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Seguro de Responsabilidade Civil na Lei do Contrato de Seguro – Parte 2

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Por Thiago Junqueira[1]

thiago 27012025

Em continuação à primeira parte,[2] esta coluna analisa aspectos adicionais relacionados à disciplina do seguro de responsabilidade civil prevista na Lei do Contrato de Seguro (Lei nº 15.040/2024 – LCS), especialmente os dispostos nos arts. 101 a 107.

7. Legitimidade ativa do terceiro e litisconsórcio

Nos termos do art. 101 da LCS, quando a pretensão do terceiro prejudicado for dirigida exclusivamente contra o segurado, este deve comunicar a seguradora tão logo seja citado, além de disponibilizar os elementos necessários para o seu adequado conhecimento do processo. Trata-se de uma obrigação de cooperação processual, que visa a preservar os direitos da seguradora e oportunizar o pleno exercício de sua defesa. O dispositivo também confere ao segurado a faculdade de chamar a seguradora a integrar o processo,[3] como litisconsorte, sem que isso implique solidariedade entre as partes.

O art. 102 da lei, por sua vez, permite que o terceiro prejudicado promova ação direta contra a seguradora, desde que com a formação de litisconsórcio passivo com o segurado. A regra, em grande medida, consagra entendimento consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, refletido na Súmula nº 529, e busca assegurar tanto o devido processo legal quanto a ampla defesa da seguradora e do próprio segurado.[4] A única exceção legal ocorre quando o segurado não possuir domicílio no Brasil, hipótese em que o litisconsórcio é dispensado, em nome da celeridade e da efetividade da tutela do terceiro.

8. Oposição de defesas pela seguradora ao terceiro prejudicado

Seja na fase extrajudicial – no âmbito da regulação do sinistro – seja na esfera judicial, a seguradora deve analisar com diligência a reclamação apresentada por terceiro prejudicado. Essa análise poderá ocorrer em diferentes contextos, tais como: (i) após o ajuizamento de ação de cobrança contra o segurado, desde que este tenha comunicado o sinistro à seguradora; ou (ii) diretamente em ação que tenha o segurado e a seguradora como rés.

Nessas hipóteses, cabe à seguradora avaliar a procedência da pretensão do terceiro, à luz das condições contratuais pactuadas na apólice e do ordenamento jurídico aplicável.

A esse respeito, os artigos 103 e 104 da LCS disciplinam as defesas que podem ser opostas pela seguradora ao terceiro prejudicado.

O art. 103 permite à seguradora, salvo disposição legal em contrário, opor ao terceiro prejudicado as defesas fundadas no contrato de seguro, desde que anteriores à ocorrência do sinistro. Entre essas defesas, incluem-se: exclusões de cobertura, limites de garantia, franquias, e o descumprimento de deveres contratuais por parte do segurado, tais como o inadimplemento do prêmio, o agravamento do risco, a causação dolosa do sinistro e a omissão de informações relevantes na fase pré-contratual.

Já o art. 104 da lei autoriza a apresentação de defesas que não derivem diretamente do contrato de seguro, e que podem ser anteriores ou posteriores ao sinistro. Trata-se de fundamentos de ordem jurídica geral, como a ilegitimidade de parte, a prescrição, a inexistência de dano ou de nexo causal, a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, entre outros.

A distinção é relevante para evitar a utilização de argumentos contratuais em princípio inoponíveis ao terceiro, porquanto posteriores ao sinistro (ex. a mora no aviso do sinistro), ao mesmo tempo em que preserva o direito da seguradora de se defender de pretensões que extrapolem os limites do seguro ou que sejam juridicamente infundadas.

Um ponto que merece maior atenção – e que tem sido negligenciado – é o impacto do art. 103 da LCS sobre a jurisprudência do STJ, que, em determinadas hipóteses, afasta a oponibilidade do agravamento do risco ao terceiro prejudicado no seguro de responsabilidade civil. Um exemplo emblemático é o da condução de veículo pelo segurado sob efeito de álcool, visto que, de acordo com a referida Corte, “solução contrária puniria não quem concorreu para a ocorrência do dano, mas as vítimas do sinistro, as quais não contribuíram para o agravamento do risco”.[5]

Essa tese da “ineficácia das cláusulas restritivas perante terceiros” compromete o equilíbrio da relação contratual entre seguradora e segurado. Se aplicada de forma ampla, acabaria por impor à seguradora o dever de indenizar mesmo nos casos em que o segurado descumpriu obrigações essenciais do contrato. Essa distorção não se justifica especialmente quando o segurado não se encontra em situação de insolvência, pois, nesses casos, o ressarcimento da vítima pode ser plenamente viabilizado pelo próprio causador do dano, independentemente da atuação da seguradora.

Se prevalecer o entendimento de que a seguradora deve indenizar o terceiro mesmo nos casos de agravamento do risco – com fundamento na suposta inoponibilidade das cláusulas contratuais ao terceiro prejudicado nos seguros de responsabilidade civil –, é juridicamente razoável admitir, como contrapartida, a sub-rogação da seguradora nos direitos do terceiro contra o segurado que deu causa à perda da cobertura (art. 346, inc. III, do Código Civil). Essa solução preserva a coerência interna do contrato de seguro, respeita os deveres de conduta do segurado e impede que o seguro de responsabilidade civil se converta, na prática, em uma garantia automática e irrestrita, independentemente do comportamento do segurado.

9. Possibilidade de celebração de acordo da seguradora com o terceiro prejudicado

Em disposição inovadora, o art. 106 da LCS estabelece: “Salvo disposição em contrário, a seguradora poderá celebrar transação com os prejudicados, o que não implicará o reconhecimento de responsabilidade do segurado nem prejudicará aqueles a quem é imputada a responsabilidade”.

Trata-se de norma que, ao mesmo tempo em que amplia a autonomia da seguradora na condução da resolução do sinistro, busca preservar os direitos do segurado e o equilíbrio da relação triangular entre seguradora, segurado e terceiro prejudicado. A lei autoriza, como regra, a celebração, pela seguradora, de acordos diretamente com os terceiros, sem que isso implique confissão de responsabilidade por parte do segurado, tampouco configure prejuízo a outros coobrigados.

Antes da promulgação da LCS, era comum que as condições contratuais previssem cláusula dispondo que, caso o segurado recusasse acordo recomendado pela seguradora e aceito pelo terceiro, a responsabilidade da seguradora se limitaria ao valor que teria sido pago se o acordo houvesse sido firmado. Um exemplo típico desse tipo de cláusula é o seguinte: “Na hipótese de o Segurado recusar acordo recomendado pela Seguradora e aceito pelo terceiro prejudicado, fica desde já estipulado que a Seguradora não responderá por quantias que excedam aquela pela qual o sinistro seria liquidado com base naquele entendimento”.

O art. 106, embora não afaste a validade de tais previsões contratuais, introduz importante inovação ao conferir legitimidade direta à seguradora para firmar acordos com terceiros. A norma elimina dúvidas quanto à possibilidade jurídica de transação direta entre seguradora e lesado, mesmo sem o consentimento do segurado – desde que não haja disposição contratual em sentido contrário.

Essa inovação, contudo, não é isenta de controvérsias. A autorização legal para que a seguradora transacione diretamente com o terceiro pode gerar tensão com o princípio da autonomia privada do segurado, sobretudo em situações em que haja interesses reputacionais e/ou estratégicos envolvidos na condução da defesa. Ainda que o dispositivo afirme que o acordo não implicará reconhecimento de responsabilidade do segurado, os efeitos práticos da transação podem, em alguns casos, refletir negativamente sobre ele, inclusive, no limite, em eventuais ações regressivas entre coobrigados.

Nessas circunstâncias, o princípio da boa-fé objetiva impõe que a seguradora comunique previamente ao segurado sua intenção de transacionar com o terceiro, concedendo-lhe um prazo para se manifestar antes da efetivação do acordo. Essa medida busca compatibilizar a nova prerrogativa legal com os deveres de lealdade, cooperação e transparência inerentes à relação contratual de seguro.

Por fim, vale destacar que a própria norma admite convenção em sentido diverso, permitindo que o contrato restrinja ou condicione essa faculdade da seguradora. Isso reforça a necessidade de atenção pelo candidato a segurado à redação das condições contratuais no momento da negociação do seguro.

10. Pluralidade de terceiros prejudicados e prestação das indenizações pela seguradora

O art. 107 da LCS trata da hipótese de pluralidade de terceiros prejudicados por um mesmo evento. A norma estabelece que a seguradora se libera de suas obrigações com o pagamento integral da importância segurada a um ou mais desses prejudicados, desde que não tenha conhecimento da existência dos demais.

A solução legal pretende mitigar distorções que podem decorrer da concentração da indenização em poucos titulares, como ocorre, por vezes, na lógica first come, first served, especialmente quando há múltiplos prejudicados. No entanto, a expressão legal “sempre que ignorar a existência dos demais” pode ensejar desafios práticos relevantes, sobretudo quanto à caracterização dessa ignorância como fator legitimador.

Nesse contexto, importa observar que a seguradora, ao contrário do segurado, não está sujeita ao dever de “empreender os melhores esforços para informar os terceiros prejudicados sobre a existência e o conteúdo do seguro contratado” (art. 105 da LCS). Tampouco lhe é imposto, como regra, diligenciar para identificar proativamente outros eventuais prejudicados além daqueles que apresentarem reclamação de forma tempestiva. Essa delimitação de responsabilidades tende a favorecer maior agilidade operacional e segurança jurídica à liquidação dos sinistros.

Por outro lado, para que a seguradora possa efetivamente se desonerar mediante o pagamento integral da importância segurada, será necessário adotar cautelas adicionais. Caberá à doutrina e à jurisprudência delimitar com maior precisão o que se entende por ignorância escusável, bem como definir se, e em que medida, a seguradora deverá aguardar a manifestação de terceiros prejudicados cuja existência seja conhecida, mas que ainda não tenham sido formalmente identificados ou qualificados. Essa análise deverá considerar os exíguos prazos para regulação e liquidação do sinistro previstos na própria LCS (arts. 86 e 87).

Em situações envolvendo sinistros de grande repercussão ou danos coletivos, a atuação da Susep poderá ser pertinente para possibilitar que os valores indenitários sejam distribuídos de forma proporcional ou adequada, eventualmente até mesmo estabelecendo prazos claros dentro dos quais os terceiros prejudicados poderão se apresentar para solicitar sua parcela na indenização securitária.

11. Conclusão

A inserção de uma disciplina específica para o seguro de responsabilidade civil na Lei do Contrato de Seguro representa uma mudança normativa relevante. Parte dos dispositivos reflete práticas consolidadas no mercado brasileiro, enquanto outros introduzem comandos que suscitam incertezas interpretativas e podem gerar zonas de atrito na relação entre segurado, seguradora e terceiro prejudicado.

Não se trata, propriamente, de uma ruptura com o regime anterior, mas de um redesenho que exigirá esforço hermenêutico consistente, especialmente diante da abertura conceitual de algumas normas e da convivência com disposições de outras leis e atos normativos.

Mais do que oferecer soluções definitivas, a nova legislação inaugura uma etapa de transição que impõe desafios práticos e jurídicos. O modo como seguradoras, segurados e intérpretes do direito responderão a esses desafios será determinante para o amadurecimento do novo regime, cuja aplicação se dará para os contratos firmados ou renovados a partir de 11 de dezembro de 2025.

[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br.

[2] A primeira parte deste artigo abordou os seguintes tópicos: 1. Seguro de Responsabilidade Civil: aspectos introdutórios; 2. Estrutura normativa: ampliação do interesse segurado; 3. Critérios de caracterização do risco e modalidades de contratação; 4. Vinculação de colaboração e limites à autonomia do segurado; 5. Dever de informação da existência e do conteúdo do seguro aos terceiros prejudicados: alcance, limites e incertezas; 6. Remissão. Conforme: JUNQUEIRA, Thiago. Seguro de Responsabilidade Civil na Lei do Contrato de SeguroParte 1. Disponível em: https://www.editoraroncarati.com.br/v2/Artigos-e-Noticias/Artigos-e-Noticias/Seguro-de-Responsabilidade-Civil-na-Lei-do-Contrato-de-Seguro-%E2%80%93-Parte-1.html. Acesso em: 17.06.2025.

[3] Sobre a qualificação dessa hipótese como “chamamento ao processo e não de denunciação da lide”, consulte-se: MELO, Gustavo de Medeiros. O chamamento da seguradora ao processo na nova Lei de Seguros. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-01/o-chamamento-da-seguradora-ao-processo-na-nova-lei-de-seguros/. Acesso em: 17.06.2025.

[4] Aprovada em 2015, a súmula nº 529 do STJ dispõe: “No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano”. Essa linha de raciocínio é mais antiga, conforme demonstra o seguinte leading case: “1. Para fins do art. 543-C do CPC: 1.1. Descabe ação do terceiro prejudicado ajuizada direta e exclusivamente em face da Seguradora do apontado causador do dano. 1.2. No seguro de responsabilidade civil facultativo a obrigação da Seguradora de ressarcir danos sofridos por terceiros pressupõe a responsabilidade civil do segurado, a qual, de regra, não poderá ser reconhecida em demanda na qual este não interveio, sob pena de vulneração do devido processo legal e da ampla defesa. 2. Recurso especial não provido”. STJ, REsp 962.230/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, jul. 08.02.2012, DJe 20/4/2012.

[5] STJ, REsp 1.738.247/SC, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, jul. 27.11.2018, DJe 10.12.2018.

(23.06.2025)