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A nova responsabilidade das empresas perante a Lei nº 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”): inovações e considerações

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KarenLouiseJeanetteKaren Louise Jeanette Kahn
Procuradora da República. Membro do Ministério Público Federal desde 1998. Formada em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestrado em Justiça Criminal pela State University of New York.

RESUMO: O presente artigo traz a lume os principais aspectos sobre a responsabilidade civil e administrativa das pessoas jurídicas que praticarem atos ilícitos contra a Administração Pública, por intermédio de seus representantes legais ou dirigentes, chamando à reflexão os avanços e perspectivas para a completa integração e eficácia da Lei Federal nº 12.846/2013.

PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil e administrativa das empresas. Compliance. Acordo de leniência.

ABSTRACT: This article brings to light the main aspects about the civil and administrative responsability of the companies, which commit unlawful acts against the Public Administration through their legal representatives or controllers, bringing to reflection the improvements and perspectives for the entire integration and efficacy of the Federal Law nº 12.846/2013. KEYWORDS: Civil and administrative responsability of the companies. Compliance. Leniency agreement.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Alguns fatores que motivaram a edição da lei. 3. O Brasil e os compromissos internacionais de combate à corrupção. 4. Principais alterações trazidas pela nova lei. 5. Formas de responsabilização das pessoas jurídicas. 6. A responsabilidade dos administradores das pessoas jurídicas autoras dos ilícitos definidos pela lei. 7. Responsabilização das empresas anteriormente à edição da lei. 8. Penalidades aplicáveis às pessoas jurídicas. 9. As empresas estrangeiras também foram contempladas pela nova lei. 10. A natureza jurídica das sanções aplicáveis às pessoas jurídicas autoras de ilícitos contra a Administração Pública. 11. A reparação de danos pelas pessoas jurídicas condenadas pelos ilícitos definidos na lei. 12. A desconsideração da personalidade jurídica. 13. O compliance como controle preventivo das infrações contra a Administração Pública. 14. O acordo de leniência e a colaboração das empresas envolvidas nos ilícitos contra a Administração Pública. 15. O acordo de leniência no âmbito das licitações públicas. 16. A necessidade da participação do Ministério Público na celebração e acompanhamento dos acordos de leniência. 17. A importância da célere regulamentação da nova lei. 18. Conclusão.

1. Introdução.

A edição da Lei nº 12.846/2013, a chamada “Lei Anticorrupção”, dentre outros aspectos positivos, trouxe à luz o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, da necessidade de um enfrentamento compartilhado da luta contra a corrupção, como um mal transnacional endêmico, que, há séculos, subverte os valores da ética social, empresarial e da moralidade pública, inclusive em nível internacional, contaminando a cultura e os hábitos de nossa sociedade, permeando seus diversos segmentos, além de sua estreita vinculação com outras formas de delinquência, em especial, o crime organizado e a lavagem de dinheiro.

2. Alguns fatores que motivaram a edição da lei.

Fomentaram essa iniciativa as crescentes manifestações e demandas populares, ao lado da forte cobrança de organismos internacionais, pela necessidade de adoção de medidas mais rigorosas, pelo legislador brasileiro, para coibir práticas que lesionam e oneram a Administração Pública.

A corrupção, em especial, segundo dados da FIESP, reduz a eficiência do gasto público e provoca o desestímulo ao investimento privado, impactando no nível do PIB per capita. Com efeito, os dados do Relatório de 2010 (“Corrupção: custos econômicos e propostas de combate”) revelam que os prejuízos econômicos e sociais gerados pela corrupção, no Brasil, já, naquela época, apresentavam um custo de 1,38% a 2,3% do PIB, o que, atualmente, corresponderia a cerca de 50,8 a 84,5 bilhões de reais. Dentre estes prejuízos, apontam-se os que afetam a competitividade das empresas, o potencial de crescimento da economia e os índices de desenvolvimento humano, resultando num estado de decadência econômica, social e moral da sociedade brasileira.

3. O Brasil e os compromissos internacionais de combate à corrupção.

Em dezembro de 2013, a ONG Transparência Internacional, por meio do chamado CPI (Índice de Percepção da Corrupção), produziu relatório, segundo o qual o Brasil, desde 2013, vem ocupando a 72oª posição no ranking mundial, em meio a 177 países analisados, num movimento decrescente em relação a 2010 (69oª posição), marcando um score de 42 pontos. Referida pontuação, inobstante possa estar atrelada a um possível aumento das denúncias de fraude e corrupção no país nos últimos anos, de qualquer forma, está bem abaixo da média dos 50 pontos, a indicar a existência, no país, de graves problemas dessa ordem.

Tal classificação manteve o Brasil, ainda, atrás de diversos países das Américas, não obstante signatário de importantes Convenções Internacionais, em vigor, como a Convenção da OEA de 1996 (Convenção Interamericana contra a Corrupção), da OCDE de 1997 (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que trata do combate ao suborno de oficiais públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais) e da ONU de 2003 (Convenção de Mérida – que proíbe práticas de suborno envolvendo funcionários públicos estrangeiros e nacionais). Desde então, o país vinha mantendo, em prateleira, compromisso assumido internacionalmente, quanto à edição de legislação que penalizasse, inclusive, as empresas por crimes de corrupção transnacional.

A nova lei, entretanto, trouxe, para o ordenamento jurídico pátrio, instrumentos normativos importantes para auxiliar no combate preventivo e repressivo daqueles ilícitos, desta feita, alargando, efetivamente, o universo de sujeitos legais potencialmente ativos e passíveis de punição civil e administrativa.

Tal iniciativa já fora precedida por diversas legislações estrangeiras que punem as práticas de corrupção, como as da Alemanha (de 1998 e a adoção do programa de whistleblowers ou “denunciantes dentro da empresa”), França (2007), Itália (2012), EUA (1997, com o chamado FCPA – Foreign Corruption Practices Act – que reprime as práticas de corrupção, quando, também, perpetradas no exterior, envolvendo empresas americanas, seus cidadãos e residentes nos EUA) e Inglaterra (Bribery Act, de 2010, ainda mais severa, ao criminalizar, a ausência na adoção de medidas preventivas anticorruptivas pelas empresas). No cenário internacional, inclusive, há exemplos recentes de condenações de empresas multinacionais que infringiram tais legislações, e mesmo de empresas nacionais, que, atualmente, respondem por tais práticas, como por suborno internacional, perante a justiça norte-americana.

4. Principais alterações trazidas pela nova lei.

A chamada “Lei Anticorrupção”, muito embora padeça de algumas lacunas quanto a importantes aspectos ainda por regulamentar, adotou disciplina mais rigorosa em relação à prática de atos que atentam contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra os princípios da Administração Pública e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, determinando a responsabilização de pessoas jurídicas (sociedades empresariais, simples, personificadas ou não, fundações, associações, nacionais ou estrangeiras, com sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídas de direito ou de fato), como autoras ou partícipes de tais infrações.

Para tanto, veicula instrumentos de reconhecida valia para o seu melhor e mais frontal enfrentamento, ao mesmo tempo, apontando para a insuficiência dos mecanismos legislativos já existentes em nosso ordenamento.

Trata-se de diploma legal pioneiro, no sentido de impor sanções pecuniárias e outras de cunho administrativo e civil, por meio de processo administrativo e/ou judicial, a empresas condenadas no âmbito das práticas contra a Administração Pública. Seu alcance, ademais, visa arrefecer, além da própria corrupção, práticas infracionais interligadas ou reflexas – a exemplo dos atos de improbidade administrativa, fraudes à licitação, formação de cartel, evasão de divisas e lavagem de dinheiro – os quais, no âmbito das infrações contra a Administração Pública, são frequentemente perpetrados em nome de pessoas jurídicas, muitas delas concebidas como entes de complexa composição societária, justamente para diluir responsabilidades e dissimular ilícitos de seus titulares.

5. Formas de responsabilização das pessoas jurídicas.

As pessoas jurídicas responderão, objetivamente, como autoras ou partícipes, por lesões à Administração Pública que malferirem seus bens, direitos e interesses, quer na órbita civil ou administrativa, e mesmo quando derivadas de infrações penais de seus dirigentes, prepostos e empregados, praticados em seu nome (como atos de corrupção e de fraudes à licitação), devendo ser civilmente responsáveis por estes, pelo financiamento de atos ilícitos definidos na lei, utilização de interposta pessoa para tais práticas ou ocultação de seus beneficiários.

Instituiu, assim, o legislador, novos meios para debelar condutas de empresas que se mostram arraigadas à prática inescrupulosa do “molhar as mãos” de agentes públicos, obtendo, em contrapartida concomitante ou futura, vantagens ilícitas nos atos negociais e contratos com a Administração Pública. Neste sentido, buscou a Lei nº 12.468/2013, desta feita, parceria com tais agentes econômicos, como protagonistas, beneficiários diretos ou indiretos dessas práticas, à frente de quem as controla.

6. A responsabilidade dos administradores das pessoas jurídicas autoras dos ilícitos definidos pela lei.

De outra parte, a responsabilização civil das pessoas jurídicas de direito privado não exclui a possibilidade de responsabilização pessoal, inclusive criminal, de seus dirigentes ou administradores, na medida de sua culpabilidade, ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito, a exemplo do que já preconiza o artigo 43 do Código Civil com relação às pessoas jurídicas de direito público interno. Da mesma forma, eventual e anterior apuração da responsabilidade individual dos dirigentes ou prepostos da pessoa jurídica não impede seja esta acionada para os fins da Lei nº 12.846/2013.

7. Responsabilização das empresas anteriormente à edição da lei.

Até a sua edição, permitia-se, apenas, a punição pessoal do agente público flagrado, por conta da prática de atos de improbidade ou por delitos contra a Administração Pública, como a corrupção, peculato, concussão. A empresa eximia-se de qualquer responsabilidade, que acabava por ser transferida à pessoa física que praticou o delito, via de regra, ao seu empregado, ante a dificuldade de se provar que atuava seguindo ordens, ou, quando muito, ao seu administrador ou sócio-gerente, sendo sua demissão a medida mais profilática anunciada pela empresa para “minimizar o dano”, mas sem que isso, em verdade, alterasse o perfil antiético e ilegal de sua atuação empresarial. Em casos outros, pessoas jurídicas vinham sendo utilizadas como um anteparo jurídico para encobrir condutas pessoais de seus dirigentes, blindando-os de ações fiscalizatórias e persecutórias, em especial, por meio de estratégias e artifícios societários, que dificultavam a sua identificação e responsabilização individual.

Por isso é que, atualmente, as empresas não mais poderão alegar o desconhecimento dos atos de seus prepostos, em ações envolvendo órgãos estatais, e terão que responder, objetivamente, por tê-las acobertado, inclusive por não terem evitado o pagamento da propina ou suborno a um dado agente público, eventualmente constatado. E é por esta razão, também, que a responsabilização prevista para as pessoas jurídicas – e que inclui as empresas coligadas, controladas e consorciadas no âmbito da nova lei – independe de alterações contratuais ou societárias de qualquer espécie que lhe sobrevenham, evitando que tais expedientes confundam ou tangenciem as autoridades públicas encarregadas da investigação, diluindo ou desviando a sua condição de agente primeiro na prática do ato ilícito.

8. Penalidades aplicáveis às pessoas jurídicas.

Atualmente, a pessoa jurídica que ilegalmente transacione com agentes do Poder Público passa a ser alvo de processo administrativo e judicial, que abrange, dentre as sanções possíveis: o pagamento de multa (até 20% do faturamento anual bruto, ou de até 60 milhões de reais), proibição de receber incentivos, empréstimos ou financiamentos do Poder Público, suspensão ou interdição parcial de suas atividades ou mesmo sua dissolução, além da proibição de participar em licitação e de contratar com a Administração Pública, esta última, também já cominada pela Lei nº 8.666/1993. Tais penalidades são fixadas sem prejuízo da obrigação de reparação total do dano causado ao erário público, esta igualmente já prevista na Lei de Licitações, como condição para a reabilitação da empresa, visando novas contratações com o Poder Público.

9. As empresas estrangeiras também foram contempladas pela nova lei.

Evidencia-se, no âmbito deste novo diploma, a preocupação do legislador em estender a eficácia de seus comandos às empresas estrangeiras, suas filiais, e com representação ou sede no território brasileiro, as quais, com alguma frequência, invocavam normas internacionais não aplicáveis no Brasil, logrando desvencilhar-se da responsabilidade por seus atos ilícitos aqui praticados.

A praxe revela, ainda, que algumas delas, sem grande comprometimento com as regras que regem as relações econômicas com a Administração Pública brasileira, encontram, em especial, no âmbito das contratações públicas – e ao lado de outras empresas nacionais – um ambiente propício para a formação de cartéis, de fraudes à licitação, de ações de corrupção e lavagem de dinheiro, devendo ora responder, ao lado dos agentes públicos eventualmente envolvidos, pelos atos ilícitos em que incorrerem, nos termos ora definidos pela nova lei.

Por fim, a importância da nova disciplina trazida pela lei, particularmente no tocante ao seu propósito de instituir um controle preventivo de ilícitos praticados por pessoas jurídicas contra a Administração Pública, ganha especial relevo com relação às empresas multinacionais sediadas no país ou suas filiais. Tais empresas possuem um importante papel, como agentes de integração econômica e social, geradoras de empregos e empreendedoras de condutas, cujos valores tendem a se irradiar no meio empresarial e social (inclusive em nível transnacional), criando padrões de comportamento e de cultura empresariais, e podendo afetar, direta ou indiretamente, importantes segmentos da economia nacional. Assim sendo, eventual atuação que não esteja pautada na devida lisura no exercício de suas atividades interfere, sensivelmente, na construção e no exercício da ética empresarial, bem assim na responsabilidade social das empresas de uma forma geral, razão pela qual a presente lei tem o condão, também, de incentivar suas boas práticas, monitorando os seus procedimentos de prevenção de ilícitos cíveis e criminais no âmbito da corrupção nacional e internacional.

10. A natureza jurídica das sanções aplicáveis às pessoas jurídicas autoras de ilícitos contra a Administração Pública.

De outro lado, a previsão de severas sanções, inclusive pecuniárias, perdimento de bens e outras que poderão afetar diretamente o próprio funcionamento da empresa, gera a ideia de uma lei com perfil de responsabilização penal, mas sob o fundamento de simples responsabilidade objetiva, por meio da qual, para fins de eventual condenação, se dispensa a comprovação da culpa do agente, no caso, da pessoa jurídica.

Porém, a sistematização de suas regras indica que o legislador cuidou de compartimentar as diversas formas de responsabilização, justamente atentando para a essência e natureza dos ilícitos possíveis de serem praticados por pessoas jurídicas, não obstante o rigor empregado, buscando um enfoque amplo e multidisciplinar para prevenir e combater, eficazmente, tais infrações, em particular, dentro do formato recomendado pela própria Convenção de Mérida.

Em primeiro, é a própria lei civil que dá sustentação às sanções previstas na lei nova, na medida em que conferiu ao legislador a possibilidade de penalizar a pessoa jurídica que empreender atos ilícitos de natureza civil e administrativa contra o patrimônio ou quaisquer interesses da Administração Pública, ainda que praticados por comando de seus administradores. É, na prática, a tradução do disposto no artigo 47 do Código Civil, segundo o qual “obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”. Desta forma, as empresas que incorrerem nas infrações abarcadas pela Lei nº 12.864/2013 respondem objetivamente, a despeito e independentemente da culpa individual de seus dirigentes, a ser apurada em procedimento ou ação diversa.

Trouxe, ainda, o legislador, para o bojo do referido diploma legal, a regra civil preconizada para as pessoas jurídicas de direito público interno segundo a qual, a teor do artigo 43 do Código Civil, “as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus agentes, que, nessa qualidade, causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”, estendendo-a, igualmente, às sociedades privadas.

Neste caso, e nesta fase primeira de detecção de ilícitos contra a Administração Pública, e desde que se estabeleça o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso à Administração Pública, inviável se revela qualquer discussão envolvendo eventual culpa da empresa, justamente pelo fato de que o conceito de culpabilidade (a englobar a noção de culpa stricto sensu e dolo) pressupõe ação ou omissão humana, inadequados à natureza da pessoa jurídica, como ser abstrato que é, muito embora sujeito legalmente apto a praticar atos jurídicos, incorrendo em ações e infrações.

Em segundo, e acentuando-se o caráter civil e administrativo do mesmo diploma legal, o legislador previu o dever de a empresa publicar, em meios de comunicação de ampla circulação, decisão de sua condenação, que também deve ser inscrita no chamado CEIS

Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas como forma de acautelar e alertar os consumidores, além da própria Administração Pública, na aquisição de seus produtos e serviços.

A tais penalidades administrativas, somam-se, ainda, as previstas no artigo 6º da lei (multa de 1% a 20% e publicação extraordinária da decisão condenatória), para serem aplicadas autonomamente, ou em caso de não ter sido adotada medida de caráter investigativo por parte da autoridade pública administrativa competente.

Sanções como perdimento de bens, direitos e valores que sejam produtos do ilícito praticado pela empresa, suspensão ou interdição parcial de suas atividades, sua dissolução e/ou vedação de receber recursos públicos, aplicáveis judicialmente à pessoa jurídica, após ajuizamento de ação pelo Ministério Público ou Advocacia Pública competente, por si só não as autodefine como sendo de cunho penal, a demandar a comprovação de culpa da pessoa jurídica ou de seus dirigentes, sendo algumas delas também previstas na Lei de Improbidade e na legislação que rege o Sistema Financeiro Nacional, no âmbito administrativo-financeiro.

Daí porque de formatação adequada o modelo de responsabilidade objetiva empregado na lei, que visa atender, com maior celeridade, à necessidade da constatação primeira do ato e do resultado ilícito com responsabilização do agente econômico, ligado, direta ou indiretamente à sua prática.

11. A reparação de danos pelas pessoas jurídicas condenadas pelos ilícitos definidos na lei.

Partindo de tais premissas, a Lei nº 12.846/2013 cuidou, justamente, de delimitar “territorialmente” o âmbito da responsabilização civil e administrativa de tais agentes. Desta forma, prevê, em caso de condenação administrativa ou judicial, o dever de a empresa promover a reparação integral do dano causado (anteriormente apenas afeta à pessoa física e agente público). Observa-se que, inobstante haja processo administrativo concluído em seu desfavor – o que já autoriza, desde logo, a aplicação das sanções prescritas –, a reparação do dano demanda a necessidade do ajuizamento de outro processo administrativo pelo Poder Público.

Já no caso de ajuizamento ação judicial pelo Ministério Público ou Advocacia Pública competente, para a responsabilização da empresa que tiver sido autora de condutas tipificadas pelo artigo 5º da Lei nº 12.846/2013, a obrigação de reparar o dano decorre diretamente da sentença condenatória ou de procedimento de liquidação que lhe sobrevenha.

12. A desconsideração da personalidade jurídica.

Em contraponto à adoção da regra da responsabilidade objetiva, consignou o legislador a possibilidade da desconsideração da personalidade jurídica da empresa envolvida, com a extensão de sua eventual responsabilidade pelos atos ilícitos aos seus prepostos ou dirigentes com poderes de administração. Quanto a esse tópico, reproduziu, também, regra do Direito Privado (art. 50 do CC), autorizando tal medida, se comprovado restar, durante o processo administrativo, que a utilização da pessoa jurídica se deu com abuso da personalidade jurídica (utilização da empresa como fachada), para o encobrimento de prática das infrações previstas na lei (desvio de finalidade) ou para provocar confusão patrimonial. Neste caso, tais circunstâncias demandam, extensivamente, a comprovação da conduta intencional por parte de seus administradores e sócios com poderes de direção quanto a tais propósitos, a ser apurada com as garantias da ampla defesa e do contraditório.

13. O compliance como controle preventivo das infrações contra a Administração Pública.

A Lei nº 12.846/2013 instituiu o chamado compliance, a ser adotado pelas pessoas jurídicas em suas relações negociais com o Poder Público, já utilizado por muitas empresas privadas e, de regra, pelas instituições financeiras.

Trata-se de importante ferramenta que vem ao encontro de uma forte demanda social e de órgãos internacionais para que o Brasil desenvolvesse mecanismos de ordem preventiva contra a corrupção e delitos que lesem a Administração e o patrimônio públicos. O objetivo é buscar que as empresas criem, em seu âmbito, formas de controle interno, de segurança e auditoria, com uma disciplina contábil mais rigorosa, tudo consubstanciado em normas, regulamentos, padrões, políticas de ética empresarial e de lisura nas relações jurídicas, inclusive contratuais, com o poder público, capazes de levar, em tempo, à detecção e à repressão de tais práticas. Esse tipo de regramento interno – e que demanda uma ação mais transparente por parte das empresas que se relacionam com a Administração Pública, a exemplo da transparência legalmente exigida e regulamentada para suas próprias

ações (LC 131/2009 e Decreto 7.185/2010) – deve abranger, em tese, desde a verificação da integridade na atuação da própria empresa, confiabilidade de seus negócios, regras de visitação pelos agentes públicos e os relacionamentos e comunicações com estes travados pela empresa, pagamentos sem causa, até a realização de atos negocias e procedimentos de contratação com o Poder Público, por meio de seus servidores ou entes que o representam.

Tal previsão, além de imprimir um conceito muito mais abrangente ao combate convencional à corrupção e demais infrações que afetam os valores, bens e interesses da Administração Pública, traz, como pedra de toque, a necessidade de um controle social, por meio dos agentes econômicos envolvidos em tais ações, devendo estimular, inclusive, a participação de funcionários da própria empresa, auxiliando-os, tecnicamente, e dentro de sua rotina de trabalho, na identificação e denúncia de atos suspeitos, desvios ou atos que indiquem supostas irregularidades nas relações da companhia com o Poder Público.

Ademais, a comprovação, pela empresa investigada, da existência ou aprimoramento deste tipo de controle interno e de procedimentos que foquem numa política e numa prática de ética e integridade neste campo, é fundamental e deve ser considerada pela autoridade pública na aplicação de sanções administrativas e judiciais, nos termos da referida lei.

14. O acordo de leniência e a colaboração das empresas envolvidas nos ilícitos contra a Administração Pública.

Como forma de contrabalançar o considerável rigor da nova lei, foram previstos benefícios às empresas que, muito embora envolvidas em infrações dessa ordem, também cooperem com as investigações.

Assim, passa a ser autorizado o chamado acordo de leniência, já interiormente desenhado pela Lei nº 12.529/2011, e cuja aplicação vem alcançando significativos resultados, de ordem administrativa e penal, inclusive em nível internacional, na obtenção de provas para a comprovação de ilícitos no âmbito das infrações anticoncorrenciais, como os cartéis.

No caso da nova lei, desde que a pessoa jurídica, de forma inédita – e antes de qualquer outra – reporte, à autoridade pública competente, os fatos infracionais de que teve conhecimento, confesse e cesse com a prática ou envolvimento na infração, identifique as demais empresas eventualmente participantes e coadjuvantes no(s) ato(s) ilícitos praticados contra a Administração Pública, procedendo à entrega, à mesma autoridade, de informações e documentação suficiente para comprovar a sua prática e autoria, poderá ser beneficiada com a redução da pena de multa em até dois terços ou com a isenção da aplicação de determinadas sanções, como a proibição à pessoa jurídica de receber recursos do Poder Público ou entidades que o representem, no período de um a cinco anos.

Tal isenção, porém, é parcial, na medida em que a lei enumera os benefícios com os quais a empresa pode ser contemplada, não a isentando, ao que tudo indica, de responder ao processo administrativo ou judicial, nem das demais sanções daí decorrentes, se condenatórias as respectivas decisões, a despeito do cumprimento do próprio acordo, inclusive, remanescendo a responsabilidade da empresa leniente pela reparação integral do dano causado.

Este modelo de leniência exprime parâmetros mais severos, diferenciando-se, de certa forma, do alcance da Lei nº 12.529/2011, que estabelece a possibilidade da extinção da punibilidade administrativa e mesmo penal processual de forma integral, a depender da extensão da colaboração da empresa na apuração das práticas em que se confessou envolvida, incluindo seus dirigentes.

De toda a forma, para a obtenção dos benefícios oriundos do acordo de leniência, indispensável se faz o cumprimento de suas condições, e será avaliada segundo o grau de eficácia e extensão da colaboração da empresa leniente junto às autoridades investigadoras.

15. O acordo de leniência no âmbito das licitações públicas.

Destaca-se a previsão acerca da possibilidade de a própria Administração Pública celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos no âmbito das licitações públicas, para fins de isenção ou atenuação das sanções administrativas previstas nos artigos 86 a 88 da Lei nº 8.666/1993, dentre as quais: multas, pelo atraso injustificado, inexecução total ou parcial do cumprimento dos contratos, penas de advertência, suspensão temporária, impedimento de contratar com a Administração Pública e até declaração de sua inidoneidade para com ela licitar.

Inclusive, eventual descumprimento do acordo de leniência por parte da empresa gera, por lei, o impedimento de esta celebrar um novo, no prazo de três anos, a partir do conhecimento pela Administração Pública proponente. Neste caso, ou em sendo rejeitada a proposta de acordo, a empresa ficará sujeita às mesmas sanções previstas anteriormente à sua celebração, não valendo, porém, como meio de prova, o reconhecimento de seu ato ilícito, caso o acordo venha a ser rejeitado.

Trata-se, em verdade, de um passo à frente nos métodos investigativos, para facilitar a identificação das fraudes praticadas no âmbito das licitações e de seus envolvidos, de apuração alongada e de prazos prescritivos reduzidos.

Depreende-se, portanto, que a instituição, pela Lei nº 12.846/2013, do acordo de leniência, no âmbito da apuração das infrações por pessoas jurídicas contra a Administração Pública, veio fortalecer e contribuir para a instrução dos procedimentos administrativos e judiciais instaurados a partir de sua vigência, estimulando, de um lado, a maior cooperação de empresas envolvidas em tais práticas e, de outro, auxiliando as autoridades públicas na obtenção mais célere de provas e na identificação de outros eventuais coparticipantes dos ilícitos.

16. A necessidade da participação do Ministério Público na celebração e acompanhamento dos acordos de leniência.

Neste passo, indispensável ressaltar – e seria de rigor futura regulamentação consignar – a necessidade da participação do Ministério Público, da esfera civil e criminal, estadual e/ou federal, e da Advocacia Pública competente, na celebração do acordo, ao lado da Controladoria Geral da União (Órgão competente para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo e de atos lesivos contra a Administração Pública estrangeira), ou mesmo junto aos representantes do Poder Legislativo ou Judiciário – em cuja esfera o ilícito decorrente da Lei nº 12.846/2013 tiver sido praticado – como forma de dar ao Ministério Público Federal ou Estadual conhecimento dos atos infracionais praticados sob sua esfera e de compatibilizá-los com futuros ajuizamentos de ações de improbidade administrativa, de reparação de danos ou de ações penais atreladas ao mesmo fato.

Ocorre que, com base na legitimidade conferida pela nova lei ao Ministério Público e à Advocacia Pública, podem ambos ajuizar ação civil contra a pessoa física infratora, bem assim requerer a aplicação de sanções (como a da proibição temporária de obter recursos do Poder Público ou de suas entidades), objeto de possível isenção no acordo de leniência. Assim sendo, emana como conclusão lógica a imprescindibilidade da participação de ambos os órgãos na sua celebração, pelo seu patente interesse jurídico, inclusive para o próprio acompanhamento de seu cumprimento por parte da empresa leniente.

Do contrário, são grandes os riscos de decisões e postulações contraditórias: na esfera administrativa, de um lado, com a eventual propositura do acordo de leniência por representante do Poder Público e proposta de isenção de penas; de outro, na esfera judicial, quando, por desconhecer a leniência proposta, ajuíza o Ministério Público pleito com pedido de condenação para os mesmos fatos e ilícitos nela tratados.

Inclusive, a própria Lei nº 12.846/2013 declara que a responsabilidade da pessoa jurídica reconhecida em âmbito administrativo não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial, a não ser que, conjuntamente com as demais autoridades, o Ministério Público fosse, igualmente, signatário do referido acordo de leniência, caso em que deve ou não acordar acerca da isenção ou atenuação de penalidades. Ademais, não seria vinculativo o referido acordo, sem a participação de tais órgãos, sob pena de se promover o engessamento de suas ações e prerrogativas, na defesa judicial de bens, direitos e interesses, tanto protegidos pela Lei de Improbidade, quanto pela Lei Penal.

A previsão de participação do Ministério Público na celebração dos acordos de leniência pode resultar na otimização e concentração na coleta de provas, com o seu possível compartilhamento, dentro do universo de apuração das responsabilidades administrativa, civil e criminal, atendendo ao princípio da economia processual e impedindo que avancem, a passos largos, os prazos prescritivos.

17. A importância da célere regulamentação da nova lei.

É de suma importância que sobrevenha, em prazo abreviado, legislação complementar que regulamente, além do próprio instituto do compliance e seus parâmetros de avaliação, a identificação e formas de responsabilização civil, administrativa e penal das autoridades públicas que tenham deixado de adotar, de forma culposa ou dolosa, as providências necessárias à apuração dos fatos tratados pela Lei nº 12.846/2013.

Ocorre que, não sendo instaurados processos administrativos de responsabilização de pessoas jurídicas nos casos legais – e em desconhecendo o Ministério Público tais circunstâncias –, aumenta o risco concreto da prescrição das infrações cometidas, inclusive com relação a outros delitos possivelmente correlatos, de persecução devida pelo Ministério Público, o que resultará em impunidade da pessoa jurídica envolvida.

Desta forma, disposição normativa complementar deve regulamentar eventual omissão (culposa ou dolosa), por parte da autoridade pública competente, para deflagrar tais processos, assim impedindo que o esforço da lei no seu propósito de coibir tais práticas reste inócuo ou arrefecido.

Observa-se, ainda, que eventual sanção imposta à pessoa jurídica judicialmente condenada em âmbito estadual, federal ou municipal, referente à proibição temporária de receber incentivos, subvenções, doações de órgãos públicos ou instituições financeiras públicas, deve surtir efeitos em todas e quaisquer outras esferas de poder, no âmbito da Administração Pública. A intenção do legislador, neste caso, é visivelmente voltada a prestigiar valores como a ética e a integridade empresariais e a moralidade no trato da coisa pública, em todos os níveis, não cabendo, neste caso, fazer-se distinção não prevista na lei.

18. Conclusão.

É certo que o combate a crimes contra a Administração Pública e à corrupção, em particular, demanda, invariavelmente, a conjugação de esforços dos diversos segmentos da sociedade (no setor privado e público), baseado na criação e fortalecimento dos métodos e práticas de prevenção e repressão a tais delitos, monitoramento e controle das ações e gastos do Poder Público, regulamentação do financiamento das campanhas eleitorais, bem assim na atuação e reestruturação de uma justiça mais rápida e eficaz, de modo a impedir que suas deficiências se traduzam, ao final dos processos judiciais (civis e penais), em estímulo a novas práticas nesta órbita de ilícitos.

Até aqui, porém, e cumprindo o Estado brasileiro com mais um dos importantes compromissos internacionais assumidos, dentro do âmbito da cooperação transnacional, no que tange ao combate à corrupção, e, sobretudo, no campo da prevenção das infrações contra a Administração Pública, tem-se a Lei nº 12.846/2013 e seu novo arcabouço legal – ao lado de importantes diplomas legais, como o de acesso à informação pública, da transparência da gestão fiscal, do crime organizado e da lavagem de dinheiro – como um avanço significativo, frente a outras legislações estrangeiras de reconhecido rigor nesse aspecto, estabelecendo vetores importantes para propiciar à sociedade brasileira e, especialmente, ao segmento empresarial que interage com o Poder Público, uma mudança cultural e de condutas, quiçá eficaz na redução da larga impunidade no âmbito de tais infrações.

Bibliografia.

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Fonte: Revista do TRF3 - Ano XXV - n. 122 - Jul./Set. 2014.