Cassio Gama Amaral

Cassio Gama Amaral

Sócio do Machado Meyer Advogados. Advogado qualificado no Brasil e em Portugal. Doutorando em Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em direito pela Grande Escola de Comércio de Lyon/França e Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Experiência nas indústrias de seguros, resseguros, previdência privada e infraestrutura, assessorando clientes em deals, assuntos regulatórios e de contencioso, além de consultoria em diferentes ramos de seguros de grandes riscos. Envolvimento ativo em sinistros relevantes e em complexas disputas de (res)seguro e infraestrutura no Brasil nos últimos tempos. Professor de pós-graduação na Escola Nacional de Seguros e na Escola Superior de Advocacia, além de autor de diversas publicações sobre direito de seguros. Membro dos Conselhos Executivo e Consultivo do Instituto de Inovação em Seguro e Resseguros da Fundação Getúlio Vargas, da Associação Internacional de Direito de Seguros (AIDA), dos Comitês de Seguro, de Mediação e de Contencioso da International Bar Association (IBA), bem como dos Comitês Jurídico e de Garantia e Financiamento da ABDIB.

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Impactos da RJ no Seguro Garantia Judicial - Ações Cíveis e Trabalhistas*

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Há mais de cinco anos, escrevemos nesta coluna sobre os efeitos dos pedidos de processamento de recuperação judicial e da homologação do plano de recuperação para as apólices de seguro garantia judicial apresentadas no âmbito de ações movidas contra a devedora. Esse tema volta à tona com toda força, diante dos últimos acontecimentos de mercado envolvendo empresas em crise. É neste contexto que apresentamos uma versão atualizada do tema.

Inicialmente, vale ressaltar que, com o deferimento do processamento da recuperação judicial, o juízo deve ordenar a suspensão de todas as ações e execuções contra o devedor, nos termos do artigo 6º, c/c o artigo 52, inciso III, da Lei de Falências, pelo prazo máximo de 180 dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável excepcionalmente por igual período, uma única vez (§ 4º do referido artigo 6º, conforme modificado pela Lei nº 14.112/2020).

Pois bem. Se durante a suspensão das execuções trabalhistas e cíveis, pelo prazo legal ou de outro modo fixado pelo juízo, não se pode exigir do devedor o pagamento ou depósito dos respectivos créditos exequendos, com menos razão ainda se poderá exigir o depósito ou pagamento de indenização securitária pela seguradora que tenha ofertado seguro garantia judicial.

A seguradora não presta garantia contra o inadimplemento da obrigação que deu origem à pretensão executiva da credora, como poderia se dar por meio de um aval, por exemplo. Ela concede garantia ao juízo contra o inadimplemento de obrigação processual. Dessa forma, não se aplica às seguradoras, portanto, o disposto no artigo 49, § 1º, da Lei de Falências, segundo o qual “os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso”.

A responsabilidade da seguradora emitente da apólice de seguro garantia judicial é condicionada, limitada e subsidiária, ou seja, a seguradora se obriga (garante) a depositar a indenização securitária no respectivo juízo (i) caso o tomador sucumba na ação contra ele movida, o que, nas ações cíveis e trabalhistas, somente se afere após o trânsito em julgado, (ii) sempre se respeitando o limite máximo de garantia previsto na apólice e (iii) desde que se comprove o inadimplemento da tomadora com relação ao pagamento do crédito exequendo, quando exigível, nos termos da lei processual.

Por outro lado, vale ressaltar que o artigo 59, caput, da Lei de Falências dispõe que a homologação do plano de recuperação implica novação sui generis dos créditos anteriores ao pedido, obrigando o devedor e todos os credores a ele sujeitos “sem prejuízo das garantias”.

Tais garantias a que se refere o artigo 59, em linha com o disposto no artigo 49, § 1º, acima referido, entretanto, devem ser entendidas como sendo aquelas dadas no âmbito dos negócios jurídicos cujos créditos estejam sujeitos à recuperação judicial e não as garantias securitárias ofertadas para segurança de ações e execuções.

Em outras palavras, a apólice de seguro garantia judicial não se presta a garantir o direito material subjacente, o qual já teria sido inadimplido pela tomadora, motivo pelo qual, diga-se de passagem, a credora move a ação. A garantia prestada pela apólice materializa sim uma verdadeira garantia do juízo, não podendo, sob qualquer ângulo e para quaisquer efeitos, ser equiparada às garantias a que se referem os artigos 49, § 1º, e 59, ambos da Lei de Falências, contra as quais se abre a possibilidade de o credor perseguir seu crédito direta e independentemente contra o garantidor coobrigado.

Por outro lado, não se pode cogitar que a apólice de seguro garantia judicial cobriria a obrigação novada pelo plano de recuperação judicial aprovado, passando o seguro a cobrir o inadimplemento das obrigações assumidas pela recuperanda (tomadora) nos termos do plano de recuperação. Isso porque é completamente diferente o risco de inadimplemento no âmbito de uma ação individual do risco de crédito representado pelo descumprimento do plano de recuperação, de maneira que a transmudação provocada pela novação do artigo 59 da Lei de Falências não pode ser acompanhado pela seguradora, exceto se com isso ela anuir expressa e previamente.

Finalmente, convém ressaltar que o Superior Tribunal de Justiça já assentou[1] que execuções individuais ajuizadas contra a recuperanda devem ser extintas (e não apenas suspensas) com a homologação do plano de recuperação, sendo razoável se concluir pela extinção, por via de consequência, das respectivas garantias apresentadas ao juízo por terceiros, incluindo as garantias securitárias.

Em suma, o mero deferimento do processamento do pedido de recuperação e/ou a homologação do plano de recuperação judicial não são eventos idôneos a legitimar o acionamento das apólices de garantia judicial pelo juízo garantido ou pelo juízo da recuperação. Ademais, a seguradora que segura o juízo não pode ser equiparada ao garantidor coobrigado do direito material subjacente, de maneira que contra ela não se pode dar continuidade à execução garantida suspensa por força dos artigos 6 e 52, III, da Lei de Falências. Finalmente, com a homologação do plano de recuperação judicial e consequente novação dos créditos a ele sujeitos, as respectivas ações até então suspensas devem ser extintas, com a consequente extinção das garantias securitárias.

Nosso entendimento, esposado na versão original deste artigo foi corroborado por importante precedente da Segunda Seção do STJ[2], a qual consignou que a apólice de seguro garantia judicial não pode ser acionada pelo Juízo onde tramita a execução individual (no caso, pelo Juízo Trabalhista). Cabe ao Juízo onde tramita a recuperação judicial da tomadora do seguro apreciar o cabimento do acionamento da apólice (Tal entendimento foi reafirmado em 2022 pela mesma Segunda Seção[3] e vem sendo seguido em decisões monocráticas[4]).

E mais: no referido precedente, a Segunda Seção do STJ firmou o entendimento de que o deferimento do processamento da recuperação judicial não implica em sinistro e “tendo em vista que com o deferimento da recuperação judicial a execução contra o devedor principal será extinta, diante da ausência de título a lhe dar suporte, somente será possível exigir o depósito da indenização pela seguradora se tiver ficado caracterizado o sinistro em momento anterior (ao do pedido de recuperação), observada a extensão dos riscos cobertos pela apólice”.

Esse entendimento vem sendo referendado em casos análogos, por meio de acórdãos[5] e decisões monocráticas proferidas no STJ[6], bem como compartilhado por outros Tribunais[7].

Pensar de forma diferente traria prejuízos ao objetivo da recuperação judicial, porquanto, caso fosse viável o pagamento de indenização securitária por parte de seguradoras que garantam ações judiciais cíveis e trabalhistas, os créditos concursais (dos credores originais) seriam substituídos por créditos extraconcursais (das seguradoras), contrariando o necessário tratamento equânime que deve ser dispensado os credores, um dos objetivos mais caros da Lei de Falências[8].

* Artigo atualizado em colaboração com Marcelo Catania Ramos, advogado do Machado Meyer Advogados.


[1]    STJ, REsp 1.272.697/DF, Min. Rel. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. em 02/06/2015; AgInt nos EDcl no AREsp nº 1.867.278/SP, Min. Rel. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. em 12/9/2022; EDcl no AgInt nos EDcl no REsp 1,321.912/SP, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. em 20/04/2020

[2]    STJ, CC 161.667/GO, Min. Rel. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, j. em 26/08/2020.

[3]    STJ, AgInt no CC 168.425/RJ, Min. Rel. Marco Buzzi, Segunda Seção, j. em 23/02/2022; AgInt nos EDcl no CC 164.040/RJ, Min. Rel. Marco Buzzi, Segunda Seção, j. em 15/03/2022.

[4]    STJ, CC 172.446/RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 13/11/2020; STJ, CC 172.144/RJ, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 13/11/2020; STJ, CC 192.837/DF, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 01/02/2023; STJ, CC 194.360, Min. Rel. Og Fernandes, j. em 30/01/2023; STJ, AgInt no CC 155.620, Min. Rel. Maria Isabel Gallotti, j. em 13/12/2022.

[5]    STJ, AgInt no AREsp 2.088.348/RS, Min. Rel. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, j. em 15/08/2022.

[6]    STJ, AREsp 1.721.144/RS, Min. Rel. Marco Buzzi, j. em 20/05/2021; STJ, CC 193.014/DF, Min. Rel. Nancy Andrighi, j. em 03/02/2023; STJ, AREsp 1.845.277, Min. Rel. Maria Isabel Gallotti, j. em 25/11/2022.

[7]    TJSP, agravo de instrumento 2020406-13.2020.8.26.0000, Des. Rel. Lígia Araújo Bisogni, 34ª Câmara de Direito Privado, j. em 08/06/2020; TJMG, agravo de instrumento 0114593-10.2020.8.13.0000, Des. Rel. Leite Praça, 19ª Câmara Cível, j. em 30/04/2020; TJRJ, agravo de instrumento 0029987-18.2019.8.19.0000, Des. Rel. Francisco de Assis Pessanha Filho, 14ª Câmara Cível, j. em 11/09/2019; TJRS, agravo de instrumento 0130537-50.2018.8.21.7000, Des. Rel. Marco Antonio Angelo, 19ª Câmara Cível, j. em 03/10/2018; TJSC, embargos de declaração 4004521-18.2016.8.24.0000, Des. Rel. Giancarlo Bremer Nones, 4ª Câmara de Direito Comercial, j. em 20/09/2022.

[8]    "Instaurado o juízo concursal, a observância, como regra pétrea, ao princípio da 'pars conditio creditorium', visa conceder tratamento isonômico àqueles que estão em igualdade de condições, sendo conceito fundamental de todo o sistema que envolve a recuperação judicial, gerando sua inobservância, a nulidade do próprio pleito. A execução das garantias judiciais e das cartas de fiança pelo juízo das execuções, com vista a satisfação do crédito executado, fere mortalmente o princípio acima destacado" STJ, AgInt no AREsp nº 1.937.869/RS, Min. Rel. Marco Buzzi, Quarta Turma, j. em 30/06/2022.

14.02.2023