Por Thiago Junqueira[1]
A promulgação da Lei nº 15.040/2024, conhecida como Lei do Contrato de Seguro (LCS), implicou uma atualização relevante da disciplina do seguro de responsabilidade civil no Brasil, com a introdução de um conjunto de dispositivos específicos (arts. 98 a 107) que detalham o regime aplicável à modalidade. O presente artigo examina, de forma objetiva, os principais aspectos do seguro de responsabilidade civil e as inovações presentes na seção II do capítulo 2 da LCS.[2]
1. Seguro de Responsabilidade Civil: aspectos introdutórios
A vida em sociedade expõe tanto pessoas físicas quanto jurídicas à constante possibilidade de causar danos a terceiros ou de ser por eles prejudicadas. A resposta do Direito, na seara civil, dá-se por meio do instituto da responsabilidade civil, que, em linhas gerais, consiste na obrigação de reparar o dano causado a terceiros, desde que presentes determinados requisitos legais. Quando uma conduta, por ação ou omissão, resulta em um dano ilícito a outra pessoa e houver nexo de causalidade, surge o dever de indenizar. Os regimes variam conforme a modalidade de responsabilidade civil aplicável: pode ser subjetiva, quando exige a comprovação de culpa do agente, ou objetiva, quando, em virtude de lei ou por envolver atividade de risco, o dever de indenizar decorre apenas da existência do dano e do vínculo causal, independentemente de culpa. Além dessa distinção, é comum verificar se a responsabilidade é contratual ou extracontratual, pois o regime jurídico aplicável a cada uma apresenta diferenças relevantes, notadamente quanto ao prazo prescricional.
Nesse contexto, o seguro de responsabilidade civil surge como um instrumento de mitigação de riscos, ao proteger o patrimônio do segurado contra os efeitos financeiros de uma eventual imputação de responsabilidade. Trata-se de mecanismo que visa a atenuar o impacto econômico decorrente do dever de indenizar e, muitas vezes, das despesas com a defesa,[3] funcionando como uma salvaguarda frente a obrigações impostas por decisão judicial, arbitral ou por acordo previamente autorizado pela seguradora.[4]
Embora voltado à proteção do potencial causador do dano ilícito, esse tipo de seguro também cumpre uma função de tutela da própria vítima, ao aumentar a chance de efetiva reparação patrimonial dos danos sofridos.
Como regra, o seguro de responsabilidade civil cobre danos involuntários decorrentes de atos culposos praticados pelo segurado. Danos resultantes de condutas dolosas, por sua vez, costumam ser excluídos da cobertura, seja por disposição legal, seja contratual. A Circular Susep nº 637/2021, contudo, estabelece uma exceção relevante: exige-se a cobertura quando a responsabilidade do segurado decorre de atos dolosos praticados por seus empregados ou por pessoas a eles equiparadas, nos termos do art. 6º, inciso I, do ato normativo.
No mesmo ato normativo, que provavelmente será adaptado à nova lei, a Susep organiza os seguros de responsabilidade civil em grupos específicos, classificando-os por ramo de atividade ou natureza do risco. Essa sistematização facilita a aplicação de regras técnicas e regulatórias adequadas a cada tipo de cobertura. São previstos cinco ramos: (i) responsabilidade civil de administradores; (ii) responsabilidade civil profissional; (iii) responsabilidade civil por riscos ambientais; (iv) responsabilidade civil compreensiva para riscos cibernéticos; e (v) responsabilidade civil geral.[5]
2. Estrutura normativa: ampliação do interesse segurado
O Código Civil de 2002 (CC) dedica apenas um dispositivo à regulamentação do seguro de responsabilidade civil facultativo. Nos termos do art. 787, “o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro”. Os quatro parágrafos desse artigo estabelecem importantes deveres e limitações à conduta do segurado: (i) o segurado deve comunicar ao segurador, tão logo tenha conhecimento, os fatos que possam gerar responsabilidade civil coberta pela apólice; (ii) é vedado ao segurado reconhecer sua responsabilidade, confessar a prática do ato, transigir com o terceiro prejudicado ou indenizá-lo diretamente, sem a anuência expressa do segurador; (iii) caso seja demandado judicialmente, o segurado deve dar ciência da lide ao segurador; e (iv) a responsabilidade do segurado perante o terceiro subsiste mesmo em caso de insolvência do segurador.
A LCS, por sua vez, adotou uma conceituação mais abrangente do seguro de responsabilidade civil. De acordo com o art. 98, caput: “O seguro de responsabilidade civil garante o interesse do segurado contra os efeitos da imputação de responsabilidade e do seu reconhecimento, assim como o dos terceiros prejudicados à indenização”. O legislador claramente tomou partido quanto à amplitude do interesse segurado inerente a essa modalidade contratual, estendendo-o, além do próprio segurado, aos terceiros prejudicados. Essa mudança contribui para afastar a ultrapassada teoria do reembolso, que condicionava o direito à indenização do seguro ao pagamento prévio pelo segurado ao terceiro prejudicado.
3. Critérios de caracterização do risco e modalidades de contratação
No Brasil, as apólices de responsabilidade civil podem adotar diferentes bases de cobertura, conforme previsto no art. 2º da Circular Susep nº 637/2021: (i) à base de ocorrência (occurrence basis); (ii) à base de reclamação (claims made basis); (iii) à base de reclamação com notificação; e (iv) à base de reclamação com primeira manifestação ou descoberta. As apólices à base de ocorrência são comuns nos seguros de responsabilidade civil geral. Já as apólices à base de reclamação com notificação são frequentemente utilizadas em seguros D&O, enquanto aquelas à base de reclamação com primeira manifestação ou descoberta são adequadas para riscos sujeitos a longos períodos de latência, como os ambientais.
A respeito do tema, o art. 98, § 1º, da LCS dispõe: “No seguro de responsabilidade civil, o risco pode caracterizar-se pela ocorrência do fato gerador, da manifestação danosa ou da imputação de responsabilidade”. Em uma primeira leitura, conclui-se que a LCS confere respaldo legal às diferentes bases de cobertura adotadas nos seguros de responsabilidade civil, adotando um tratamento mais principiológico. Ao prever que o risco pode se caracterizar por qualquer um desses marcos, a lei reconhece a diversidade de modelos existentes, deixando os contornos operacionais para a regulação da Susep.
4. Vinculação de colaboração e limites à autonomia do segurado
Sobre os parâmetros de conduta do segurado na disciplina da LCS aplicável ao seguro de responsabilidade civil, destaca-se a vinculação geral de colaboração com a seguradora, sob pena de responder pelos prejuízos decorrentes de omissões ou da prática de atos que lhe sejam prejudiciais. Essa colaboração concretiza-se, nos termos do art. 100 da lei, por meio da pronta comunicação de quaisquer notificações que possam gerar reclamações futuras, do fornecimento de documentos e informações solicitados pela seguradora, do comparecimento a atos processuais, bem como da abstenção de condutas “em detrimento dos direitos e das pretensões da seguradora”.
Quanto a esse último ponto, embora a nova lei não proíba expressamente que o segurado reconheça sua responsabilidade, confesse a prática do ato ou celebre acordo com o terceiro prejudicado sem a anuência prévia da seguradora, como faz o art. 787, § 2º, do CC, a cláusula geral do inciso IV do art. 100 pode, em diversos contextos, conduzir a um resultado semelhante ao da disciplina atualmente praticada. Isso ocorre, em especial, quando a conduta do segurado ocasionar efetivo prejuízo à seguradora, comprometendo sua capacidade de defesa ou de controle sobre os efeitos da imputação de responsabilidade.
5. Dever de informação da existência e do conteúdo do seguro aos terceiros prejudicados: alcance, limites e incertezas
Uma relevante novidade na LCS é a imposição, ao segurado, do dever de “empreender os melhores esforços para informar os terceiros prejudicados sobre a existência e o conteúdo do seguro contratado”, conforme previsto no art. 105. Trata-se de obrigação que, embora bem-intencionada, pode ensejar dificuldades práticas consideráveis. Em diversas situações, o segurado não tem controle sobre a forma como o terceiro interage com o seguro, tampouco sobre os meios pelos quais essa informação poderia ser transmitida de forma efetiva. Isso pode resultar em uma carga excessiva ou desproporcional, especialmente quando o segurado não possui relação direta com o terceiro ou quando o terceiro prejudicado não o procura para obter esclarecimentos ou reclamar um prejuízo.
O desafio se intensifica quando o segurado é pessoa física ou, ainda que sendo pessoa jurídica, o evento danoso envolve múltiplos terceiros prejudicados ou uma pluralidade de responsáveis. Nesses casos, o cumprimento do dever de informação pode se mostrar operacionalmente complexo e juridicamente arriscado.
A norma, ainda que enuncie um dever, carece de densidade normativa. A única certeza que oferece é a de que a obrigação recai exclusivamente sobre o segurado. O padrão de diligência exigido – “melhores esforços” – não encontra correspondência em outras previsões da própria LCS, o que acentua a insegurança.[6]
Acerca da aplicação do dispositivo, permanecem em aberto questões fundamentais: qual a extensão desse dever? De que forma e em que momento ele deve ser cumprido – por exemplo, seria necessária a afixação de aviso no estabelecimento comercial, como ocorre em estacionamentos?[7] Seria exigida a publicação de comunicado após a ocorrência do sinistro? Qual o nível de detalhamento necessário quanto ao conteúdo do seguro? E quais seriam as consequências jurídicas do descumprimento desse dever?
Diante dessas incertezas, é razoável supor que a matéria demandará regulação infralegal complementar, sobretudo em hipóteses de sinistros de grande escala e/ou com múltiplos potenciais lesados.
6. Remissão
As demais disposições da Seção II do Capítulo 2 da LCS, especialmente aquelas relacionadas à legitimidade ativa do terceiro, litisconsórcio, oposição de defesas contratuais e pluralidade de prejudicados, serão analisadas na segunda parte deste artigo.
[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br.
[2] Advirta-se, por oportuno, que, embora a LCS tenha trazido relevantes alterações em diversos institutos – como a declaração inicial do risco, o agravamento do risco e a regulação e liquidação do sinistro –, com impacto profundo nos seguros de responsabilidade civil, este estudo irá se concentrar nos dispositivos contidos na seção mencionada anteriormente.
[3] Art. 98, § 2º, da LCS, inova ao dispor: “Na garantia de gastos com a defesa contra a imputação de responsabilidade, deverá ser estabelecido um limite específico e diverso daquele destinado à indenização dos prejudicados”. Busca-se, com isso, evitar que a totalidade da garantia securitária seja consumida com despesas de defesa, em prejuízo dos terceiros lesados.
[4] Sobre o tema, confira-se a definição constante no caput do art. 3º da Circular Susep nº 637/2021, que disciplina os seguros do grupo responsabilidades: “No seguro de responsabilidade civil, a sociedade seguradora garante o interesse do segurado, quando este for responsabilizado por danos causados a terceiros e obrigado a indenizá-los, a título de reparação, por decisão judicial ou decisão em juízo arbitral, ou por acordo com os terceiros prejudicados, mediante a anuência da sociedade seguradora, desde que atendidas as disposições do contrato”.
[5] Quando a apólice não se enquadrar em nenhuma das categorias específicas previstas, a norma determina que ela deve ser classificada no ramo de responsabilidade civil geral.
[6] A LCS não adota um padrão uniforme quanto ao grau de diligência exigido do segurado. O art. 45, por exemplo, exige a observância das “regras ordinárias de conhecimento” para fins de declaração do risco acerca do que o segurado deveria saber. Já o art. 46 afasta o dever de tomar providências mitigadoras do sinistro quando isso implicar “sacrifício acima do razoável”. O art. 105, ao exigir “melhores esforços”, eleva o grau de diligência sem oferecer critérios objetivos para sua aferição.
[7] Como a literalidade do artigo aponta para um dever de informar “terceiros prejudicados”, afasta-se, em princípio, a sua aplicação a terceiros que apenas potencialmente venham a ser prejudicados. Assim, defende-se que ela não exige, por exemplo, que todo comércio que contrate seguro de responsabilidade civil afixe aviso ao público informando a existência da apólice. No caso do seguro de RC Cibernético, inclusive, a divulgação prévia dessa informação poderia ser contraproducente, ao representar um incentivo a ataques maliciosos, como os de ransomware.
(26.05.2025)