Jaqueline-surryan Grande-1

Jaqueline Suryan

Jaqueline Suryan é sócia do Setor de Seguros e Resseguros do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper. Ela é membro do comitê de diversidade (“Comitê de Empatia”) do CMA e sponsor do grupo de afinidades LGBTQIA+ do escritório. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), possui mestrado em Direito do Estado pela mesma universidade e MBA em Gestão de Negócios de Seguros e Previdência Privada pela Fundação Instituto de Administração (FIA). De 2018 a 2021, atuou como Vice-Presidente do Grupo Nacional de Trabalho em Previdência Privada da AIDA. Ela é Diretora Jurídica e líder do pilar LGBTQIA+ do IDIS, instituto de diversidade e inclusão do mercado segurador brasileiro. Ela é autora do livro 'Os Planos de Saúde sob a Ótica Constitucional' e de diversos artigos e capítulos de livros do mercado, além de colunista da Editora Roncarati.

MARCELA-HILL-1

Marcela Hill

Marcella Hill é sócia e head do Setor de Seguros e Resseguros do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper, e co-head do Setor de Seguros da América Latina do DLA Piper. Ela é membro do Comitê Executivo do CMA, bem como de outros comitês internos consultivos do escritório. Ela também coordena a prática pro-bono do escritório e a Leadership Alliance for Women (LAW) do DLA Piper no Brasil. Ela é formada em Direito pela Fundação Álvares Penteado (FAAP), possui LL.M em Seguros pela University College of London e curso de extensão em Leadership in lawfirms pela Harvard University. Ela é autora de diversos artigos e capítulos de livros do mercado de seguros e resseguros nacional e internacional, além de colunista da Editora Roncarati.

Mariana Jardim

Mariana Jardim

Mariana Cavalcanti Jardim é Of counsel da área de Seguros e Resseguros do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper. Graduada em Direito pela UERJ, pós-graduada em Direito de Empresas pela PUC/RJ e mestre em Direito de Empresas e Atividades Econômicas pela UERJ. Professora de Direito Empresarial no CEPED-UERJ. Ela é autora de diversos artigos e capítulos de livros do mercado de seguros e colunista da Editora Roncarati.

Novos Desafios na Operacionalização do Seguro Garantia

Voltar
Jaqueline Suryan[1]
 
Marcella Hill[2]
 
Mariana Jardim[3]

No início do mês de julho foi colocada em consulta pública[4] uma minuta de circular da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) estabelecendo novas bases para a operacionalização do seguro garantia; proposta necessária face, inclusive, às alterações que o produto sofreu após a publicação da nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) e aos normativos recentemente editados pelos órgãos reguladores de simplificação da regulação securitária na busca por um mercado inovador, transparente e competitivo, como a Circular Susep nº 621/2021 e a Resolução CNSP nº 407/2021.

A minuta, cuja consulta pública foi encerrada no final de julho, guarda um viés principiológico e contribui para o amadurecimento do mercado por meio da consagração do princípio da liberdade contratual, na esteira da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). Também aparenta perseguir o resgate da confiança no produto de seguro garantia, por meio da redução da assimetria de tratamento entre segurado e seguradora e de uma possível maior participação do segurado na relação securitária.

Nesse cenário, a norma propõe alteração substancial no funcionamento do produto e, com isso, impõe uma série de desafios ao mercado. Para fins ilustrativos, agrupamos os principais desses desafios em quatro conjuntos:

(i) [des]vantagens da liberdade contratual no seguro garantia setor público;

(ii) diminuição dos deveres do segurado de atuar de acordo com a máxima boa-fé contratual;

(iii) possível desnaturação do seguro garantia; e

(iv) viabilidade, jurídica e fática, de um maior protagonismo do segurado na operacionalização do seguro garantia.

O primeiro desafio a ser enfrentado recai sobre antiga discussão sobre a (des)necessidade de existência de clausulado padrão no seguro garantia. O clausulado padrão vem sendo bastante utilizado nessa modalidade de seguro, sendo que, atualmente, está disposto na Circular SUSEP nº 477/2013, conforme alterada, como instrumento para o desenvolvimento do produto no mercado local, devendo funcionar como guia para as seguradoras na elaboração de seus produtos.

Contudo, percebeu-se que, dada a dificuldade para o registro célere de produtos junto à SUSEP, as seguradoras deixaram, paulatinamente, de desfrutar da pouca margem de liberdade de criação de clausulados e passaram a reproduzir as condições padronizadas quase que ipsis literis em seus produtos. E com isso, o mercado local viu reduzida sua capacidade de oferecimento de soluções individualizadas.

Na toada de modernização do mercado de seguros, os reguladores do setor têm, aos poucos, eliminado as condições padronizadas dos normativos, visto um cenário do mercado segurador nacional tido atualmente pelo regulador como maduro e almejando por inovação e por coberturas contratuais customizadas.

Em que pese a proposta mostrar-se extremamente proveitosa ao setor privado, ela pode gerar muita insegurança quando da operacionalização do produto para o setor público.

Tal como ocorre atualmente, a multiplicidade de produtos aliada à ausência de conhecimento técnico especializado em matéria securitária abre espaço para o estabelecimento de requisitos esparsos e específicos por entes diversos do Poder Público, principalmente no âmbito do seguro garantia judicial e fiscais. Essa realidade pode ser potencializada com a publicação de uma nova norma que sequer estabelece parâmetros objetivos básicos aptos a dar conforto ao segurado ente público.

É essencial que se enfrente antecipadamente a possibilidade de, nesse cenário, haver uma abundância de diretrizes infralegais emitidas por diversas autoridades, cada qual com peculiaridades próprias, e que não necessariamente deterão critérios tecnicamente corretos e/ou aplicáveis. Assim que, ao revés de se promover a expansão do seguro garantia nas novas bases da liberdade econômica, haja um ainda maior engessamento na sua utilização pelo setor público.

Outra dificuldade que deve ser avaliada com a minuta de normativo é a tentativa de retirar da seguradora a ingerência sobre a caraterização do sinistro, em um esforço para oferecer maior proteção ao setor público com base no histórico de longos procedimentos de regulação em sinistros de seguro garantia relacionado a contratações públicas. No entanto, a caracterização do sinistro é uma atividade-fim e inerente da seguradora, sendo que ao segurado, seja setor público ou privado, cabe apresentar informações e evidências do que entende que possa vir a ser um sinistro, cabendo, repita-se, exclusivamente à seguradora sua aferição.

Assim, nota-se que a ausência de particularização de tratamento normativo para os produtos setor público e setor privado esbarra também nas diferenças de operacionalização entre eles, especialmente porque algumas defesas que devem ser asseguradas para o Poder Público, em virtude dos interesses coletivos que sua atuação demanda, não fazem sentido quando analisamos o produto direcionado ao setor público.

O segundo desafio que se põe refere-se ao grupo de alterações propostas pela minuta que diminuem os deveres legais do segurado de atuar de acordo com a máxima boa-fé contratual e veracidade, o que inclui o dever de informar, constantes não só do Código Civil, mas que se estabelece como um dos princípios norteadores do direito securitário. Faz-se referência aqui às disposições dos artigos 10, §2º, e 16, §1º, da minuta, que autorizam a alteração de objeto do contrato ou obrigação principal sem comunicação prévia e anuência da seguradora, bem como dispensam a necessidade de comunicação de expectativa de sinistro à seguradora.

Reza o artigo 765 do Código Civil que “[O] segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”. A alteração das bases em que o contrato de seguro foi celebrado afeta diretamente o risco assumido pela seguradora e, portanto, sua obrigação disciplinada no artigo 757 daquele diploma legal; ao passo que a não notificação dessa alteração à seguradora macula a essência daquela relação contratual forjada com base na máxima boa-fé, violando o mencionado artigo 765. Questiona-se, assim, a legalidade da pretensão da minuta em consulta pública de alterar – ou abrandar – princípio norteador do direito securitário, insculpido no Código Civil, sob o argumento de proteção do segurado.

Além do acima, destaca-se a aparente direção à desnaturação do seguro garantia com essa minuta de norma. Mas antes precisamos, de maneira breve, lembrar alguns conceitos importantes do seguro garantia.

Como é sabido, o seguro garantia abrange uma relação tripartite, o que o diferencia de grande parte dos demais seguros. Há uma relação anterior estabelecida entre duas partes de uma obrigação (credor e devedor) e, quando contratado o seguro garantia, essas mesmas partes integram duas outras relações: entre credor (agora, segurado da apólice) e seguradora; e entre seguradora e devedor (agora, tomador da apólice).

Apesar de a obrigação da seguradora ter origem mediata na relação primeira/principal entre credor e devedor, ela é independente daquela. A seguradora assume, quando da aceitação do risco, obrigação própria, nos exatos termos da apólice. Tanto o é que o inadimplemento da obrigação principal não é capaz de gerar, necessária e automaticamente, a obrigação de indenizar da seguradora. Para tanto, é necessário que o prejuízo do segurado seja parte do objeto da apólice, que não sejam verificadas exclusões ou causas de perda de direito etc. Por outro lado, um inadimplemento do devedor no âmbito da obrigação principal pode gerar responsabilidade contratual àquele, ainda que não haja cobertura na apólice.

Ocorre que a redação proposta trouxe disposição que poderia gerar dúvidas ou interpretações duvidosas ao dispor que o “Seguro Garantia é um contrato vinculado ao objeto principal”, o que seria incompatível com a natureza jurídica securitária do referido seguro. Lembra-se aqui que, diferentemente da fiança bancária, o seguro garantia não é marcado pela acessoriedade. É negócio jurídico autônomo que guarda apenas relação com a obrigação principal garantida, não sendo vinculadas.

Outro ponto de atenção na minuta é a possibilidade de sua mutação, no limite, em um produto do tipo all risks com prazo indeterminado, como poderia ser interpretado da leitura dos artigos 5º e 7º, §1º. A minuta também aparenta afastar a seguradora do processo de regulação de sinistro ou, como se refere, aos “trâmites e critérios para comprovação da inadimplência” que fariam parte das regras do objeto principal e seriam de responsabilidade do segurado.

Aqui fica a impressão de que, na tentativa de se resolver um entrave prático oriundo da conjugação da falta de clareza das condições contratuais, do escasso conhecimento do produto pelos segurados e dos morosos processos de regulação de sinistro, pode-se acabar por desnaturar o próprio produto que se intenta fortalecer e disseminar.

Outra característica marcante na minuta em consulta pública é a aparente inversão de papéis entre seguradora e segurado na condição de controladores do risco e reguladores do sinistro. Isso pode ser interpretado, por exemplo, na definição ao segurado dos “poderes” para determinação do valor da garantia, nos termos do artigo 6º, o que esbarra em diversas questões, inclusive de disponibilidade e capacidade do mercado. Essa inversão pode também ser notada no que se refere à concorrência de garantias (e não de apólices), quando caberá ao segurado definir a maneira de execução delas; situação em que o regulador parece ter caminhado bem.

A preocupação recai sobre a disposição do §1º do artigo 20 da minuta, que permite ao segurado decidir sobre a forma de cumprimento da obrigação da seguradora quando verificado um sinistro na apólice. O caput do artigo, de maneira similar à regulamentação em vigor, mantém o mecanismo de a seguradora executar o contrato de seguro por meio de pagamento em dinheiro da indenização ou cumprimento, por conta própria, das obrigações garantidas remanescentes.

Ocorre que a escolha deve caber à seguradora, salvo quando se trata de step-in definido em edital de licitação regido pela Nova Lei de Licitações. Está-se diante de uma obrigação alternativa que, por meio do exercício de um direito potestativo, se concentrará e se tornará simples e determinada: nos termos do artigo 252 do Código Civil, “nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor, se outra coisa não se estipulou”. Mudar essa dinâmica, impondo à seguradora executar o objeto da obrigação garantida, pode ter o efeito reverso do pretendido pelo regulador, retraindo o mercado, levando a maior seleção de riscos e a diminuição da capacidade/interesse de subscrição.

As reflexões aqui colocadas não têm por objetivo ir na contramão da elaboração de normativos principiológicos e modernos. Pelo contrário, entendemos que, de fato, esse é um grande avanço dos reguladores e demonstra o reconhecimento da maturidade do mercado (res)securitário nacional e da necessidade de o Poder Público empregar seus esforços na promoção de um ambiente normativo de transparência e cooperação entre todos os entes.

De qualquer forma, o combate às condutas predatórias e desabonadoras da própria operação securitária não pode significar desrespeito às bases do contrato de seguro, integradas nos princípios gerais de direito securitário, nas disposições legais e na prática internacional da atividade, sob pena de colocar em risco a estabilidade e perenidade do mercado (res)securitário nacional.

Convida-se, assim, o leitor a refletir sobre os temas acima pensando no desenvolvimento dos produtos, em sua função social e na necessidade imediata de modernização do mercado brasileiro.


[1] Sócia da área de Seguros, Resseguros, Previdência e Saúde do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper. Graduada em Direito pela PUC/SP, mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e MBA em Gestão de Negócios de Seguros e Previdência pela FIA/SP. Reconhecida como Next Generation Partner em seguros pela The Legal 500 (2017 a 2019), recomendada em Seguros pela Análise Advocacia 500 (2018 a 2020) e reconhecida como Mais Admirada em Seguros, Cível e Operações Financeiras pelo Análise Advocacia Mulher.

[2] Sócia da área de Seguros e Resseguros do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper, responsável pelo Brazilian Desk do escritório em Londres e líder do taskforce de Sustentabilidade e ASG do escritório, especialmente no que tange ao impacto no setor de Seguros. Graduada em Direito pela FAAP/SP e LL.M em Direito de Negócios pela Universidade College London. Ranqueada pela Acritas como Star Lawyer (2018 a 2020) e recomendada no setor de Seguros pela The Legal 500 em 2018.

[3] Of counsel da área de Seguros, Resseguros, Previdência e Saúde do Campos Mello Advogados in cooperation with DLA Piper. Graduada em Direito pela UERJ, pós-graduada em Direito de Empresas pela PUC-Rio e mestranda em Direito de Empresas e Atividades Econômicas pela UERJ. Reconhecida no The Legal 500 Latin America como up-and-coming associate da prática de seguros (2012).

[4] Edital de Consulta Pública nº 24/2021.