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Driblando o Fair Play

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Autoridades do Brasil e da Europa assumem que as transações de jogadores de futebol exigem maior atenção das autoridades por conta dos riscos de lavagem de dinheiro

Futebol. Por muito tempo, e ainda hoje, um dos “ópios” do povo brasileiro. O esporte que mexe com a paixão e os nervos de muita gente, há muito deixou de lado o seu romantismo e pureza.

O esporte mais difundido do planeta é, antes de qualquer outra coisa, um negócio multibilionário e cada vez mais globalizado. Até os anos 1970, em geral, os jogadores faziam quase toda a carreira em um único time e, geralmente, no clube que revelou o atleta para o futebol. Os salários não chegavam nem perto dos que existem hoje e as transações entre clubes eram infinitamente menores. As transações intercontinentais na epoca, eram matéria-prima escassa. O quadro começou a mudar nos anos 1980, com mais clubes europeus, especialmente os italianos, saindo em busca de “craques” de diversos lugares do mundo.

Mas, foi a partir dos anos 1990 que o atual modelo começou a ganhar formas mais concretas. “A partir dos anos 90, o mercado profissional experimentou uma internacionalização sem precedentes, que permitiu transferências de recursos em dimensões transcontinentais. Uma desproporcional drenagem de valores em certas situações”, diz o Desembargador Fausto De Sanctis, uma das maiores autoridades em combate à lavagem de dinheiro do País.

Com o aumento do número de transações internacionais e, especialmente, o aumento dos valores envolvidos em um negócio até então pouco vigiado pelas autoridades, era questão de tempo até que se começassem a pipocar escândalos proporcionais ao avanço econômico do esporte. “No final dos anos 90, por exemplo, houve uma série de escândalos envolvendo os clubes italianos”, lembra o consultor Fernando Ferreira, sócio-diretor da Pluri, uma empresa de consultoria e gestão esportiva.

A exemplo de qualquer outra atividade que envolva grandes montantes de recursos financeiros, transações envolvendo jogadores de futebol podem ser usadas para lavagem de dinheiro. “A preocupação com o tema na indústria desportiva, não só no futebol, vem de longe. O GAFI, organismo intergovernamental independente que desenvolve políticas contra a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, publicou, em julho de 2009, o documento “Money Laundering through the Football Sector” (Lavagem de dinheiro no setor do futebol, numa tradução livre), que traça um perfil das vulnerabilidades do segmento, apresenta tipologias, bem como recomendações a se considerar nas regulamentações da atividade”, diz Joaquim da Cunha Neto, Coordenador-Geral de Supervisão do COAF, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.

Para De Sanctis acredita que o crime se aproveita da facilidade proporcionada pela diversidade estrutural do negócio do futebol e do pouco compromisso público de muitos dos atores do setor. Em 2007, a União Europeia publicou um estudo que traz a análise de vários casos que ilustram o uso do futebol como um veículo para lavagem de dinheiro, proveniente de atividades criminosas. Essa análise deixa claro que o problema seria mais profundo e complexo do que até então se pensava.

E, em 2012, a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou um relatório afirmando que o futebol é a maior lavanderia a céu aberto do mundo. A presença cada vez maior de sheiks árabes e magnatas russos e do leste europeu que se aproximaram do futebol, contribui para tornar o cenário ainda mais complicado. “Há indícios claros de lavagem nesses casos, como em situações de investimentos pesados não justificáveis e realizados em clubes muito pequenos ou por pessoas ou entidades, até mesmo religiosas”, acredita o Desembargador. Além disso, várias pessoas foram detidas por portarem somas em espécie em dólares saindo do Brasil logo após negociação com clubes do país.

O valor do talento

Apesar de bastante complexa, no universo das artes –  um ambiente muito propício para a lavagem de dinheiro, precificar uma obra-prima também envolve critérios mais objetivos de análise. O mais importante deles é que a obra não sofrerá alterações, já está finalizada, já está pronta. A única questão ainda fora de métricas é o gosto e o apreço do comprador com a obra, o que acontece quando a compra se dá para deleite próprio. Algo menos comum nos dias de hoje do que usar o segmento de arte como uma forma de investimento. As pessoas, no decorrer da história, podem até mudar a sua percepção sobre as suas qualidades, seu valor histórico, as técnicas utilizadas. O potencial de valorização da peça no mercado também pode ser avaliado de maneira menos subjetiva. Ainda assim, a obra continuará sendo ela mesmo.

Já quando a avaliação envolve um atleta de alto rendimento, como um jogador de futebol, existem uma série de aspectos técnicos e comportamentais que, além de bastante subjetivos, podem variar de acordo com as necessidades de quem o contrata, passando por fatores políticos, motivacionais e financeiros. Trata-se de um dos aspectos que torna o futebol um negócio interessante para a lavagem de dinheiro. E, ao mesmo tempo, o que dificulta a fiscalização nesta atividade.

No ano passado, o Real Madrid supostamente realizou a maior contratação do mundo. O clube teria pago 101 milhões de euros para ter em seu já estrelado time o galês Gareth Bale. A suposição fica por conta do clube madrilenho ter anunciado anteriormente o valor de 91 milhões de euros para a transação. O que foi desmentido pelos ingleses do Totteham, que afirmaram ter recebido os 101 milhões de euros pelo jogador, fazendo dessa transação a mais cara da história.

Independentemente dos 10 milhões de euros de diferença, a notícia surpreendeu não pelo valor estratosférico – o Real foi o primeiro clube a investir em contratações multimilionárias em série, mas sim pelo ativo adquirido por aquele valor. Longe de ser um craque feito, Bale é uma promessa. Ele foi considerado o melhor jogador da liga profissional inglesa em 2013, mas segundo a imprensa britânica, está longe de ser um novo Bobby Moore ou um Gary Lineker – só para citar alguns ícones do futebol britânico. Pelo alto valor, é pouco provável que o atleta se valorize muito mais do que o Real pagou por ele. E pelo aspecto do marketing, o galês – considerado um bom moço, bonito e centrado e extremamente profissional, é difícil acreditar que ele se converta em um novo David Beckham, o galã cujos negócios gerados pela sua imagem eram mais importantes para o clube do que o futebol praticado dentro de campo. Portanto, ele precisa ser uma máquina muito, mas muito  eficaz mesmo, de jogar futebol. É, na melhor das apostas, um negócio de alto risco.

Para tentar dar racionalidade em um tema onde ela ainda não costuma dar as caras com frequência, a PLURI desenvolveu uma metodologia de avaliação de jogadores que tem como base o processo de avaliação de empresas e que aos poucos está sendo adotada, inclusive internacionalmente.

Ainda que as metodologias científicas comecem a ser enxergadas como algo plausível, na ausência delas, o bom senso pode ser usado para identificar situações que podem, sem nenhuma acusação prévia, ser consideradas suspeitas. “O estranho é a existência de valores que fogem de toda e qualquer razoabilidade, embora, de fato, o futebol, por si só, tem atraído grande quantidade de investimentos privados nos jogadores, nos seus direitos de imagem, na publicidade, no patrocínio, nas apostas, na venda de produtos, ingressos e etc. Daí a necessidade de completa supervisão e checagem por autoridades isentas”, reitera Fausto De Sanctis.

Além da adoção gradativa de metodologias como a da Pluri, outras iniciativas no exterior podem oferecer ao mercado da bola algum tipo de balizamento. Só que para isso é preciso que a FIFA, a entidade que toma conta do esporte em âmbito global, torne obrigatória a divulgação de informações detalhadas sobre as transferências. Como diz o sócio-diretor da Pluri, essa ação aumentaria a vigilância, principalmente pela atuação da imprensa, o que reduziria o espaço para o ilícito. “Hoje, trabalha-se em cima de rumores, boatos e informações não confirmadas”, lamenta o consultor.

Tomando pulso da situação

Com 471 jogadores “exportados” apenas para a Europa, de acordo com o Cies Football Observatory, um centro independente de estudos sobre o futebol, sediado na Suíça, o Brasil é o maior fornecedor de pé de obra para mercados estrangeiros do planeta. Esse é um dos motivos que faz do Brasil um “hub” crucial no universo dos negócios da bola. A força exportadora do Brasil nesse setor não é de hoje. Por isso, o País já deveria estar de alguma maneira engajado para combater ameaças dessa natureza. Mas pouco se fala sobre o tema por aqui. Para Fernando, da Pluri, isso passa também pela baixa qualidade dos gestores envolvidos com o futebol, sejam em clubes ou federações.

Em 2009, a lavagem de dinheiro em atividades desportivas já foi objeto de meta na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), um grupo de articulação de  órgãos dos três poderes, Ministérios Públicos e da sociedade civil que atuam na prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

Desde 2012, com a alteração na lei que trata da prevenção à lavagem de dinheiro no Brasil, pessoas físicas ou jurídicas que atuem na intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de transferência de atletas, passou a integrar o rol de pessoas obrigadas a implementar mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro, como a identificação das partes envolvidas, registro das operações e obrigação de comunicar operações suspeitas.

Assim como foi feito com outros setores, como os de contabilidade e assessoria econômica, o COAF, órgão responsável por fiscalizar as atividades financeiras, busca identificar e definir o órgão regulador e fiscalizador do setor. Seria natural supor que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que exerce por aqui o mesmo papel que a FIFA ocupa globalmente. Mas, no futebol, nada é tão preto no branco. “Por se tratar de atividade que integra várias contrapartes (atleta, clube, empresas proprietárias do passe, agentes, gestores de carreira, patrocinadores, federações, confederações), a definição do órgão regulador não é tarefa fácil”, lembra Joaquim, do COAF. O tema integrou as discussões da ENCCLA 2014 e também uma iniciativa do Ministério Público Federal. Caso não consiga identificar um órgão regulador próprio, a responsabilidade de regular e fiscalizar o setor no que diz respeito à prevenção à lavagem de dinheiro será do próprio COAF.

Ainda que não seja eleito como o órgão regulador da atividade que envolve a transação de jogares, a CBF assim como a FIFA, pela sua amplitude sobre diversos aspectos dos negócios do esporte, poderiam contribuir muito para dar mais transparência nas operações de transferência de jogadores. Mas dado o histórico da entidade (de ambas, na verdade) é pouco provável que algo dessa natureza aconteça no curto prazo. “Ambas, FIFA e CBF, já deram mostras suficientes de que, mais do que investir no futebol, perseguem interesses comerciais de forma excessiva. Isto, em muitas situações, leva tais entidades  a não agir com a isenção necessária para, por si só, atuarem firmemente no combate à lavagem de dinheiro”, acredita De Sanctis.

Fernando, da Pluri, vai na mesma linha do promotor: “Por sua natureza eminentemente política, este tipo de entidade tem por característica se manter afastada do problema e ‘lavar as mãos’. Não há um trabalho preventivo e educativo. Se ocorrer um problema, o clube é responsável sozinho.”

De Sanctis lembra ainda que a lei obriga pessoas físicas ou jurídicas que atuem na promoção, intermediação, comercialização, agenciamento ou negociação de direitos de transferência de atletas a comunicação de operações suspeitas. Mas na visão dele, não houve idêntica atribuição aos clubes de futebol, federações e confederações. “Espera-se do Brasil uma postura muito clara e firme em face das entidades que gerenciam o futebol já que, sem o país, elas perdem muita força e prestígio dada a sua mundialmente reconhecida importância nesse esporte”, comenta.

Atenção global

Se o Brasil ainda dá os primeiros passos na tentativa de ampliar a supervisão e o controle sobre as transações, algumas nações europeias já lançaram mão de medidas dessa natureza há algum tempo.

Para Fernando, da Pluri, pelo modelo societário dos clubes, mesmo dependente de investimentos externos, a Alemanha está mais adiantada nos mecanismos de controle.

A França criou a Direção Nacional de Controle de Gestão (Direction Nationale du Contrôle de Gestion) para controlar as finanças de clubes desportivos, profissionais e amadores. O órgão audita e aprova previamente qualquer  negociação com base nas demonstrações financeiras. Historicamente a liga de futebol da Gália nunca esteve no topo das grandes transações entre jogadores do planeta. Mas com a chegada de investidores árabes, o Paris Saint-Germain e o Mônaco, dois dos principais clubes franceses, saíram contratando jogadores caríssimos a torto e a direito.

Joaquim, do COAF, também cita a iniciativa italiana que criou o COVISOC, o sistema de vigilância responsável pelo controle financeiro dos clubes de futebol profissional da Federação de Futebol Italiana.

Na Inglaterra, o maior mercado do mundo, a situação ainda é um pouco mais nebulosa. A forte presença de magnatas russos e, mais recentemente, sheiks árabes, como donos de clubes tradicionais do país, faz com que os súditos da Rainha Elizabeth II façam vista grossa para os negócios, apesar de ser comum a divulgação dos números das transações para a imprensa.

Já na Espanha, os recentes problemas envolvendo a transação do craque brasileiro Neymar – cujo valor total da transação só agora começa a ser conhecido, a transparência não deve dar as caras tão cedo. O arquirrival Real Madrid está exigindo do Totteham, da Inglaterra, confidencialidade no contrato firmado para a venda de Gareth Bale, aquele cuja transação é, supostamente, a mais cara do mundo.

Matéria publicada originalmente na edição nº 05 (Março/2014), da revista LEC.

Fonte: LEC, em 27.01.2015.