionado com o conceito de “notificação” determinado pelas normas brasileiras e relativas à apólice de reclamações com notificações, o que de fato não representa, aparentemente, o objetivo da cláusula reproduzida. A Seguradora, repise-se, apenas pretendeu ressaltar a necessidade obrigacional de o Segurado avisar imediatamente o sinistro, a partir do momento que ele se tornou conhecido para ele. Na realidade, sequer seria necessário constar da referida definição contratual essa obrigação, na medida em que o ordenamento brasileiro já a determina expressamente, conforme o disposto no art. 771 do Código Civil[10]. De qualquer maneira, essa desinteligência redacional pode motivar conflitos e até mesmo ações judiciais, uma vez sobrevindo os sinistros. Fica evidenciado, também, que o Seguro D&O, repise-se, assim como é praticado no mundo todo, melhor se enquadra no modelo de apólice Claims Made pura, sem o mecanismo das notificações de fatos ou circunstâncias, o qual pode ser utilizado em outros tipos de seguros, mas não neste. Não é bom para o mercado brasileiro se isolar das práticas internacionais, especialmente em segmentos de seguros complexos como esses comentados neste texto, uma vez que há, inclusive, o inter-relacionamento dos negócios através do resseguro de âmbito internacional. Aquelas práticas domésticas que foram fartamente utilizadas e subsistiram ao longo dos setenta anos de monopólio do resseguro não podem mais prevalecer na contemporaneidade e de modo a permitir que o mercado segurador nacional se insira, de vez, no contexto internacional. A desconexão que antes era minimizada ou mesmo neutralizada em razão do ressegurador único, atualmente pode gerar conflitos desnecessários, na medida em que os resseguradores profissionais internacionais se baseiam e atuam no Brasil sob conceitos e linhas de underwriting praticadas universalmente. Para tanto, as bases técnicas consagradas mundialmente, e que não foram concebidas a esmo, devem ser observadas por todos os agentes do mercado nacional. Ainda que a Susep tenha aprovado o modelo de apólice à base de reclamações com notificações para o ramo D&O, não equivale a afirmar que as apólices devem ser subscritas apenas dentro dessas bases, as quais, repise-se, não encontram nenhum respaldo no mercado externo. Sequer a Autarquia determinou o modelo como condição única. Além disso, em razão de ter sido atribuída a discricionariedade para o segurado “notificar” ou não o fato ou a circunstância, o modelo descaracterizou, aviltando mesmo o mecanismo da apólice de notificações, além de não corresponder ao tipo ideal para o segmento de D&O. No mundo todo ele é operado na base Claims Made pura. Intriga, de toda forma, o fato de as Seguradoras aceitarem essa prática sui generis para o D&O, pois que apesar da discricionariedade atribuída ao segurado para notificar, este modelo implica na obrigação de todas elas reservarem percentual de IBNR considerável, na medida em que as apólices tornaram-se de longa latência quanto à possibilidade dos sinistros serem reclamados no futuro. Torna-se nulo, dessa forma, o bônus concedido pela claims made pura neste sentido, já que o IBNR é próximo de zero na concepção original do modelo. Este ponto, crucial na gestão da carteira de riscos que apresentam a característica de “long-term exposure”, parece passar ao largo das considerações das Seguradoras brasileiras e também em relação à precificação dos seguros, uma vez que as apólices claims made pura apresentam custos bem mais reduzidos nos primeiros cinco anos de vigência, se comparados aos do modelo tradicional de ocorrências ou de “claims made + notificações”. Todavia, se as Seguradoras estiverem considerando essa situação pontual sob o viés atuarial, então os segurados brasileiros de apólices “claims made com notificações” estarão, em princípio, pagando prêmios mais elevados, o que poderia ser evitado se as apólices fossem estabelecidas em bases claims made tão somente e com relação àquelas categorias de riscos que de fato comportam apenas este modelo, assim como o D&O e outros seguros de E&O.
Para completar a discussão acerca da discricionariedade da “notificação” em D&O, requer seja aventada a hipótese de o diretor-segurado constatar que não atuou positivamente em determinada situação pontual em face da exigência prevista na legislação vigente, deixando de corrigir o seu erro propositadamente e aguardando o provável desfecho da sua inércia. Seria correta a atitude do referido diretor? Ele poderia “notificar” o fato à Seguradora e ambos, Segurado e Seguradora, ficariam aguardando o resultado e a posterior e eventual reclamação dos acionistas prejudicados, sem qualquer ação imediata saneadora, conforme os contornos redacionais de uma apólice à base de reclamações com notificações? Certamente que não. É completamente ilógica a proposição aventada, uma vez que compete a todos os Segurados, nos termos da lei civil vigente, comunicar imediatamente o sinistro à Seguradora. Dificilmente ocorrerá fato ou situação que possa ser “notificada” previamente à Seguradora, sem que o sinistro D&O já não tenha potencialmente ocorrido. Nessa mesma linha, compete ao segurado empreender todas as ações que estiverem ao seu alcance e de modo a sanear a sua falha de gestão – ainda que extemporaneamente, neutralizando a materialização do sinistro propriamente dito, razão pela qual não cabe o modelo híbrido de trigger, conforme a regulamentação feita pela Susep e acolhida pelas Seguradoras, inexplicavelmente. Aquelas Seguradoras estrangeiras que também operam no Brasil e acolhem esse modelo híbrido, não atuam dessa mesma forma nos respectivos países de origem.
No mercado nacional são encontrados, ainda, vários modelos de apólices nos diversos tipos de seguros RC, E&O, D&O, Ambiental, com determinadas inconsistências redacionais e de aplicação dos triggers. Seguem alguns exemplos:
Em apólice E&O de Profissionais Médicos (Medical Malpractice):
Apólice à Base de Reclamações com Notificação: Aquela que se define, como objeto do seguro, o pagamento e/ou reembolso das quantias respectivamente, devidas ou pagas a terceiros, pelo Segurado, a título de reparação de danos, estipuladas por tribunal civil ou por acordo aprovado pela sociedade Seguradora, desde que: A) os danos tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice ou durante o período de retroatividade contratualmente previsto; B) o terceiro apresente a reclamação ao Segurado:
Outro modelo para E&O Estabelecimentos Médicos – Apólice Claims Made com Notificações:
Comentário: nos dois modelos reproduzidos, os termos determinam apenas a condição de apólice à “base de reclamações pura”, apesar de o título das condições contratuais indicarem o modelo misto de “reclamações com notificações”. No modelo pretensamente híbrido, indicado nos dois clausulados, a reclamação efetiva do terceiro prejudicado poderá ser apresentada até mesmo após o vencimento do prazo suplementar e de acordo com o prazo prescricional legal, a partir do conhecimento efetivo da lesão sofrida em razão daquele fato ou circunstância que tenha sido “notificado” à Seguradora durante os referidos prazos previstos nas cláusulas acima reproduzidas. Há, portanto, falha redacional em relação ao modelo indicado no título dos clausulados e nas bases contratuais. Esse tipo de inconsistência redacional gera conflitos desnecessários e que podem ser perfeitamente superados diante da alteração dos textos, pontualmente.
Nos Seguros de Riscos Ambientais específicos
Nos clausulados referentes a esse segmento, cuja subscrição e determinação redacional do contrato de seguro se mostram complexas, o modelo de apólice claims made com notificações, nos moldes criados pela Susep, não se apresenta adequado, sob qualquer hipótese. O fato de a apólice, notadamente para riscos industriais, garantir também eventos que têm como consequência perdas e danos ao próprio segurado, exige desdobramentos específicos: além da base claims made pura, a apólice deve acolher as reclamações de sinistros apresentadas pelo próprio segurado, tão logo ele descubra o sinistro ou este se manifeste para ele (discovery trigger ou manifestation trigger). As despesas com a limpeza dos próprios locais segurados, por exemplo, estão garantidas por esse tipo de seguro, assim como os lucros cessantes consequentes, também do segurado. O fato de os clausulados determinarem que os sinistros ou as expectativas de sinistros devam ser imediatamente “notificadas” à Seguradora, também nessa seara não equivale a afirmar que o termo “notificadas” tenha o mesmo significado de “notificação” contido nas Circulares da Susep, as quais regulamentaram o modelo de apólice de reclamações com notificações. Mais uma vez, as traduções literais que são feitas do termo “notification”, que na verdade tem a conotação de “aviso imediato do sinistro ou da reclamação recebida pelo segurado”, no contexto dos wordings estrangeiros, não equivale à “notificação” contida nas referidas Circulares da Superintendência. No mercado segurador nacional, contudo, tem prevalecido o entendimento equivocado a esse respeito, o qual tem também gerado conflitos no momento dos ajustamentos dos sinistros.
Quadro-resumo dos triggers e as respectivas aplicações:
Tipo de Apólice |
Trigger |
Aplicação |
Ocorrências |
Data da ocorrência efetiva do dano |
Categorias de riscos de RC cujos sinistros podem ser identificados imediatamente, a partir do evento. RC Operações; RC Guarda de Veículos de Terceiros |
Reclamações – Claims Made pura |
Data da reclamação do terceiro prejudicado ao Segurado |
Riscos de RC sujeitos à longa latência. RC Produtos; RC Empregador; RC Riscos Profissionais (E&O); Seguros D&O |
Reclamações e Notificações |
Data da reclamação do terceiro (eventos não conhecidos) e Data da notificação do fato conhecido pelo Segurado à Seguradora |
Modelo desenvolvido especificamente para a categoria E&O – Medical Malpractice |
Reclamações e Primeira Manifestação ou Descoberta |
Data da reclamação do terceiro (eventos não conhecidos) e Data do conhecimento do evento pelo Segurado |
Riscos de RC sujeitos à longa latência, sendo que o modelo foi desenvolvido especialmente para a categoria de Riscos e Seguros Ambientais específicos |
Ato Cometido |
Data da ação ou omissão do Segurado |
Esse modelo já foi utilizado para E&O, no exterior e também no Brasil, mas se tornou obsoleto com o surgimento da Claims Made[11]. |
Os Corretores de Seguros devem analisar as situações demonstradas nesse texto e possivelmente encontradas nas apólices vigentes dos ramos RC Geral, RC Profissional (E&O), D&O e Seguros Ambientais, em relação a todos os clientes-segurados e de modo a buscarem a alteração imediata das bases ofertadas pelas Seguradoras. Para os novos seguros, a observação dos pontos retratados nesse texto é de igual importância, sendo que os Corretores devem colocar os seus negócios, relativos aos ramos referenciados, apenas naquelas Seguradoras cujos clausulados não apresentem as inconsistências conceituais aqui retratadas.