João Marcelo dos Santos |
Pretendemos neste artigo discutir os riscos e os impactos negativos da regra insculpida no art. 985, § 2º, do Novo Código de Processo Civil – CPC. Segundo essa regra, se um incidente de resolução de demandas repetitivas tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço sujeita a regulação, “o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada”.
Inicialmente, cumpre notar que a busca de maior eficiência e eficácia para a prestação jurisdicional no âmbito do processo civil tem sido um objetivo permanente de todos que militam nessa área. Essa busca resulta, entre outros elementos, de certo consenso quanto ao fato de que a prestação jurisdicional ineficaz prejudica inclusive a eficácia dos direitos fundamentais constitucionalmente estabelecidos.
Por outro lado, a crescente complexidade das nossas relações sociais veio acompanhada, por diversos motivos históricos, de um crescimento exponencial da litigiosidade contra empresas e o Governo. O Poder Judiciário, por sua vez, não teve (e dificilmente poderia ter tido) um correspondente crescimento na sua estrutura e na sua capacidade de dar vazão a tantas novas demandas, embora a utilização da tecnologia venha sendo um notável elemento nesse contexto.
Nesse contexto foram desenvolvidos e fortalecidos importantes instrumentos. Além das ações coletivas, podemos citar a repercussão geral, as súmulas vinculantes, as decisões monocráticas no caso de recursos cujo objeto seja tratado por súmulas ou jurisprudência pacífica do tribunal, a uniformização da interpretação nos Juizados Especiais da Fazenda Pública e outros[1].
Com efeito, a necessidade de otimização e racionalização da atuação do Poder Judiciário é quase autoevidente, e não parece controversa.
Contudo, as novas perspectivas agregadas ao processo civil não podem ser vistas como valores absolutos e preponderantes sobre todos os outros. Há uma permanente interação entre o Poder Judiciário, seus entendimentos e os diversos atores direta ou indiretamente, de fato ou potencialmente, sujeitos a tais entendimentos. Mas não se pode perder de vista que cabe ao Poder Judiciário exclusivamente resolver demandas a ele colocadas[2], e não agir como legislador ou regulador de setores econômicos.
Obviamente, assim como ocorre com o exercício de qualquer função pública, espera-se que decisões de demandas específicas (individuais, coletivas ou “coletivizadas” por instrumentos de uniformização de jurisprudência) sejam tomadas com a responsabilidade de se tentar antever os impactos desse precedente na sociedade como um todo, além dos impactos diretos decorrente da simples aplicação da decisão.
Esses impactos indiretos, por sua vez, são transmitidos, principalmente, pela publicidade das decisões e pela perspectiva de que outros casos semelhantes sejam decididos de forma igual. Isso desestimula comportamentos contrários a esse entendimento e, assim, pode gerar a redução da quantidade dos conflitos de interesses.
É claro que, pela própria natureza da função do Poder Judiciário, é natural que o foco de sua atenção sejam as demandas específicas a ele levadas. Isso, inclusive, é frequentemente um problema, quando, por diversas vezes, juízes decidem casos específicos sem se darem conta dos seus impactos indiretos. Mas essa tensão é inerente à complexidade da estrutura do Estado tal qual estabelece nossa Constituição, em especial no que se refere à separação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, incorporado à nossa Constituição nos termos do seu art. 2º[3].
Naturalmente, existem casos em que a inadequação de um determinado precedente fomenta comportamentos sociais indesejados. Apenas a título de ilustração, e abrindo quase uma digressão no tema objeto desses comentários, podemos dar dois exemplos disso.
O primeiro deles é a obrigação de que a seguradora prove o nexo causal entre a embriaguez e a ocorrência do sinistro para legitimar uma negativa de indenização. Essa é, frequentemente, uma prova diabólica e, em qualquer caso, resulta no aumento do custo operacional de regulação de sinistros e no próprio volume de indenizações, tornando-se um ônus que atinge a todos os segurados indistintamente, inclusive aqueles que tomam o cuidado de não assumir o risco de beber e dirigir.
Esse é caso clássico de como a brasileiríssima “Síndrome da Proteção do Coitadinho”, em oposição à meritocracia e à efetiva atribuição de efeitos ao descumprimento de obrigações contratuais e deveres legais, chega a seu ápice. Isso, quando as vítimas reais (atropelados, motoristas cumpridores das regras de trânsito e seus familiares) são esquecidas e multiplicadas pela falta de disposição do Poder Judiciário de estabelecer um parâmetro rígido de tratamento que desincentive a conjugação de bebida e direção.
Outro exemplo é a mora no pagamento do prêmio. A necessidade de notificar a existência da mora como condição para que esta mora possa resultar na negativa de indenização, mesmo quando esta tem a natureza pro soluto, ou seja, passível de ter sido identificada pelo proponente/segurado pela simples leitura do boleto, é um claro equívoco jurídico conceitual. Além disso, é um grande incentivo para que prêmios sejam pagos somente naquelas apólices que tiveram sinistros ou quando o segurado for notificado, o que acaba sendo quase a mesma coisa, dada a quantidade de apólices comercializadas pelas seguradoras. Sofrem aqueles segurados que, sendo “otários”, pagam seus prêmios de seguro pontualmente e juntos suportarão o custo da inadimplência.
Esses entendimentos não foram proferidos em casos isolados. Diferentemente (e lamentavelmente) são teses consolidadas no âmbito do Poder Judiciário, embora se possa notar alguns avanços no que se refere aos efeitos da embriaguez.
Não seria justo deixar de lembrar, por outro lado, que decisões judiciais, como aquelas garantindo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, têm promovido significativo desenvolvimento quanto ao respeito aos consumidores por parte das empresas. É mesmo inegável que, em diversos aspectos, as decisões do Poder Judiciário têm sido um elemento importante de desenvolvimento da sociedade.
No tocante ao contencioso de massa, em especial, tem se tornado cada vez mais evidente um certo esgotamento e cansaço desse modelo, por parte de todos os principais atores desse cenário – Poder Judiciário, autores, advogados e empresas. E essa é uma demonstração de como o acesso ao Poder Judiciário e suas decisões podem ser um motor de desenvolvimento social.
Uma novidade, entretanto, surgiu quase silenciosamente no novo CPC, tendo passado quase desapercebida, talvez pela excessiva compartimentalização dos estudos da regulação e do processo judicial. Essa compartimentalização, aliás, é mitigada justamente em setores econômicos como o seguro, que, pela especificidade de seu negócio, tornam-se, interessantemente, núcleos de especialização que conjugam áreas tão diversas como a regulação, o contencioso judicial e outros.
Segundo o art. 985, § 2º, do novo CPC:
Art. 985. (..)
(...)
§ 2º – Se o incidente (de resolução de demandas repetitivas) tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada.
Esta nova regra, embora pareça à primeira vista mais um instrumento de coletivização de impactos de ações individuais, é, na realidade, um desvirtuamento do processo civil e uma intervenção ilegítima do Poder Judiciário nas atividades do Poder Executivo.
Por meio dela, estabeleceu-se a possibilidade de o Poder Judiciário enxergar em um caso concreto a oportunidade de, mais do que estabelecer um precedente possivelmente adequado como referência para o incentivo de relações sociais mais produtivas e justas, impor esse precedente como regra regulatória.
É desejável que órgãos reguladores busquem sempre a redução do número de conflitos de interesses passíveis de gerar o acionamento do Poder Judiciário. É também desejável que o Poder Judiciário decida demandas específicas com a preocupação de estabelecer precedentes que não sejam danosos e até colaborem para a evolução da vida social e econômica. Mas não se vislumbra nessa busca de mútua cooperação a possibilidade de destruição da independência dos Poderes, tanto pelo caráter basilar que tal independência apresenta para a democracia, como porque esta independência é também baseada nas diferentes funções exercidas por cada Poder.
No caso, trata-se o 985, § 2º, do Novo Código de Processo Civil de uma norma que outorga ao Poder Judiciário a possibilidade de atuar como regulador, de intervir em domínios econômicos independentemente de ter sido especificamente provocado, assumindo uma proatividade que caberia somente ao legislador ou, para ficar no âmbito de aplicação da norma, ao regulador.
Ora, se existe uma situação a demandar intervenção, e tal intervenção não ocorreu, pode haver uma razão. É como a estória do jabuti preso no alto da árvore. Jabutis não sobem em árvores, sendo recomendável que, antes de retira-lo de lá, o seu benfeitor instrua-se quanto aos motivos dessa situação estranha.
Pode haver efetivamente um problema a ser resolvido no sentido de proibir, autorizar, desincentivar ou incentivar determinada prática, e convênios para troca de informações entre Poder Judiciário e Poder Executivo com o objetivo de somar esforços nesse sentido (como já existem vários) são sempre desejáveis.
Mas não pode, por exemplo, caber a uma agência reguladora[4] determinar, direta ou indiretamente, ao Poder Judiciário como julgar um determinado caso concreto, ainda que, dentro de sua competência, tenha emitido regra infralegal sobre o tema. Isso violaria de forma flagrante a separação entre os Poderes, base para a estabilidade das relações sociais e para todos um sofisticado sistema de controles mútuos.
Seria efetivamente uma ameaça real à democracia, a existência de um canal de imposição de entendimentos por parte do Poder Executivo ao Poder Judiciário.
Sabemos que, frequentemente, somos tentados a acreditar na superioridade de nossas convicções e na possibilidade de que, se pudéssemos impô-las, tornaríamos o mundo melhor. O problema é que tais convicções nascem com força semelhante em todas as pessoas. Por isso é que, a despeito de suas ineficiências, não se descobriu ainda uma alternativa de sistema melhor do que a democracia e sua complexa teia de freios e contrapesos.
Quando tais “convicções superiores” nascem no âmbito do Estado, é justamente a separação dos Poderes que limita seus impactos negativos.
No caso de um regulador, suas atividades estão sob permanente e potencial revisão pelo Poder Judiciário, sempre que, por qualquer razão, violem normas e princípios de hierarquia superior.
Sempre haverá, no caso de decisões ilegais, tanto no âmbito de situações específicas como na edição de normas gerais, a possibilidade de que quem se sentir prejudicado buscar uma manifestação do Poder Judiciário.
É evidente que a possibilidade de contestação em abstrato ou incidentalmente em casos concretos leva a decisões judiciais eventualmente contrárias a normas formalmente vigentes. Tal espécie de contradição, contudo, existe mesmo na possibilidade da declaração incidental da inconstitucionalidade de leis editadas pelo Parlamento, na medida em que um juiz pode resolver um conflito de interesses com esse fundamento.
Além disso, se o regulador falha e/ou se a postura das pessoas que ocupam tal posição torna-se incompatível com o cumprimento de tais objetivos, existe uma série de outros controles sociais e estatais possíveis (por exemplo, os Tribunais de Contas e a possibilidade de edição de decretos legislativos pela Câmara Federal).
Do mesmo modo, não pode o Poder Judiciário, a partir da análise de um conflito de interesses específico, individual ou coletivo (atividade para a qual se destina a sua existência), promover uma intervenção no domínio econômico.
No caso do incidente de uniformização de jurisprudência (sem o plus da intervenção regulatória), este seria um excelente exemplo de como tornar mais eficaz a prestação jurisdicional. Por isso, o que se discute aqui não é o instrumento em si, mas a possibilidade de que ele seja utilizado como forma de atuação do Poder Judiciário em casos não submetidos a ele.
Assim, a possibilidade de o Poder Judiciário proativa e formalmente intervir do domínio econômico, por meio da emissão de uma ordem, inspirada, mas não limitada ao caso ou conjunto de casos por ele julgado, a um ente do Poder Executivo para que adote determinada interpretação legal ou política pública, é uma agressão ao princípio da separação dos poderes.
Repita-se, não se está aqui a propor que as ações e omissões do regulador sejam imunes às ações do Poder Judiciário. Hoje não o são, e assim deve permanecer, na medida em que a Constituição veda a exclusão de qualquer lesão de direito do Poder Judiciário.
Causa talvez ainda mais perplexidade o fato de que o regulador, no caso, não tem nenhuma legitimidade para propor qualquer recurso ou contestar a própria natureza geral da decisão. Dever-se-ia contar aqui, no melhor cenário, com o bom senso do Poder Judiciário e com a possibilidade da atuação do regulador, por exemplo, como amicus curiae.
Nem se está aqui propondo um ajuste da regra do art. 985, § 2º, no sentido de outorgar legitimidade ao regulador a legitimidade para apresentar recursos, por exemplo. Isso porque a regra é ruim e inconstitucional, e deve ser simplesmente revogada ou ignorada. Mas o mínimo que se esperaria, no caso, é que o regulador tivesse aqui legitimidade para recorrer no âmbito do próprio processo (e não pela eventual propositura de ações específicas, cujo cabimento certamente seria objeto de controvérsia).
Na prática, trata-se de uma autorização para decisões extra petita (que só não o seriam porque se baseariam em uma norma formalmente vigente, embora inconstitucional), que atingem não somente os atores do processo judicial, mas uma série de outros, sem que estes tenham solicitado.
Seria interessante ver como reagiriam os segurados que pagam seus prêmios pontualmente à uma ordem judicial que determinasse ao órgão regulador que passasse a aplicar sanções às seguradoras que se recusassem a pagar indenizações independentemente do pagamento pontual de prêmios, já que sofreriam com o impacto negativo dessa ordem judicial quando da renovação de seus seguros, pelo natural aumento do prêmio de todos.
Estar-se-ia invertendo a ordem das coisas e obrigando aqueles afetados pela ordem judicial a ajuizar ações para discutir tal ordem?
Sabemos que a realidade econômica é comutativa, embora frequentemente nossa busca imediatista por uma justiça abstrata nos faça esquecer disso. Em outras palavras, não existe benefício sem custo, mesmo que alguns pensem que, no caso do seguro, determinar um pagamento injusto pelo fundo comum administrado pela seguradora seja algo neutro para os demais segurados (que ao fim e ao cabo “pagarão a conta”).
Para dar um exemplo simples e real, a garantia da continuidade da locação de um imóvel para um idoso inadimplente tem o efeito direto de garantir que ele não ficará sem teto, e o efeito indireto de desincentivar fortemente a locação de imóveis de moradia para idosos. Ajuda-se um idoso e prejudica-se todos os demais.
O mínimo que espera, então, é que as distorções decorrentes de decisões eventualmente equivocadas fiquem restritas aos casos especificamente decididos e aos efeitos indiretos de decisões prolatadas em casos individuais ou coletivos individuais.
Assim, no âmbito de cada caso específico, as partes terão a seu dispor os recursos previstos pela legislação. E no tocante aos efeitos indiretos dessas decisões, a sociedade terá a seu dispor a dinâmica pela qual a existência de diversos conflitos individuais gera múltiplos entendimentos e recursos, até que se amadureça uma determinada posição e que, em face dela, a sociedade evolui nas suas práticas. Isso sem esquecer que o Poder Judiciário sofre e reage a pressões sociais, embora ele seja, pela sua própria natureza, menos sujeito a elas do que os Poderes Executivo e Legislativo, “condenados” à instabilidade decorrente das eleições.
Obviamente, a excessiva compartimentalização e falta de canais comunicantes entre os diferentes Poderes pode resultar em excesso de litigiosidade e/ou na ineficiência da regulação. Para evitar isso, existem todos os instrumentos de controle e freios e contrapesos acima mencionados.
Ademais, é de qualquer modo um disparate ir ao outro extremo, tornando possível que um Tribunal defina ou altere, por uma ordem direta, desvinculada de uma política regulatória.
Como disse o H.L. Mencken, “For every complex problem there is an answer that is clear, simple, and wrong”. Não é a outorga de um poder excessivo ao ente errado que resolverá o excesso de litigiosidade ou a sensação de injustiça que pode decorrer da percepção (certa ou errada) de que existe em alguma situação uma injustiça ocorrendo em razão de uma determinada ação ou omissão regulatória.
Evoluiremos, sim, com juízes e reguladores cada vez melhores e empresas e consumidores cada vez melhores, não com a outorga, a qualquer desses atores, do poder de intervir e impor a todos sua interpretação da lei.
Ademais, do ponto de vista prático, os exemplos acima, de decisões judiciais cujos efeitos nefastos só não são piores pela limitação de escopo de atuação do Poder Judiciário, são demonstrações cabais do tamanho do problema que pode vir a ser a existência de um poder regulatório outorgado ao Poder Judiciário, cuja estrutura já não dá conta dos problemas existentes na sua atividade típica.
Idealmente, a regra do art. 985, § 2º, do Novo Código de Processo Civil deveria ser revogada. Não ocorrendo isso, torcemos para que tal instrumento não seja utilizado. Se o for, restará a esperança de que a aplicação desse dispositivo não cause mais problemas além do simples fato de existir no ordenamento uma regra tão ruim.