O trauma é uma das principais causas de morte em jovens e demais pessoas economicamente ativas em todo o mundo. Lidar com esse tipo de situação exige expertise, preparo técnico e capacidade de promover decisões rápidas. A importância desse assunto entre especialidades cirúrgicas levou a Câmara Técnica de Cirurgia Geral do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo a organizar o 1º Simpósio de Cirurgia Geral: Urgências e Trauma no dia 26 de julho, evento realizado na Sede da entidade, na Consolação.
Dividido em palestras ocorridas no período da manhã e tarde, o evento foi um sucesso de público, lotando o auditório, mezanino e outras áreas no Cremesp. Fizeram parte do painel de abertura do simpósio Angelo Vattimo, presidente do Cremesp, cirurgião geral e Coloproctologista; Sandro Scarpelini, conselheiro do Cremesp, responsável pela Câmara Técnica de Cirurgia Geral e cirurgião geral, e Paulo Afonso Bianchini, cirurgião do aparelho digestivo, cirurgião geral e coloproctologista.
Para Vattimo, além das atividades fiscalizadoras, judicantes e cartoriais, a Casa tem se empenhado em levar a experiência de professores em assuntos relevantes, além de mostrar falhas de origem ética capazes de originar queixas no Cremesp. Coube a ele discorrer sobre a “Importância da Cirurgia de Urgência em Situações Críticas”. “Os fundamentos do atendimento cirúrgico são de domínio dos cirurgiões gerais, porém, em situações de trauma e emergência, é preciso cuidado para não tomar decisões erradas ou fora do tempo hábil”.
Para exemplificar, o presidente apresentou casos reais que originaram abertura de processos ético-profissionais. No primeiro, foi relatado atendimento no qual um paciente chegou na emergência com politraumatismo com trauma abdominal fechado, ao qual os plantonistas não reconheceram sinais de gravidade, que mereciam cuidados intensivos. Os envolvidos foram apenados de acordo com o artigo 1º e 32 do Código de Ética Médica. Também foi mencionado o óbito de uma paciente de 70 anos atropelada por motocicleta, que carecia de tomografia, que não foi pedida “pois a atendida estava muito descompensada”.
Atendimentos de emergência
Iuri Tamasauskas, cirurgião geral e do aparelho digestivo ministrou a 1ª palestra, “Atendimento Inicial ao Paciente traumatizado” (Pré e Intra-Hospitalar). A partir de sua experiência atendimentos móveis de urgência – já atuou no SAMU, bombeiros e helicóptero Águia, da Polícia Militar – trouxe várias imagens relativas a momentos críticos, nos quais teve que atuar na cena do acidente. Um deles envolveu ocorrência grave de ferimento com arma branca. Outro, uma tentativa de autoextermínio, que acarretou em dificuldades de acesso às vias aéreas superiores. “É um momento crucial no qual, muitas vezes, manobras simples podem salvar a vida do assistido”.
Ainda que a conjuntura demande pressa, cuidados secundários tornam-se essenciais, explica Tamasauskas, referindo-se à segurança na cena, levantamento do histórico médico e, em especial, à documentação dos fatos. “Elabore um prontuário detalhado, mesmo se o desfecho da situação não for dos melhores”.
ABCD
Em atendimento de emergência em trauma, o acrônimo ABCD representa as etapas iniciais da avaliação do paciente, priorizando as ameaças mais urgentes à vida. Cada letra corresponde a uma ação específica: Airway, de vias aéreas, no sentido de verificar se há obstruções que impeçam a passagem do ar; Breathing, observar se o paciente está respirando adequadamente; Circulation, avaliar a circulação sanguínea, procurando hemorragias graves e Disability, analisar o nível de consciência do paciente por escalas, como a de Glasgow.
Na palestra “Os Avanços na Cirurgia de Trauma Abdominal”, José Mauro Silva Rodrigues, cirurgião geral, deixou claro que, além dessas etapas, torna-se impossível atender politraumatizados sem alguns equipamentos disponíveis, como um ultrassom. Além disso, “a angiografia tem cada vez mais espaço em trauma abdominal. Rodrigues também salientou a relevância, para alguns pacientes, da cirurgia de controle de danos, na qual a prioridade passa a ser o controle da hemorragia e da contaminação, antes de intervenção definitiva.
O assunto “Controle de Hemorragias em Contextos do Trauma” foi defendido por João Gualberto Diniz Júnior, cirurgião cardiovascular, que informa que as lesões vasculares representam cerca de 2 a 5% de todas as internações por trama, sendo que a incidência de trauma vascular é mais alta entre jovens do sexo masculino e é substancialmente menor em pacientes mais idosos. De qualquer forma, entre as causas mais frequentes em mortes por trauma figura a hemorragia, sendo prioridade absoluta estanca-la. “Quem propicia o controle hemorrágico com o que há disponível salva a vida do atendido”.
Angelo Fernandes, conselheiro do Cremesp, membro da Câmara Técnica de Cirurgia Geral e cirurgião torácico abordou o tema “Cirurgia Torácica de Emergência: Desafios e soluções”. Segundo ele, existe uma grande interação entre especialidades no âmbito do trauma e aquela que exerce tem garantido cada vez mais espaço: é comum que os politraumatizados passem pelo cirurgião torácico, por exemplo, para tratar lesões resultantes de colocação de drenos, e na estabilização da parede torácica, entre outros procedimentos. Entre os danos a serem avaliados por esse especialista incluem-se pneumotórax hipertensivo, pneumotórax aberto, derrame pericárdico e contusões miocárdica e pulmonar.
Por fim, foi trazida ao encontro a palestra “Uso de IA em Atendimento de Urgências Cirúrgicas”, proferida por Augusto Marcos Nascimento Solomon, assessor especialista em IA do Cremesp, e mediada por Carlos David Carvalho do Nascimento, cirurgião geral e membro da Câmara Técnica de Cirurgia Geral, na qual foi traçado um panorama que deixa muito claro: não adianta discordar da IA, ela vai estar cada vez mais presente, em especial, em ciências médicas.
A previsão de que seja muito proveitoso para o médico inserir essa ferramenta como aliada, em sua rotina profissional. Como aduz Solomon “a IA não substitui o médico, ela é mais um recurso que enriquece diagnósticos e ajuda a guiar decisões”.
Importância do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido na Urgência Cirúrgica
O cirurgião geral e médico do trabalho, Laercio Robles, fez reflexões sobre os aspectos médico-legais na urgência cirúrgica, com foco no Termo de Consentimento. Baseado em casos históricos da Medicina internacional, Robles destacou que o consentimento livre e esclarecido não é um simples formulário, mas um contrato ético e jurídico entre o médico e o paciente. “O registro detalhado da conduta deve ser sempre preservado”, comentou.
Segundo o palestrante, mesmo quando há risco iminente de vida e o paciente está inconsciente, é essencial que o médico escreva e justifique as ações no prontuário, demonstrando que agiu com base nos melhores interesses do paciente. Casos de omissão de registro, ainda que a conduta tenha sido tecnicamente correta, podem configurar infrações éticas e resultar em responsabilização civil.
A palestra contou ainda com participação de Paulo Kassab, membro da Câmara Técnica de Cirurgia Geral do Cremesp, que reforçou a importância da bioética e das lições históricas do Código de Nuremberg na prática médica atual.
O futuro da cirurgia geral e a formação dos novos cirurgiões
Em apresentação online, Marcelo Augusto Fontenelle Ribeiro Junior, cirurgião do aparelho digestivo e docente na University of Maryland, abordou as perspectivas e desafios para o futuro da cirurgia geral. Ele apontou o rápido avanço das tecnologias, como cirurgia robótica e inteligência artificial, que transformam a especialidade, exigindo novas formas de ensino e adaptação contínua dos médicos.
Fontenelle demonstrou preocupação com a abertura indiscriminada de escolas médicas e a formação dos cirurgiões no futuro. “Existe um desalinhamento entre a formação médica e a realidade prática do mercado”, afirmou.
O palestrante também destacou o papel do cirurgião como profissional inquieto e decisivo, que deve estar preparado para liderar equipes em contextos de alta complexidade. Para ele, o futuro do cirurgião passa pela versatilidade, pela comunicação eficaz e pela capacidade de integrar-se de forma multidisciplinar ao cuidado ao paciente.
O debate após a palestra foi comandado pelo cirurgião de cabeça e pescoço e cirurgião geral, Sérgio Samir Arap, que questionou a necessidade da formação de cirurgiões especializados em cirurgia robótica, já que não existem tantos casos no Brasil.
Cuidados no pós-operatório: vigilância e continuidade da assistência
O cirurgião Milton Steinman, professor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, ministrou a palestra “Cuidados Pós-operatórios em Cirurgia de Trauma”. O palestrante apresentou um caso complexo envolvendo lesão vascular grave falou sobre a importância da vigilância pós-operatória contínua, da análise criteriosa de sinais clínicos e do trabalho conjunto com as equipes de UTI.
Steinman ressaltou que o acompanhamento presencial do cirurgião nos dias seguintes à cirurgia é um fator decisivo para detectar complicações como a síndrome compartimental abdominal. “O cuidado ao paciente não termina com a sutura. Precisa continuar à beira do leito, com escuta ativa, revisão de exames e diálogo constante com intensivistas”, destacou.
Julgamento simulado apresenta caso de falha no atendimento ao trauma
O julgamento simulado promovido pela Câmara Técnica de Cirurgia Geral marcou o encerramento da primeira edição do Simpósio. Foi apresentado um caso real de atendimento a uma criança vítima de trauma abdominal, que evoluiu a óbito após liberação precoce o pronto-socorro, sem a devida sistematização ou exames complementares. Os médicos presentes na plateia puderam ouvir o caso e votar nas penas cabíveis aos denunciados.
Angelo Vattimo foi o presidente da sessão, que também contou com a participação do conselheiro do Cremesp e cirurgião torácico, Eduardo de Campos Werebe, como relator; do médico coloproctologista e cirurgião na Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de SP, Jorge Alberto Ortiz, como denunciante; e de Paulo Afonso Bianchini e João Gualberto Diniz Junior, que simularam os “denunciados” na ocasião.
O exercício permitiu revisar falhas graves no acolhimento inicial, como ausência de avaliação primária, ausência de registro clínico e subvalorização dos sinais de gravidade. O debate evidenciou os riscos de não seguir protocolos de atendimento ao trauma, especialmente em pacientes pediátricos, e de deixar de encaminhar casos complexos para centros de referência. Os conselheiros participantes destacaram a importância do julgamento como ferramenta de educação ética e prevenção de reincidências na prática da Medicina.
Fonte: Cremesp, em 29.07.2025
Fotos: Osmar Bustos