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Segurança jurídica, LINDB e a previdência complementar fechada

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Aparecida Pagliarini - Advogada formada pela Universidade de São Paulo, especializada em previdência complementar, membro do Conselho Deliberativo do IPCOM - Instituto de Previdência Complementar e Saúde Suplementar, presidente da Comissão de Previdência Privada da OAB-SP.

Danilo Ribeiro Miranda Martins - Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, mestre em direito previdenciário pela PUC-SP, MBA em Finanças pelo IBMEC, membro do IPCOM. Foi Procurador-Chefe da Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC.

A busca por segurança é uma constante na história da humanidade, desde os primeiros agrupamentos, reunidos pelo instinto básico de sobrevivência. Opõe-se à segurança o risco, que corresponde à incerteza com relação a algum fato ou evento, abalando a estabilidade, a firmeza ou a confiança quanto ao futuro.

Esses conceitos não são estranhos à previdência complementar. Tanto a previdência quando os seguros se organizaram em torno dessas concepções. Desde a criação das primeiras associações de socorro mútuo e dos montepios, o que sempre se buscou foi a segurança, ou seja, a proteção contra diversos riscos a que estamos expostos.

Na Constituição Federal a segurança é inserida, em seu preâmbulo, como um dos valores supremos da nossa sociedade, ao lado de valores como a liberdade, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Valor acolhido pela Constituição de 1988 e por diversos textos constitucionais anteriores, inclusive.

A segurança jurídica, especificamente, refere-se à possibilidade de as pessoas terem conhecimento antecipado das consequências legais de seus atos. Impõe, ainda, razoável grau de certeza de que os negócios e as relações estabelecidas sob a égide de determinada norma terão seus efeitos observados e preservados.

Embora o princípio geral da segurança jurídica (e, como corolário, o da proteção da confiança) fosse há muito reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência pátria, o artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784/1999 tratou de reafirmá-lo, evidenciando a necessidade de sua observância pela Administração Pública.

Mais que isso, a fim de conferir maior eficácia ao princípio, estabeleceu regra proibindo a aplicação retroativa de nova interpretação (art. 2º, parágrafo único, inciso XIII) e definiu prazo para a anulação de atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários (art. 54), com a nítida finalidade de prestigiar a estabilidade das relações jurídicas.

Como bem esclareceu o Ministro Luís Roberto Barroso, por ocasião do julgamento do ARE 861.595:

O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais.

Não obstante a clareza de tais disposições e dos entendimentos jurisprudenciais, a segurança jurídica na Administração Pública permaneceu incompreendida diante de uma visão formal do princípio da legalidade, sujeitando o cidadão, desse modo, a inúmeras voltas e reviravoltas interpretativas. A surpresa, destarte, permaneceu uma constante na relação com o Poder Público.

Sobreveio então a Lei nº 13.655/2018 que, segundo sua ementa, veicula “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público.” Dessa forma, por meio da inserção de diversos preceitos no Decreto-lei nº 4.657/1942, veio à lume a nova Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Seguindo o mesmo caminho traçado inicialmente pela Lei nº 9.784/1999, a nova LINDB trouxe diversas regras de observância obrigatória pelo gestor público (mas não só) voltadas para a concretização do princípio da segurança jurídica na atividade estatal.

A LINDB traz agora a obrigação para as autoridades públicas de atuar para incrementar a segurança jurídica na aplicação de normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas e respostas a consultas (art. 30).

Esses instrumentos, assim como as interpretações contidas em atos de caráter geral ou jurisprudência administrativa majoritária, e as práticas administrativas reiteradas, passam a ser considerados como orientações gerais (art. 24, parágrafo único).

Na hipótese de revisão do entendimento, a nova compreensão não só não deve ter aplicação retroativa como também devem ser respeitadas as situações plenamente constituídas (art. 24, caput).

Nas palavras de Carlos Ari Sundfeld[1]:

A previsão do art. 24 é consequência direta da diretriz da irretroatividade de lei nova, prevista no art. 6º da LINDB desde sua redação original. Se nova lei só deve produzir efeitos para o futuro, nova orientação geral sobre a interpretação de normas jurídicas, que venha a ser adotada pela Administração Pública, pelo Judiciário ou por órgãos de controle, também precisa respeitar o já constituído. É a proteção do “fato jurídico perfeito”.

Nesse aspecto, portanto, a LINDB vai muito além da proteção conferida pelo artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, da Lei nº 9.784/1999, que se restringe à análise dos efeitos jurídicos decorrentes da alteração de entendimento, passando a exigir também a análise da situação fática envolvida em cada caso.

Não só. A Lei exige também da Administração que, ao decretar a invalidade de ato, contrato, ajuste ou norma administrativa, indique de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21). O dever de decidir e de motivar, expresso nos artigos 48 e 50 da Lei nº 9.784/1999, é reforçado ao se impor que sejam considerados também os efeitos concretos da decisão.

Na hipótese de a Administração estabelecer interpretação ou orientação nova, deve o agente público se acautelar ainda de definir um regime de transição que seja proporcional, equânime e eficiente (art. 23).

Importante destacar, ademais, o teor da regra constante do artigo 20 da LINDB, que impede que o agente público decida com base em valores jurídicos abstratos, sem considerar as consequências práticas de sua decisão.

A respeito desse dispositivo externam Diddier Jr. e Oliveira[2]:

Pensamos que a expressão “valores jurídicos abstratos” é utilizada para designar os princípios normativos menos densificados, isto é, aqueles que são enunciados em termos amplos, sem um sentido unívoco, e que carecem de densificação diante do caso concreto. (...)

(...) a considerar o motivo pelo qual o dispositivo foi inserido na LINDB – exigir maior esforço argumentativo do julgador, como forma de garantir a segurança jurídica pela melhora da qualidade da fundamentação –, é exatamente no campo dos princípios menos densificados que os fatores de preocupação e de insegurança se mostram mais presentes.

Diante de todo esse novo contexto normativo é indiscutível a opção do legislador ordinário por conferir prestígio ainda maior ao princípio da segurança jurídica, o que não pode mais permanecer ignorado pela Administração Pública.

Ciente disso foi editada pela PREVIC a Resolução nº 23/2023, que determinou expressamente a necessidade de observância dos preceitos da Lei nº 9.784/1999 e da LINDB no âmbito da Autarquia, não sem alguma resistência inicial. Nesse sentido vale destacar, ao menos, os seus artigos 164 e 286.

Determina o artigo 164 da Resolução que, nos requerimentos de alteração de estatuto ou regulamento, deve a PREVIC se ater às alterações solicitadas pela entidade. Além disso é reforçada a necessidade de observância do prazo de cinco anos previsto no artigo 54, caput, da Lei nº 9.784/1999 e do respeito às situações plenamente constituídas (art. 25, LINDB).

No artigo 286, por sua vez, está prevista a possibilidade de utilização de súmula administrativa, aprovada pela Diretoria Colegiada da PREVIC, apta a vincular todos os seus servidores, com fundamento no artigo 30 da LINDB.

É espantoso que a regulação tenha de fazer referência expressa a dispositivos legais para que eles sejam observados. Ora, a previdência complementar fechada não é um organismo estranho e alheio ao restante do mundo jurídico. Inserida na pirâmide de Kelsen, ela também se submete à Constituição e às Leis – e não só às Leis Complementares nº 108 e 109, de 2001, mas a todas as leis do país.

Não pode haver qualquer dúvida, portanto, quanto à necessidade de que a PREVIC e os seus servidores observem o princípio da segurança jurídica e todas as disposições da LINDB, e não só aquelas mencionadas expressamente pela regulação. Afinal, a segurança jurídica constitui um direito fundamental, elemento essencial e princípio estruturante da própria noção de Estado Democrático, permeando absolutamente todos os ramos do Direito.

[1] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 114.

[2] DIDDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Dever de considerar as consequências práticas da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. 73, jul./set. 2019, p. 118.

(27.01.2025)