colunistas Foto Aug

Augusto Franke Dahinten

Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Internacional Público e Privado e em Direito Ambiental pela UFRGS. Possui MBA em Direito Empresarial pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Professor de Direito dos Seguros. Coautor dos livros “Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura” e “Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas”.

colunista Foto Ber

Bernardo Franke Dahinten

Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Médico pela Escola Superior Verbo Jurídico, em Direito Empresarial pela PUCRS e em Contratos e Responsabilidade Civil pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Direito Médico e da Saúde, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Coautor dos livros "Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura" e "Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas".

.

Rol de Procedimentos da ANS e Caos Jurídico

Voltar

O rol de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) - tecnicamente denominado como Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (RPES) - representa, sem qualquer dúvida, um dos mecanismos mais importantes do sistema de saúde suplementar brasileiro. Com a positivação do seu caráter taxativo na RN/ANS n°. 465 e com a expectativa de uma possível definição quanto à sua natureza por parte do Superior Tribunal de Justiça, 2021 tinha tudo para ser um ano histórico para o universo dos planos e seguros de saúde. Ironicamente, contudo, não apenas a mencionada definição não ocorreu, como o que se viu foi o Congresso Nacional interferir diretamente, por meio de uma polêmica Medida Provisória, no processo de atualização do referido rol. O ano terminou e, mais do que nunca, o que se presencia quanto a esse importante tema é um verdadeiro caos jurídico. 

Desde que o mercado da saúde suplementar passou a ser regulamentado no Brasil, conta-se com o mencionado rol de procedimentos obrigatórios, responsável por relacionar todos os tratamentos e exames considerados de cobertura obrigatória pelos planos e seguros de saúde. Trata-se de uma lista de milhares de procedimentos, amparada no art. 10, § 4°, da Lei Federal n°. 9.656/1998 (popularmente conhecida como a Lei dos Planos de Saúde), e no art. 4°, inc. III, da Lei Federal n°. 9.961/2000 (a Lei da ANS). A partir do advento da Lei dos Planos de Saúde e da criação da ANS, cabe a essa agência reguladora elaborar e atualizar o dito rol de procedimentos obrigatórios. O primeiro rol foi aquele veiculado na Resolução do Conselho de Saúde Suplementar n°. 10, ainda em 1998, e o último corresponde ao veiculado pela recente RN/ANS n°. 465, de 24 de fevereiro de 2021.

Há décadas, uma das grandes discussões jurídicas presenciadas no setor diz respeito à natureza do rol de procedimentos, se exemplificativa ou se taxativa. A posição do “mercado”, incluindo a das operadoras e a da própria agência reguladora, sempre foi pelo reconhecimento do caráter taxativo. Tratando-se, ademais, de contratos securitários, em que a predeterminação dos riscos assumidos é pedra fundamental, a adoção do caráter taxativo é tão natural que dispensa maiores comentários. Os defensores dos consumidores, por outro lado, tradicionalmente defenderam o caráter exemplificativo com base nas normas protetivas previstas na Lei Federal n°. 8.078/1990 e nas noções de expectativa legítima e boa-fé.

Embora a ANS jamais tenha deixado qualquer dúvida quanto ao seu entendimento acerca desta divergência, a verdade é que, até 2021, ela ainda não havia normatizado a sua posição. Com a RN/ANS n°. 465, isso mudou e o caráter taxativo restou expresso no art. 2° da norma: “Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa [...]” (grifamos). Este reconhecimento por parte da ANS, embora histórico e de imensa importância, não resolveu o problema. As limitações de coberturas assistenciais decorrentes do caráter taxativo do rol continuaram (e continuam) sendo questionadas judicialmente e o Poder Judiciário brasileiro permanece inclinando-se, majoritariamente, em favor do caráter exemplificativo, invalidando as restrições contratuais em sentido contrário.

Sabe-se que, há alguns anos, o STJ vem conferindo grande atenção ao sistema de saúde suplementar brasileiro, com a sujeição de diversos temas controvertidos ao chamado rito dos recursos repetitivos. Este rito, em resumo, ocorre quando recursos representativos de controvérsias são selecionados e julgados conjuntamente pelas Turmas regimentalmente responsáveis por esta ou aquela matéria, com a fixação de teses repetitivas que devem ser observadas pelos demais julgadores de todo o país. Foi o que se viu, por exemplo, com as discussões envolvendo os reajustes por alteração de faixa etária no âmbito dos planos individuais/familiares (Tema 952) e, mais recentemente, com os procedimentos de fertilização in vitro (Tema 1067).

Com relação ao rol de procedimentos da ANS, no entanto, embora parecesse haver entendimento judicial quase que pacífico sobre o tema (em favor do caráter exemplificativo), não se vislumbrava uma decisão dessa natureza. Essa impressão fortaleceu-se no final de 2019, quando a Quarta Turma, no julgamento do REsp nº. 1.733.013/PR, posicionou-se em favor do caráter taxativo, instaurando, no próprio STJ, a divergência há muito existente no setor. Como esse (novel) entendimento era (e ainda é) limitado àquela Turma, além de estar dotado de nuances que impediam (e até hoje impedem) conclusões amplas ou generalistas, não se podia (e até hoje não se pode) afirmar ter havido uma efetiva e absoluta tomada de posição em favor da taxatividade. Mesmo porque, a Terceira Turma daquele tribunal se manteve firme em favor do caráter exemplificativo.

Não obstante esta profunda divergência, noticiou-se, a partir de agosto de 2021, a afetação de uma série de recursos especiais - REsp n°. 1.950.735/SC, REsp n°. 1.949.597/SC; REsp n°. 1.950.045/MT; REsp n°. 1.950.077/MT; e REsp n°. 1.950.917/SC - para que, finalmente, a Segunda Seção do STJ venha a se pronunciar, em sede de recurso repetitivo, sobre a natureza do rol de procedimentos. Não há como negar que a notícia causou um mix de alívio e preocupação: alívio, pois conduziria à sempre desejada segurança jurídica; e preocupação, pois qualquer que fosse o resultado, o mercado, jurídica e economicamente falando, fatalmente se transformaria.

Embora não se saiba quando esse julgamento ocorrerá, esperava-se haver uma “prévia” quando da apreciação de dois embargos de divergência - EREsp n°. 1.886.929/SP e EREsp n°. 1.889.704/SP - que versavam sobre o mesmo tema e cujo julgamento estava marcado para se iniciar em 16 de setembro de 2021. Entretanto, apenas o seu Relator, Ministro Luis Felipe Salomão, emitiu seu voto, ratificando o seu entendimento em favor da taxatividade como regra geral, ressalvadas situações excepcionais. Quanto aos demais julgadores, a Ministra Maria Isabel Gallotti, e somente ela, manifestou-se oralmente, sem, contudo, formalizar seu voto. E em razão do pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi, o julgamento foi suspenso e, até o momento, assim se encontra. O ano de 2021 se encerrou sem haver previsão para a retomada deste julgamento.

A confusão jurídica, entretanto, não termina por aí. Desde que o rol foi instituído, o seu processo de atualização sofreu algumas modificações, todas encabeçadas pela própria ANS, com intuito de aprimorar esse mecanismo. Desde o final de 2018, imperavam as regras da RN/ANS n°. 439, que, entre outros pontos, fixava os ciclos de atualização a cada dois anos e reconhecia a importância de princípios como o da saúde baseada em evidência e o da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor. Em 09 de julho de 2021, sobreveio a RN/ANS n°. 470, que implementou um processo de atualização semestral, com a possibilidade de submissão contínua de propostas de atualização. Esse novo regime despontava como muitíssimo bem-vindo, pois, ao mesmo tempo em que passava a ser muito mais célere e frequente (inclusive atendendo às reclamações de que, do contrário, o rol restaria continuamente defasadoquando comparado à ininterrupta evolução da medicina e das novas tecnologias), mantinha relevantes etapas de análise, bem como o respeito por importantes diretrizes, como, por exemplo, a avaliação de tecnologias em saúde.

Com a publicação da Medida Provisória n°. 1.067, em setembro de 2021, o mercado viu-se novamente sacudido. Modificando disposições da própria Lei dos Planos de Saúde, essa medida provisória estabeleceu que a atualização do rol se dará mediante processo administrativo, a ser concluído no prazo de cento e vinte dias, admitida prorrogação por sessenta dias. Finalizado esse prazo e não havendo manifestação conclusiva da ANS no processo administrativo, o procedimento, produto ou medicamento é automaticamente introduzido no rol, até que haja decisão da agência. A mesma medida provisória determinou, também, que as tecnologias avaliadas e recomendadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, serão incluídas no rol da ANS em até trinta dias. Além disso, restou instituída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, incumbida de assessorar a ANS neste tema.

Em outras palavras, um ano que tinha tudo para ser um divisor de águas relativamente ao rol de procedimentos obrigatórios da ANS terminou mergulhado em profundo caos jurídico. Além de o impasse judicial quanto ao seu caráter permanecer mais vivo do que nunca, o próprio processo de atualização passa por uma séria crise de identidade, causada por manobra que, além de confundir as atuações e atribuições dos diferentes poderes federativos, coloca em cheque noções básicas de toda inovação jurídico-normativa, como previsibilidade, responsabilidade e sustentabilidade, as quais, especialmente em se tratando de um sistema de saúde do qual cinquenta milhões de brasileiros dependem, jamais poderiam ser esquecidas ou menosprezadas.

Resta aguardar pelo prosseguimento dos mencionados julgamentos e torcer para que, quando ocorrerem, sejam adotadas conclusões lúcidas, tecnicamente aceitáveis e, acima de tudo, sustentáveis. Outra não é a alternativa relativamente ao processo de atualização do rol, frente ao qual cabe aguardar os novos desdobramentos político-legislativos que hão de repercutir nesse assunto.

Para concluir, agradecemos à Editora Roncarati pela parceria inaugurada ao longo do ano de 2021 e por nos ceder este espaço, que muito nos honra, e junto ao qual pretendemos explorar notícias e acontecimentos, sobretudo regulatórios, que se venham a se desenrolar no complexo mundo dos seguros e planos de saúde. Que venha 2022.

Porto Alegre/RS, 12 de janeiro de 2022.

Augusto Franke Dahinten
Bernardo Franke Dahinten