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Augusto Franke Dahinten

Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Internacional Público e Privado e em Direito Ambiental pela UFRGS. Possui MBA em Direito Empresarial pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Professor de Direito dos Seguros. Coautor dos livros “Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura” e “Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas”.

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Bernardo Franke Dahinten

Doutorando e Mestre em Direito pela PUCRS. Pós-graduado em Direito Médico pela Escola Superior Verbo Jurídico, em Direito Empresarial pela PUCRS e em Contratos e Responsabilidade Civil pelo Instituto do Desenvolvimento Cultural (IDC/RS). Especialista em Direito do Consumidor pela Universidade de Coimbra, Portugal. Advogado com atuação nas áreas da Saúde Suplementar, Direito Médico e da Saúde, Seguros, Direito Regulatório e Direito do Consumidor. Coautor dos livros "Os Contratos de Seguro e o Código de Defesa do Consumidor: análise das principais negativas de cobertura" e "Planos de Saúde e Superior Tribunal de Justiça: comentários às principais decisões, súmulas e teses repetitivas".

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Rol de Procedimentos da ANS e Caos Jurídico II

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Já se esperava que 2022 fosse um ano de grande importância para o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (RPES), o popular “rol de procedimentos obrigatórios”, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Não bastassem os impactos da então recém-publicada Medida Provisória (MP) n°. 1.067, que interferiu no processo de atualização do rol, o prosseguimento do aguardadíssimo julgamento dos Embargos de Divergência (EREsp) n°. 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), colocou toda a sociedade em estado de tensão e vigilância. E embora esse julgamento tenha de fato ocorrido, o seu resultado, ao invés de conduzir ao apaziguamento social (e judicial) que tanto se esperava, desencadeou uma sequência de eventos que acentuaram, mais do que nunca, o imbróglio jurídico com que o mencionado rol há tantos anos convive.

Do ponto de vista cronológico, o primeiro acontecimento de 2022 envolvendo o rol de procedimentos da ANS ocorreu em março, com a Lei n°. 14.307. Essa lei, em resumo, confirmou as mudanças até então provisoriamente implementadas pela MP n°. 1.067. Regras, como a atualização mediante instauração de processo administrativo a ser finalizado em até 180 dias e a automática inclusão das tecnologias positivamente avaliadas e recomendadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC) e cuja decisão de incorporação ao SUS já tenha sido publicada, surgiram dessa MP e, com a sua conversão em lei, foram definitivamente incorporadas à Lei Federal n°. 9.656/1998, a denominada Lei dos Planos de Saúde.

Convém lembrar que, até então, o processo de atualização do rol de procedimentos da ANS era disciplinado pela Resolução Normativa (RN/ANS) n°. 470/2021, que havia estabelecido ciclos semestrais de atualização, com a possibilidade de submissão de propostas de atualização de maneira contínua, sem prejuízo de atualizações, por iniciativa da ANS, a qualquer momento. A partir daí, portanto, passaram a coexistir diferentes “métodos” de atualização do rol: alguns com base na própria Lei dos Planos de Saúde, outros provenientes da RN/ANS n°. 470/2021. Tais mudanças não se limitaram à teoria: em 2022, o rol veiculado na RN/ANS n°. 465/2021 foi atualizado quase que mensalmente; em 2021, para efeitos de comparação, houve tão somente uma atualização.

Em junho de 2022, o aguardado julgamento dos EREsp n°. 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, finalmente, aconteceu. Por maioria, os integrantes da Segunda Seção do STJ definiram que o rol, como regra, seria taxativo, ressalvadas situações excepcionais. É o que se passou a chamar de taxatividade mitigada. Eis o que restou decidido: “1 - o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo; 2 - a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao Rol; 3 - é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra Rol; 4 - não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do Rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que (i) não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao Rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS”.

Embora tal julgamento não tenha se dado pelo rito dos recursos repetitivos (não produzindo, consequentemente, “efeito vinculante”), o resultado foi de imensa importância e passou a representar o mais relevante precedente judicial no tocante a essa matéria, sendo, a partir daí, adotado por julgadores de todo o país. Não por muito tempo, no entanto. Certamente em função das mobilizações sociais que se espalharam em razão da decisão do STJ, foi apresentado, ainda em julho,o Projeto de Lei (PL) n°. 2.033.

Espalhou-se pela mídia que tal projeto de lei buscava anular a decisão do STJ e positivar, na própria lei, que o rol haveria de ser exemplificativo. A tentativa de superação do julgamento do STJ era inegável, na medida em que a própria justificação do PL reconhecia a sua origem no “movimento de organizações da sociedade civil, especialistas e usuários da saúde
suplementar”, em decorrência do julgamento do STJ, “para modificações na atual legislação, de modo a possibilitar a continuidade de tratamentos de saúde que poderiam ser excluídos com a
referida interpretação de taxatividade do rol”, fazendo constar, inclusive, que a proposição refletiria uma resposta da Câmara dos Deputados “aos anseios sociais e
necessidade de pacificação sobre o tema”.

Surpreendentemente, sem que recebesse qualquer debate ou exame técnico de profundidade, a lei foi aprovada pelas duas Casas do Congresso e submetida à Presidência, que a endossou. Com isso, a Lei Federal n°. 14.454 foi publicada em 22 de setembro de 2022, com efeitos imediatos. Essa lei implementou algumas alterações na Lei dos Planos de Saúde, das quais a mais impactante, sem qualquer dúvida, foi a criação do § 13, do art. 10, estabelecendo que “Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que: I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais”.  

Na prática, ao contrário do que se pensava, a lei não tornou o rol exemplificativo. Pelo contrário, da sua leitura atenta e sistemática, parece razoável reconhecer que o que restou ratificado foi, justamente, o seu caráter taxativo, no sentido de que a cobertura assistencial a que os planos de saúde estão como regra obrigados limita-se àquilo que consta no rol, admitidas, em duas situações excepcionais, e apenas nelas, e desde que atendidos os respectivos requisitos, a sua superação.

Sem adentrar nas implicações dessa lei à luz das ciências atuariais e das bases securitárias em que os planos privados de assistência à saúde se estruturam – temas visivelmente negligenciados pelos legisladores – não há como negar que os impactos da lei, no dia a dia das operadoras, foram (e vêm sendo) imensos, na medida em que todas precisaram rever e redesenhar as suas rotinas relativas ao recebimento, à análise e à regulação dos pedidos de autorização de cobertura.

Some-se a isso o fato de que as alterações trazidas pela Lei n°. 14.454/2022 dependem de noções - como “comprovação da eficácia” e “órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional” - que não são autoexplicativas e que comportam diferentes interpretações e entendimentos. Isso não bastasse, parece igualmente inegável que a lei desafia normas regulatórias fundamentais - como, por exemplo, a RN/ANS 424/2017 – criando um ambiente de insegurança e incertezas aos players desse mercado.

Logo que publicada a lei, a ANS registrou, em seu sítio oficial, o seu posicionamento acerca da nova medida - verdadeira nota de repúdio - por meio da qual consignou a “sua preocupação com a segurança dos usuários da saúde suplementar” e destacou que “a cobertura de procedimentos e eventos em saúde que não tiverem passado pela ampla e criteriosa análise da reguladora constitui risco aos pacientes, pois deixa de levar em consideração diversos critérios avaliados durante o processo de incorporação de tecnologias em saúde, tais como: segurança, eficácia, acurácia, efetividade, custo-efetividade e impacto orçamentário, além da disponibilidade de rede prestadora e da aprovação pelos conselhos profissionais quanto ao seu uso”. Embora tecnicamente escorreita, tal manifestação não passou disso, isto é, de uma nota, incapaz de impor qualquer freio aos novos dispositivos legais. Além disso, pelo menos até o momento da redação deste texto, não se viu qualquer movimentação da agência no ambiente normativo, favorecendo, ainda mais, a atmosfera de dúvidas e incertezas.  

Os impactos da Lei n°. 14.454/2022 não pararam por aí. Com a sobrevinda dessa lei, o STJ desafetou os recursos que se encontravam, desde 2021, separados para julgamento dessa questão no rito dos recursos repetitivos. Alguns Ministros, a partir daí, passaram a falar em rol exemplificativo com condicionantes, enquanto outros parecem ainda privilegiar àquilo que foi por eles decidido em junho (taxatividade mitigada). É certo, de todo modo, que a lei fragilizou a decisão proferida naqueles embargos de divergência, a tal ponto que, atualmente, não é possível traçar, com segurança, o entendimento daquela Corte sobre o tema, que certamente precisará ser revisitado pela Segunda Seção.

O que quer que tenha que acontecer, seja por parte da ANS ou do STJ, dificilmente o será antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) apreciar o pedido cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade n°. 7.265, proposta em 04 de novembro por importante organismo do mercado, por meio da qual pretende, em síntese, a imediata suspensão dos efeitos do sobredito § 13. Enquanto isso não acontece, o que a ANS fez, já em dezembro, foi a publicação da RN/ANS n°. 555, a qual, revogando a RN/ANS n°. 470/2021 (mas mantendo-a em sua essência, acrescida das alterações trazidas no princípio do ano pela Lei n°. 14.307), atualizou as regras envolvendo o processo de atualização do rol de procedimentos da ANS.

A despeito desse último capítulo, é absolutamente inquestionável que, em se tratando do rol de procedimentos da ANS, o ano termina do mesmo modo que finalizou 2021: imerso em confusão jurídica e aguardando posicionamento judicial. Diferentemente do ano anterior, contudo, 2022 termina com essa matéria não mais nas mãos do STJ, mas sim nas do STF.

2 de janeiro de 2023