Cooperativas de seguros e mútuas: grandes mudanças a um passo da sanção presidencial
Marcella Hill, Jaqueline Suryan e Mariana Jardim
Nos últimos meses parece que o holofote legislativo se voltou ao mercado de seguros brasileiro. Não bastasse a aprovação da Lei nº 15.040/2024, o novo marco legal de seguros (em vigor a partir do final de 2025), foi aprovado pelo Senado Federal no dia 17 de dezembro o Projeto de Lei Complementar nº 143/2024 que propõe alterar diplomas vigentes de modo a disciplinar as operações da mútuas de proteção patrimonial e o funcionamento das cooperativas de seguros. O projeto, originalmente apresentado na Câmara dos Deputados pelo ex-deputado Lucas Vergílio sob nº 519/2018, tramitou em regime de urgência, e segue agora para sanção presidencial.
O tema das mútuas é bastante polêmico, porquanto até então sua legalidade era questionada.
A existência das mútuas é contemporânea ao surgimento das seguradoras. Como maneiras de repartição de riscos de forma mais organizada, os dois modelos se desenvolveram pelo mundo de maneiras distintas. No Brasil, seu funcionamento teve acolhida no Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/1916)[1], tendo suas bases delineadas no Decreto-Lei nº 2.063/1940[2]. Esse formato vigorou até 1966 quando, com a publicação do Decreto Lei nº 73/1966, restringiu-se às sociedades anônimas e às cooperativas as operações de seguros privados no País, ficando destinados a essas últimas unicamente os seguros agrícolas, de saúde e de acidentes do trabalho.
Apesar de terem sofrido retração inicial, tanto por questões de forças de mercado quanto da legislação, as mútuas não deixaram de existir. Com base no princípio constitucional de liberdade de associação, de sua expressa exclusão do âmbito de aplicação do Decreto-Lei nº 73/1966[3], na licitude de se firmar contratos atípicos propagada pelo Código Civil atual[4] e nos princípios da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), os defensores das mútuas advogavam a tese de sua permissão legal e elas continuaram a seus negócios.
Em determinados setores, como da proteção veicular, as mútuas adquiriram grande capilaridade, ocupando um gap deixado pelo mercado segurador. Se, por um lado, as mútuas passaram a atender o consumidor com um perfil de risco menos atrativo, oferecendo condições comerciais mais benéficas do que as seguradoras, por outro vivenciou-se a disseminação de uma atividade que acabava por lidar também com poupança popular sem qualquer fiscalização e a multiplicação de danos aos consumidores que acreditavam ter contratado um seguro, com todas as garantias de higidez e proteção que esses produtos carregam.
A atuação dessas entidades chamou atenção da Superintendência de Seguros Privados – Susep[5] que, com base no artigo 113 do Decreto-Lei nº 73/1966, há alguns anos combate o chamado mercado marginal em conjunto com a Procuradoria Federal a ela dedicada[6].
O Supremo Tribunal Federal tem também se posicionado sobre o assunto, declarando inconstitucionais as diversas leis estudais que permitiam a atuação das associações de socorro mútuo e associações e cooperativas de autogestão de planos de proteção contra riscos patrimoniais, como fez com as leis do Rio de Janeiro (Lei nº 9.578/2022), Goiás (Lei nº 20.894/2020) e Minas Gerais (Lei nº 23.993/2021).[7]
Se sancionado como tal, o Projeto de Lei Complementar nº 143/2024 alterará a disciplina legal corrente, permitindo a atuação das sociedades de proteção patrimonial mutualista e alargando a atuação das cooperativas de seguros para todos os ramos, salvo os expressamente excepcionados pela regulamentação.
Objetiva-se principalmente a alteração do Decreto Lei nº 73/1966 de modo a que ele passe a disciplinar as atividades das mútuas (sentido lato). As principais preocupações dizem respeito à (i) preservação da liquidez e solvência dessas entidades, (ii) proteção e defesa dos consumidores, (iii) confirmação da competência legislativa da União para tratar do tema, legislando e fiscalizando o mercado, (iv) integração das entidades autorizadas a operar no mercado de proteção patrimonial mutualista no Sistema Nacional de Seguros Privados, (v) possibilidade de cobrança como título executivo extrajudicial das prestações relativas ao rateio mutualista de despesas em operações de proteção patrimonial mutualista, (vi) submissão das operações das mútuas à disciplina do Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP e à fiscalização e penalidades da SUSEP, e (vii) observância, na aplicação dos instrumentos de supervisão, do princípio da proporcionalidade levando-se em conta o porte, a natureza, ao perfil de risco e a relevância sistêmica da entidade.
Cria-se a figura das administradoras de operações de proteção patrimonial mutualista, via de regra, não sujeitas à recuperação judicial, recuperação extrajudicial ou falência, que deverão ser constituídas sob a forma de sociedade por ações, ter como objeto social exclusivo a gestão da operação de proteção patrimonial mutualista e obter a prévia autorização de funcionamento e para a posse de administradores junto à SUSEP.
Com o fim de mitigar os efeitos deletérios das atividades atualmente já desempenhadas pelas mútuas não regulamentadas, o diploma propõe: (i) a concessão de prazo de 180 (cento e oitenta) dias da sua publicação para efetuarem o cadastro perante a SUSEP ou cessarem as atividades; (ii) a outorga de benefícios com relação aos processos administrativos sancionadores em trâmite, que vão desde a sua suspensão até o arquivamento sem análise do mérito e aplicação de penalidades; (iii) a suspensão da exigibilidade ou o perdão de multas pecuniárias aplicadas pela SUSEP e ainda não pagas; (iv) a suspensão e até extinção de eventuais ações civis ajuizadas pela Procuradoria Geral Federal como representante da Susep; e (v) a extinção de punibilidade dos dirigentes e dos gestores dessas entidades com relação ao crime de fazer operar, sem a devida autorização, instituição financeira (art. 16 da Lei nº 7.492/1986), estando todos essas benesses atreladas à regularização das atividades das entidades nos termos da nova lei.
A legalização das atividades das operações de proteção patrimonial mutualista não trará apenas competências (e deveres) adicionais para a SUSEP, mas também possibilitará a cobrança de taxa de fiscalização, como proposto no projeto de lei com a alteração do artigo 48 da Lei nº 12.249/2010.
Os corretores de seguros também sentirão os efeitos dessas alterações, pois estarão autorizados a atuar na intermediação para a angariação e promoção dos contratos de participação em grupo de proteção patrimonial mutualista; sendo-lhes vedado – e aos sócios e diretores de corretor de seguros pessoa jurídica - manter relação de emprego ou ser administrador de sociedades cooperativas de seguros, administradoras de operações de proteção patrimonial mutualista ou associações a que esses grupos estejam vinculados, tal qual ocorre atualmente com relação às seguradoras.
Para o mercado ressegurador, incluindo os brokers, surge uma possibilidade de novo parceiro comercial, já que se propõe a pulverização dos riscos das entidades autorizadas a administrar operação de proteção patrimonial mutualista e das sociedades cooperativas de seguros por meio de resseguro.
Se editada a lei, caberá ao CNSP e à SUSEP realizar esforço conjunto regulamentador da atuação dessas entidades, ao mesmo tempo em que se prepara para o início de vigência no final do próximo ano da Lei de Seguros. Ao que tudo indica, 2025 será um ano movimentado para o mercado de seguros nacional.
[1] Art. 1.466. Pode ajustar-se o seguro, pondo certo número de segurados em comum entre si o prejuízo, que a qualquer deles advenha, do risco por todos corrido. Em tal caso o conjunto dos segurados constituem a pessoa jurídica, a que pertençam as funções de segurador.
[2] Art. 1º A exploração das operações de seguros privados será exercida. no território nacional, por sociedades anônimas, mútuas e cooperativas, mediante prévia autorização do Governo Federal.
Parágrafo único. As sociedades cooperativas terão por objeto sómente os seguros agrícolas, cujas operações serão reguladas por legislação especial.
[3] Art 143. Os órgãos do Poder Público que operam em seguros privados enquadrarão suas atividades ao regime dêste Decreto-Lei no prazo de cento e oitenta dias, ficando autorizados a constituir a necessária Sociedade Anônima ou Cooperativa.
§ 1º As Associações de Classe, de Beneficência e de Socorros mútuos e os Montepios que instituem pensões ou pecúlios, atualmente em funcionamento, ficam excluídos do regime estabelecido neste Decreto-Lei, facultado ao CNSP mandar fiscalizá-los se e quando julgar conveniente.
[4] Art. 425, Código Civil. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.
[5] Ver nota de esclarecimento emitida pela autarquia de que proteção veicular não corresponde a seguro de automóvel: https://homolog2.susep.gov.br/menuatendimento/assoc_coop.asp. Acesso em 23 dez. 2024.
[6] Art. 113. As pessoas naturais ou jurídicas que realizarem operações de capitalização, seguro, cosseguro ou resseguro sem a devida autorização estão sujeitas às penalidades administrativas previstas no art. 108, aplicadas pelo órgão fiscalizador de seguros, aumentadas até o triplo.
[7] STF. ADI 6.753 / GO, Relator Min. Gilmar Mendes, DJe 27 jun. 2023; STF. ADI 7.151, Relator Min. Gilmar Mendes, DJe 19 maio 2023; STF. ADI 7099, Relator Min. Edson Fachin, DJe 24 ago. 2023
Em dezembro de 2024