Por Marco Pontes (*)
Em 2019, o governo federal anunciou a reforma da previdência. O clima de otimismo tomou o mercado. Os sinais de uma melhor performance para a economia em 2020 eram evidentes. Infelizmente, o primeiro trimestre do ano trouxe o imprevisível. Se não fosse o cenário de pandemia, certamente o setor de previdência complementar teria boas razões para comemorar. Definitivamente, fomos pegos de surpresa. Uma coisa é sermos pegos por um fator exógeno e imprevisível, alheio a nossa vontade; outra coisa é o mercado não ter a percepção do que pode ser uma ameaça.
O objetivo do presente artigo é trazer à luz dois fatos que deverão ser objeto de reflexão do mercado de previdência privada aberto. O primeiro é o projeto de lei 2011/2019 de autoria do senador Alvaro Dias, do PODEMOS. O projeto de lei parece ter passado despercebido pelo mercado de previdência privada. O segundo é a tentativa de uma Entidade Aberta de Previdência Complementar – EAPC – de não honrar o contrato assinado com o grupo de participantes de um plano de previdência muito popular na década de 1990, o Fundo Gerador de Benefício – FGB.
Afinal, o que é o projeto de lei de autoria do senador Alvaro Dias?
O projeto altera a Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, para permitir que os recursos de planos de previdência complementar aberta sejam oferecidos como garantia de operações de crédito; e altera a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, para dispor sobre a impenhorabilidade de quantia depositada em fundo de previdência privada.
Na prática, o projeto tem a finalidade de estender para quaisquer operações de crédito com as instituições financeiras, não mais restritas a financiamentos imobiliários, a faculdade dos participantes em plano de previdência de oferecer como garantia as suas quotas nos respectivos fundos de investimento constituídos pelas Entidades Abertas de Previdência Complementar. O projeto também altera a ordem preferencial de bens a serem penhorados na execução civil, para incluir as aplicações em fundos de investimento na primeira posição.
A justificativa para a quebra da impenhorabilidade dos recursos aplicados na previdência complementar aberta é a redução do custo do crédito no país. Será?
Eu acredito que o argumento é, no mínimo, questionável. Afinal, por que o custo do crédito no Brasil é tão elevado? Ainda não temos um consenso a respeito da razão do spread ser tão grande.
Enquanto as instituições financeiras apontam como vilã a inadimplência, especialistas no setor elegem a alta margem de lucro dos bancos como fator principal para o spread no Brasil ser tão elevado. É importante destacar que o Brasil pratica o segundo maior spread do planeta, perdendo apenas para Madagascar. Sabemos, a priori, que o spread bancário no Brasil sempre foi estratosférico.
O projeto de lei não se limita a tornar penhoráveis os recursos da previdência privada do indivíduo que tomou um empréstimo e, por alguma razão alheia a sua vontade, tornou-se inadimplente. O projeto de lei também altera a ordem preferencial de bens a serem penhorados em favor do credor. Nesse sentido, equipara os fundos de previdência privada a um fundo de investimento. A associação não é feita por mero acaso.
Particularmente, eu não tenho nada contra a instituição financeira tomar medidas para reaver o seu direito creditício, é justo que faça. O que preocupa é a tentativa de descaracterizar os produtos de previdência privada oferecidos na rede bancária para tornar viável o seu pleito.
Na pesquisa que realizei, pude constatar que as instituições financeiras têm solicitado com frequência em juízo a penhora dos PGBLs dos participantes nas ações judiciais. Nesse sentido, recorrem ao art. 76 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005, que diz o seguinte:
“As Entidades Abertas de Previdência Complementar e as sociedades seguradoras poderão, a partir de 1º de janeiro de 2006, constituir fundos de investimento, com patrimônio segregado, vinculados exclusivamente a planos de previdência complementar ou a seguros de vida com cláusula de cobertura por sobrevivência, estruturados na modalidade de contribuição variável, por elas comercializados e administrados”.
Sendo assim, com os montantes depositados em instituições gestoras de planos de previdência complementar, os PGBLs passariam a ser considerados investimentos e entrariam no cômputo da universalidade dos bens de determinado indivíduo, assim como os rendimentos futuros.
Sendo esses valores um investimento, as instituições financeiras, por analogia, defendem ser viável a possibilidade de penhora desses fundos, uma vez que o Poder Judiciário considera correta a tributação sobre fundos de investimento; logo, se há tributação, há aferição de renda e, portanto, essa aferição não tem caráter alimentício, mas sim de investimento.
Podemos até discutir se o PGBL é ou não é um fundo de investimento. Particularmente, eu entendo que está mais para um fundo de investimento do que um produto com fins previdenciários. Entretanto, uma coisa é eu ter um ponto de vista crítico em relação ao produto; outra, muito diferente, é a Receita Federal concluir que as instituições financeiras tem razão ao afirmar que o PGBL é um fundo de investimento financeiro.
Como destaquei anteriormente, eu posso entender o esforço de as instituições financeiras equipararem o fundo de previdência privada a um fundo de investimento com o objetivo de reaver o seu direito creditório. O que eu não consigo compreender é o silêncio do mercado em relação ao assunto. O que considero preocupante é a falta de percepção do setor em relação à ameaça que o projeto de lei representa para o setor de previdência complementar aberta. Ao que tudo indica, o mercado não está tendo a percepção do risco que corre caso o projeto seja aprovado, isto é, a perda da dedutibilidade do imposto de renda.
Nesse primeiro momento, o projeto de lei faz menção apenas aos fundos de previdência privada mantidos em Entidades Aberta de Previdência Complementar. Todavia, a mesma lógica no futuro pode ser defendida pelas instituições financeiras e ser estendida aos fundos de previdência privada na modalidade de contribuição definida, mantidos por Entidades Fechadas de Previdência Complementar, por que não?
Vale lembrar que na atualidade os valores dos fundos de previdência privada são classificados por Lei na condição de “bens impenhoráveis”. A base da impenhorabilidade está contida no artigo 833, inciso IV do Código do Processo Civil, que diz que “os valores acumulados na previdência privada são totalmente impenhoráveis”, não apenas por equiparação com a aposentadoria, mas por ter como destinação o sustento do beneficiado e de sua família, o que enquadra a previdência privada como impenhorável. Trocando em miúdos, um fundo de previdência privada é um valor economizado no presente para o sustento próprio e da família no futuro, é diferente de um fundo de investimento qualquer. A base da regra de impenhorabilidade é exatamente a possibilidade de subsistência e a natureza alimentícia dos recursos da previdência privada.
Portanto, o projeto de lei é péssimo para o consumidor, porque se eventualmente ele tomar um empréstimo de uma instituição financeira e vier a se deparar com uma situação de dificuldade financeira alheia a sua vontade, como desemprego ou outra razão qualquer e não dispor de recursos para honrar o compromisso assumido, a instituição financeira poderá penhorar ou fazer o arresto de parte ou da totalidade de seu fundo de previdência privada. Aqui devemos incluir não apenas os valores de contribuição realizados por ele, mas também os valores depositados pela empresa em seu nome. Considerando que os juros bancários no Brasil são elevadíssimos, o participante terá o seu fundo de previdência privada corroído em uma velocidade meteórica.
O projeto de lei também é desastroso para o mercado de previdência privada aberta porque poderá jogar por terra os principais argumentos de venda dos produtos PGBL para as pessoas físicas e jurídicas, isto é: (i) a dedutibilidade de parte dos valores investidos para fins de imposto de renda; e (ii) a blindagem patrimonial atrelada ao planejamento sucessório como estratégia de investimento.
O outro tema que trago à luz tem origem na denúncia de um ouvinte durante uma entrevista que participei recentemente. Na ocasião, ele relatou que a EAPC que administra os recursos de seu plano de aposentadoria, a partir de 2020, recusou receber novas contribuições ao plano contratado. O plano que o participante fez referência é um Fundo Gerador de Benefício – FGB.
O FGB foi um produto muito popular no início da década de 1990. As entidades perderam o interesse de comercializar o produto basicamente por duas razões: (i) a obrigatoriedade de dar garantia mínima de 6% ao ano sobre os aportes realizados pelo participante; e (ii) os fatores atuariais para conversão em renda se basearem em uma tábua de sobrevivência desfavorável à entidade. Os dois fatores acima, agindo de forma concomitante, poderiam trazer dificuldades de solvência no futuro para as entidades. De fato, poderiam. Tanto poderiam que a SUSEP, preocupada com esse fato, obrigou as entidades a instituir a provisão matemática por insuficiência de contribuição – PIC, posteriormente extinta porque a adoção do teste de adequação do passivo passou a prever que eventuais valores de insuficiência deveriam ser provisionados na provisão de contribuição complementar. Com isso, as entidades que ainda possuem contratos de planos na modalidade FGB estão protegidas.
Como não é possível romper um contrato de forma unilateral, as entidades tomaram três providências para contornar o problema: (i) suspenderam a comercialização do produto FGB para evitar assunção de novos compromissos com um contingente maior de participantes; (ii) passaram a oferecer como alternativa para o mercado um novo produto, no caso, o PGBL; e (iii) para aquelas entidades que possuíam carteiras de plano na modalidade FGB, promoveram campanhas de migração para um produto alternativo – o PGBL. Assim, foi feito pelo mercado.
Como a decisão de migrar o produto cabe ao participante, nem todas as entidades conseguiram migrar 100% da carteira de FGB para a carteira de PGBL. Nos casos em que o participante não aceitou fazer a migração do plano, não coube alternativa à entidade, que continuou honrando o contrato assinado por ocasião da contratação do plano.
Portanto, é preocupante quando uma entidade de previdência privada tenta rescindir de forma unilateral o contrato de um plano de previdência privada sob a alegação de que não é mais de seu interesse manter o contrato. Quando isso acontece, ela cria um embaraço para todo o mercado. Aqui vale um antigo ditado popular: “uma maçã podre estraga todo o cesto”. Convenhamos, tudo que o mercado não precisa nesse momento é de ações que vão de encontro à ética e à credibilidade do sistema de previdência complementar aberta.
(*) Marco Pontes é sócio da LGP Consultoria Atuarial.