Irapua Beltrao

Irapuã Beltrão

Procurador Federal da AGU e Bacharel em Direito pela UERJ, com pós-graduação em 'Direito Econômico' pela FGV/RJ e 'Direito do Estado' pela UERJ, Master of Law (Insurance Law) pela University of Connecticut e mestrado e doutorado pela Universidade Gama Filho. Atua ainda como professor universitário e de cursos de extensão e pós-graduação. Autor de diversas obras de Direito Tributário, Regulação e Seguros e articulista e colaborador de diversos sites jurídicos, com diversos artigos publicados por diversas revistas.

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Seguro, pandemia e os desafios jurídicos

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Não há dúvidas de que a pandemia e os últimos dois anos trouxeram desafios jurídicos para os mais diversos campos, negócios e relações sociais. Mas, igualmente não se pode desconhecer que os contratos e a atividade de seguro estão entre os segmentos com grande destaque dentre os desafios jurídicos decorrente dos tempos pandêmicos.

E não poderia ser diferente: é da mais natural estrutura das condições gerais dos seguros objetivar uma delimitação clara das coberturas, seja com cláusulas de inclusões e riscos cobertos, bem como das exclusões. Tanto como situações de guerra e outras situações extravagantes a situação de epidemia ou de pandemia era mais do que cláusula corriqueira nas mais padronizadas condições gerais das mais diversas modalidades de seguro.

Mas, já nos primeiros momentos da pandemia aquela cláusula de exclusão foi posta a prova diante das pressões sociais sobre as sociedades seguradoras aqui e no mundo. Logo naquele primeiro momento situações decorrentes dos seguro-viagem foram afetadas pela situação, com um grande número de pessoas que foram impedidas de retornar para as suas cidades, ou mesmo de completar o seu planejamento inicial. E a pressão social – em detrimento ao simples cumprimento das condições contratuais – somente foi aumentando, com as inevitáveis consequências nos seguros e planos de saúde, nos seguros de vida e em outras formas de seguro de pessoas.

Se naquele primeiro momento a eventual solução foi afetada por aquela pressão social natural, com o tempo o debate jurídico impôs novos prismas de interpretação das históricas condições contratuais, visão sobre a cobertura diante da positivada função social dos contratos, de um repaginado diálogo das fontes com a novas penetrações dos paradigmas e princípios do Código de Defesa do Consumidor para dentro das balizas daqueles contratos.

Independente das soluções aplicadas aos casos concretos que demandaram a efetividade daqueles contratos, o futuro já mostrou um plexus de desafios para tanto, entre tantas questões: as soluções serão as mesmas em outras casos ou situações? Qual será a relevância da interpretação atual para os casos futuros? Nos novos contratos, as condições gerais permanecerão como antes ou será feita um substancial das previsões e balizas contratuais? E, para este último caso, sempre bom lembrar que, como regra, não há uma intervenção contratual nas condições contratuais.

Na verdade aí já surge uma grande questão dos novos tempos sobre o papel governamental nas atividades de seguro, sobretudo diante da compreensão do papel regulatório institucionalizado na realidade nacional. Para registro, é relevante notar que a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS rapidamente editou uma Resolução Normativa[1] determinando a inclusão dos testes de diagnósticos para detecção do coronavírus nas coberturas dos planos de saúde. De outro lado, a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP, que historicamente não determina as condições contratuais, incrementou a postura regulatória de um maior distanciamento das intervenções regulatórias, com a explicitação oficial do objetivo de simplificar o arcabouço regulatório dos seguros de pessoas com coberturas de risco, estendendo aos seguros de pessoas o processo de revisão e simplificação regulatória já iniciado para os seguros de danos no ano de 2020.

Curioso notar que, diferentemente, a autoridade regulatória portuguêsa atuou diretamente no segmento como se pode ilustrar pela edição do Decreto-Lei n.º 20-F, de 12 de maio de 2020 que aprovou um regime excecional e temporário, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, relativo ao pagamento do prémio de seguro e aos efeitos da diminuição temporária do risco nos contratos de seguro decorrentes de redução significativa ou de suspensão de atividade, estabelecendo diversas medidas. Sem aqui ter a pretensão de esgotar uma visão de comparação internacionais é ainda destacável o papel da Autoridade Europeia dos Seguros e Pensões Complementares de Reforma (EIOPA) é uma agência da União Europeia, que trabalha para o reforço da proteção do consumidor, com a edição de guias de orientação para as situações decorrentes da pandemia do Covid-19.

O aproveitamento do mundo decorrente da pandemia mostra o quão relevante é fundamental o debate jurídico e institucional sobre o papel do Estado regulador na atividade de seguro, especialmente para que não fiquem dependentes de gestores, ou mesmo que a alternância destes empreste as visões de cada um dos momentos com modificações impregnadas pela digital individual de cada um deles sem as necessárias ponderações das políticas institucionais que o segmento requer.

Todavia, não se pode reduzir o debate que se instalou nos contratos de seguro com a pandemia apenas aos aspectos regulatórios. É tempo também de repensar o empréstimo que o fundamento do Mutualismo sempre rendeu às teses jurídicas para a defesa das posições das seguradoras quanto a determinado fato estar ou não protegido pelas coberturas. Veja-se que não se pretende aqui negar o citado ponto fundamental do mutualismo para a atividade securitária, mas já não se pode mais aceitar o singelo argumento raso de prejuízo ao mesmo quanto a determinado evento possuir ou não cobertura para que a sociedade pague a indenização ou importância segurada.

Se, de um lado, é fundamental que o desenho das atividades de seguro seja feito com os devidos substratos técnicos, por outro, aquele genérico argumento (tantas vezes empregados em defesas administrativas e judiciais) de que a sociedade seguradora não poderia pagar a indenização ou importância segurada para não prejudicar o grupo do mutualismo desmoronou com o tempo da pandemia. Isto porque diversas situações foram suportadas pelas seguradoras, até mesmo em decorrência da notória pressão social. Cumpre aos operadores do direito, nos diversos cenários em que são chamados, reconhecerem a necessidade de afastamento das fórmulas prontas de linhas de defesa que exigem, no mínimo, uma repaginada depois da pandemia e calamidade da Covid-19.

Mas, antes que se pensem que os efeitos estão apenas na seara da aplicação do princípio do mutualismo, os extremos da pandemia também repercutiram em outros tantos aspectos relacionados aos negócios jurídicos do seguro. Aqui se ilustra na antiga equação de suspensão de cobertura nos casos de impontualidade do pagamento do prêmio, novamente sem que aqui se entenda uma negação da vigência e eficácia do art. 763 do Código Civil ou do art. 12 do Decreto-lei nº 73/1966 e todas as normas regulamentares infralegais.

Entretanto é necessário repensar o efeito da suspensão dos direitos do segurado ou beneficiário à luz dos conceitos e caracterização da mora, como aliás já havia feito o e. Superior Tribunal de Justiça nos debates que levaram à edição da Súmula 616 daquela corte. Mostra-se indisputável quais são os elementos necessários da caracterização da mora do segurado para além do não pagamento pontual do prêmio do seguro, mormente diante dos cenários extraordinários de pandemia ou até mesmo casos de menor excepcionalidade.

Tudo isto para não falar até mesmo da utilização ou não dos contratos de seguro na previsão dos negócios jurídicos, como por exemplo os diversos casos de bom uso das modalidades de seguro-garantia em diversas situações, impactando num novo olhar de planejamento de algumas antigas gestões e decisões empresariais e jurídicas. Mas é certo que os olhos que miram para frente e futuro enxergam um retrovisor sobre as antigas bases e estruturas do seguro, colocando novas vestimentas nas armaduras do passado.

[1] Resolução Normativa nº 453, de março de 2020.

08.01.2022