Cassio Gama Amaral

Cassio Gama Amaral

Sócio do Machado Meyer Advogados. Advogado qualificado no Brasil e em Portugal. Doutorando em Economia pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em direito pela Grande Escola de Comércio de Lyon/França e Mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia. Experiência nas indústrias de seguros, resseguros, previdência privada e infraestrutura, assessorando clientes em deals, assuntos regulatórios e de contencioso, além de consultoria em diferentes ramos de seguros de grandes riscos. Envolvimento ativo em sinistros relevantes e em complexas disputas de (res)seguro e infraestrutura no Brasil nos últimos tempos. Professor de pós-graduação na Escola Nacional de Seguros e na Escola Superior de Advocacia, além de autor de diversas publicações sobre direito de seguros. Membro dos Conselhos Executivo e Consultivo do Instituto de Inovação em Seguro e Resseguros da Fundação Getúlio Vargas, da Associação Internacional de Direito de Seguros (AIDA), dos Comitês de Seguro, de Mediação e de Contencioso da International Bar Association (IBA), bem como dos Comitês Jurídico e de Garantia e Financiamento da ABDIB.

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Avanço Tecnológico e Seleção Oportuna – quando a benção da ignorância se esvai

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O risco - acontecimento futuro e incerto quanto à sua realização ou quanto ao momento de sua concretização, susceptível de causar dano a quem detém interesse legítimo relativo a pessoa ou coisa - representa a causa do contrato de seguro.

Trata-se de um elemento sem o qual não se justifica o seguro, sendo considerada ineficaz (ou mesmo nula) a contratação de cobertura securitária de um interesse não efetivamente exposto a risco, tanto que o Código Civil, em seu artigo 773, contempla pena equivalente ao dobro do prêmio cobrado à seguradora que, “ao tempo do contrato, sabe estar passado o risco de que o segurado pretende cobrir e, não obstante, expede a apólice”.

As famílias e as corporações, nesse cenário, avessos aos riscos por elas necessariamente incorridos, que podem, uma vez concretizados, levá-las à indesejada desestabilização financeira ou mesmo à bancarrota, utilizam mecanismos técnico-jurídicos para sua transferência a terceiros (fiadores, avalistas, instituições financeiras, especuladores, etc.), os quais estariam, em teoria, patrimonialmente mais preparados para avaliá-los e para absorver as consequências de sua ocorrência, destacando-se, dentre estes, notadamente, as entidades autorizadas exclusivamente para tanto: as seguradoras.

As seguradoras aceitam assumir as consequências patrimoniais da concretização de riscos a que famílias e corporações estão expostos em troca de uma remuneração – o prêmio, confiantes na eficiência da utilização de técnicas contábeis e de estabilização financeira, que incluem a constituição de reservas e provisões, bem como a pulverização dos seus riscos por meio do resseguro, sem embargo da utilização de outros métodos, a exemplo daqueles cursados no seio do mercado de capitais (cat bonds, etc.).

Ao assumirem os riscos que as famílias e corporações não suportam ou não desejam reter, as seguradoras se valem da técnica “mágica” da teoria dos grandes números, ou seja, coletam ou tomam emprestado dados históricos de eventos/acidentes e, ao normalizá-los, extraem a probabilidade de sua ocorrência, de maneira que possam calcular o prêmio a ser cobrado no âmbito do pool de apólices da mesma linha de negócios que dão cobertura para tais eventos.

Contra a mágica da teoria dos grandes números, despontam circunstâncias que destorcem a previsibilidade estatística, o que pode trazer graves prejuízos para as seguradoras e, em certos casos, colapsá-las.

Nesse contexto, desponta a indesejada alta covariância ou correlação, é dizer, quando os riscos cobertos derivam de um mesmo evento ou cadeia de eventos e tendem a se concretizar simultaneamente, a exemplo do que ocorre em acidentes envolvendo terremotos, inundações, guerras, etc.

Além disso, com a confortável transferência de risco, os segurados tendem a assumir comportamentos mais relaxados ou mesmo negligentes que, de outro modo, não teriam assumido caso não tivessem contratado coberturas securitárias para tanto (o chamado risco moral), aumentando, por conseguinte, a probabilidade do evento não querido, como se dá, por exemplo, quando o segurado estaciona seu carro com os vidros abertos em local ermo com o seguinte discurso habitual: “eu tenho seguro mesmo”.

Finalmente, mas não menos importante, destacamos a sempre presente possibilidade de seleção adversa de segurados mais expostos à recorrência e/ou à gravidade de eventos cobertos, tendo em vista a assimetria de informação entre eles e a seguradora. Ao possuir informações mais completas sobre os riscos a que estão expostos, os segurados, em tese, possuem melhores condições de avaliar a oportunidade e conveniência de se contratar o seguro e em que termos, sendo certo que a presença de maior risco é incentivo para contratação de (maior) cobertura securitária, ao passo que a consciência da sua menor importância (pouca recorrência e/ou severidade) estimula a não contratação do seguro ou a contratação menos abrangente, tudo isso a gerar uma maior sinistralidade no pool.

Contra tais eventos, as seguradoras e os reguladores desenvolveram técnicas centenárias de des(incentivos), a exemplo de aplicação de exclusões de coberturas específicas, subsídios estatais, seguros obrigatórios, bônus, franquias, etc., os quais vêm se mostrando relativamente eficientes.

Pois bem. Com o alucinante desenvolvimento tecnológico nos últimos anos, representado, dentre outras, pela evolução da inteligência artificial e da internet das coisas, o privilégio da informação nas mãos do proponente/segurado em detrimento da seguradora tende a desaparecer ou, não é demais se afirmar, tende a se deslocar para esta última, a qual, armada de um instrumental cada vez mais eficiente, será capaz de acessar os riscos de forma mais fidedigna e mesmo amoldar as garantias prestadas ao comportamento e hábitos específicos de cada segurado.

Nesse cenário, a seleção adversa que se dá, por exemplo, quando alguém que tem doença terminal contrata seguro de vida, cederá espaço a uma seleção oportuna (pela seguradora), ou seja, a seguradora, utilizando métodos de análise genética, não aceitará o risco de quem não tem qualquer doença instalada, mas tem fortes chances de ser acometido de enfermidade grave e incurável em um dado espaço de tempo.

Com a seleção oportuna e arrefecimento (ou inversão) da assimetria informacional, as famílias e corporações que sustentam pouquíssimo risco de ocorrência de evento não desejado (ou risco algum, quem sabe) tenderão a não contratar seguros, já os que sustentam riscos elevados (plenamente acessados) podem ser alijados da proteção securitária ou arcar com custos elevadíssimos para transferência dos seus riscos.

Certo grau de ignorância no mundo do seguro poder ser uma benção, já que permite a atuação calibrada da mágica teoria dos grandes números, abarcando, com base em critérios já exaustivamente testados, segurados expostos a graus variados de exposição a riscos (nunca aqueles de má-fé), normalizados pela cobrança de um prêmio aceitável, cumprindo, assim, o objetivo primeiro da técnica de seguro: a socialização do risco.

Assim, para manutenção da relevante atividade do seguro, será importante que o mercado segurador e os reguladores, de um lado, utilizem técnicas de estimulo à socialização do risco, que sejam capazes de frear ou mitigar os efeitos da seleção oportuna demasiado segregacionista, a exemplo da instituição de obrigatoriedade na contratação de seguros, subsídios cruzados, obrigatoriedade de coberturas conjuntas, etc., e, por outro lado, que as seguradoras repensem a forma de executar a sua atividade, reduzindo o caráter eminentemente indenizatório e prestigiando (e cobrando por isso) uma atuação cada vez mais focada em serviços, com vistas à eliminação ou mitigação dos riscos incorridos não por um segurado padrão (mediano), mas por cada um dos segurados das suas carteiras, com características e comportamentos únicos.

(21.05.2018)