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Augusto Franke Dahinten

Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Internacional Público e Privado e em Direito Ambiental pela UFRGS. Possui MBA em Direito Empresarial pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Professor de Direito dos Seguros. Coautor dos livros “Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura” e “Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas”.

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Bernardo Franke Dahinten

Doutor e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Médico pela Escola Superior Verbo Jurídico, em Direito Empresarial pela PUCRS e em Contratos e Responsabilidade Civil pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Direito Médico e da Saúde, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Coautor dos livros "Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura" e "Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas".

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Saúde Suplementar, Sandbox Regulatório e Plano para Consultas e Exames

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Embora a noção de Sandbox Regulatório não seja exatamente nova, fato é que, no que tange ao sistema de saúde suplementar brasileiro, trata-se de algo recente, mas que, como é típico no setor, já se encontra no centro de debates. Ainda que não se trate de um assunto simples, dada a sua importância e as polêmicas que já se instalaram ao seu redor, mostram-se válidos alguns comentários preliminares a seu respeito.

Sandbox Regulatório corresponde, em poucas palavras, a um ambiente regulatório experimental voltado a viabilizar o desenvolvimento de modelos de negócios inovadores, enquadrando-se, ao menos em teoria, como uma ferramenta apta a fomentar o empreendedorismo inovador e a perseguir soluções a problemas existentes. É o que estabelece o art. 2°, inc. II, da Lei Complementar n°. 182/2021, segundo o qual o sandbox regulatório é o “conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado”.

A noção de “ambiente regulatório experimental” é adequada, já que a criação de um ambiente dessa natureza traduz-se, justamente, no afastamento excepcional e temporário de determinadas normas setoriais – como uma espécie de “teste” encabeçado e controlado pelo órgão regulador - em favor deste ou daquele experimento: “Os órgãos e as entidades da administração pública com competência de regulamentação setorial poderão, individualmente ou em colaboração, no âmbito de programas de ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório), afastar a incidência de normas sob sua competência em relação à entidade regulada ou aos grupos de entidades reguladas” (art. 11).

Especificamente na saúde suplementar, ao menos com oficialidade, passou-se a falar de Sandbox Regulatório apenas em outubro de 2024, quando a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) - autarquia responsável pela regulação, normatização, controle e fiscalização do setor - abriu a Consulta Pública (CP) n°. 138, da qual resultou, em dezembro de 2024, a Resolução Normativa (RN/ANS) n°. 621, que dispõe sobre as regras para constituição e funcionamento de ambiente regulatório experimental na ANS. Importante se ressaltar que essa norma não instituiu, ela própria, um Sandbox Regulatório; o que ela fez foi positivar o regramento geral a ser observado pela própria ANS, e pelo setor de forma geral, para fins de criação de algum (futuro, eventual e concreto) ambiente regulatório experimental.

Segundo a RN/ANS n°. 621/2024, “O processo de admissão de participante no ambiente regulatório experimental da ANS será iniciado por meio da publicação do edital de participação [...]” (art. 4°, caput), cuja minuta “deverá ser previamente submetida à consulta interna e à participação social ampla” (art. 4°, § 2°). Foi o que aconteceu em fevereiro de 2025, quando a ANS abriu a CP n°. 151, para receber contribuições sobre a proposta de implementação de um ambiente regulatório experimental para testar um produto com cobertura unicamente para consultas eletivas e exames. Em meio ao período dessa consulta pública, a ANS realizou, em 25 de fevereiro de 2025, a Audiência Pública n°. 52, voltada a debater a mesma matéria.

No introito da referida audiência pública, o Diretor da Diretoria de Normas e Habilitação dos Produtos (DIPRO), dr. Alexandre Fioranelli, deixou claro que o objetivo desse experimento é ampliar a quantidade de pessoas com acesso à atenção primária e secundária, captando, por meio de um produto regulamentado e fiscalizado, consumidores que não têm condições de pagar por um plano de saúde e/ou que usam serviços alternativos como cartão de desconto ou clínicas populares. Some-se a isso que, nos últimos anos, a quantidade de operadoras que oferecem planos de contratação individual ou familiar diminuiu substancialmente, além de as modalidades de planos coletivos - empresarial e por adesão - utilizarem critérios de elegibilidade restritivos, evidenciando um problema de acesso a esse mercado.

Surpreendentemente, grande parte dos participantes, inclusive órgãos de representação dos próprios servidores e técnicos da ANS e entidades de promoção de defesa dos direitos dos consumidores, manifestou-se de maneira contrária à ideia. Segundo esses, a proposta da ANS esbarraria na própria Lei Federal n°. 9.656/1998, a Lei dos Planos de Saúde (LPS), especificamente no seu art. 12, que relaciona as segmentações passíveis de contratação e os respectivos conjuntos de coberturas mínimas. Ao veicular um plano restrito para consultas eletivas e exames, a ANS estaria, segundo esse entendimento, violando a LPS. Além disso, essa proposta, por se limitar ao diagnóstico e por não permitir a continuidade da assistência aos beneficiários, estaria em desacordo com o princípio/diretriz da integralidade.

A desconformidade dos órgãos de defesa dos consumidores é tamanha que o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) inclusive manejou, contra a ANS, ação civil pública tombada sob o n°. 5006090-73.2025.4.03.6100, pleiteando a suspensão da RN/ANS n°. 621/2024 e a consequente determinação de que a agência se abstenha de adotar quaisquer medidas que autorizem tratativas, lançamentos de novos editais ou a continuidade de editais em andamento que tenham fundamento no Sandbox Regulatório. Até a data de elaboração desse texto, não havia ainda decisão judicial no âmbito do referido feito.

De outro giro, especialistas do setor e órgãos representativos das operadoras de planos privados de assistência à saúde, não obstante as dúvidas e preocupações externalizadas – como quanto à amplitude das coberturas assistenciais a serem consideradas obrigatórias e à possibilidade de participação de entidades não reguladas - posicionaram-se em favor da proposta.

Verdade seja dita, as principais teses invocadas desfavoravelmente à instituição desse específico Sandbox Regulatório não parecem se sustentar. Embora um plano com cobertura restrita a consultas eletivas e exames pareça desafiar os parâmetros da LPS, fato é que a Lei Federal n°. 9.961/2000, da qual resultou a criação da ANS e que é posterior à LPS, expressamente outorgou à agência competência para “decidir sobre o estabelecimento de sub-segmentações aos tipos de planos definitivos nos incisos I a IV do art. 12 da Lei n° 9.656, 1998” (art. 4°, inc. III). O princípio da integralidade, por sua vez, embora de fato positivado na Constituição Federal de 1988 (art. 198, inc. II), inquestionavelmente se limita ao sistema de saúde pública – de dever do Estado – sendo incompatível com a lógica, o funcionamento e o regramento da saúde suplementar. Não se desconhece que a RN/ANS n°. 465/2021 igualmente consagra a “integralidade das ações” como um princípio da saúde suplementar (art. 5°, inc. II), porém a própria norma reza que os princípios estabelecidos nesse dispositivo hão de valer “respeitando-se as segmentações contratadas” (parágrafo único). O argumento de que a continuidade desses atendimentos permaneceria recaindo sobre o SUS parece igualmente falacioso, uma vez que essa já é a realidade atual.

Em adição a isso, pelo menos considerando os documentos veiculados por meio da CP n°. 151, fato é que não se extraem da relação de normas que seriam flexibilizadas nesse experimento regras fundamentais à saúde suplementar, como a RN/ANS n°. 566/2022 (que institui os prazos máximos para garantia do atendimento) e a RN/ANS n°. 623/2024 (que trata das regras de atendimento). Isso significa, por exemplo, que, por meio desse experimento, beneficiários que hoje se sujeitam a produtos/serviços informais/clandestinos (sem qualquer regramento ou fiscalização estatal) e/ou que já dependem inteiramente do sistema de saúde público (sabidamente sobrecarregado), poderão realizar consultas e exames em curtíssimo prazo, permitindo, pelo menos, diagnósticos precoces e, consequentemente (ainda que sujeito ao SUS), o início de tratamentos de modo antecipado (e quiçá mais eficaz).

Não se pode ignorar, também, que, caso reste implementado esse Sandbox Regulatório, a adesão, por parte dos cidadãos, será opcional e voluntária, preservando-se a liberdade de contratar e a autonomia das partes, devendo-se destacar que a própria RN/ANS n°. 621/2024 estabelece que “O Sandbox Regulatório que envolva beneficiários de planos de saúde deverá garantir o conhecimento expresso do beneficiário da natureza experimental dos produtos, serviços ou tecnologias em teste” (art. 5°, caput). Não se questiona que, no âmbito de um “experimento” como esse, o dever de informação – de modo prévio e completo – será inteiramente das operadoras e/ou eventuais outras entidades participantes, às quais caberá o ônus da prova relativamente a esse dever, sob pena de, aí sim, responsabilização.

Naturalmente, a efetiva implementação desse projeto dependerá de harmonização, interação e ajustes finos entre os sistemas de saúde, bem como da compreensão de outros atores importantes - como o próprio Poder Judiciário, Ministério Público e Procons - os quais, se não compreenderem e compactuarem com as regras e limites desse projeto, muito provavelmente o tornarão insustentável, levando-o ao insucesso.

A despeito dessas preocupações e desses cuidados, não parece razoável advogar - pelo menos não de antemão - contrariamente ao Sandbox Regulatório atualmente em discussão, especialmente no que tange à proposta de plano experimental mais restrito. O intuito da proposta é justamente viabilizar que pessoas hoje desassistidas e sem condições de entrar em planos de saúde tradicionais (por serem muito caros e/ou por exigirem regras de elegibilidade rígidas/impeditivas), possam ter acesso à assistência à saúde de modo célere - certamente em prazo muito inferior ao que teriam que aguardar na rede pública - e garantido, pelo que merece ser enaltecido e considerado.

(01.04.2025)