Victor Augusto Benes Senhora*
A recente edição da Lei n. 14.905/2024 que, entre outros temas, alterou o Código Civil para estabelecer novas diretrizes em relação a atualização monetária e os juros moratórios, tem causado alvoroço entre os operadores do direito, já que muitas dúvidas surgiram, sobretudo, mas não só, quanto ao momento e forma de aplicação.
Mas antes de enfrentar os pontos de dúvida, refletir sobre eles e buscar encontrar o melhor caminho, é fundamental realizar um breve apanhado do histórico legislativo e jurisprudencial a respeito dessa temática.
O ponto de partida é o Código Civil de 1916, que tratava dos juros legais moratórios no artigo 1.062 e estabelecia que a taxa, quando não convencionada, seria de 6% ao ano, equivalente a 0,5% ao mês.
Essa regra simples e objetiva perdurou décadas e poucas dúvidas de aplicação sobrevieram ao longo do tempo, até que o Código Civil de 2002 estabeleceu um novo paradigma ao prever no artigo 406 a regra de que se a taxa não for convencionada ou não provir de legislação específica, deveria ser aplicada aquela que estivesse em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.
A partir desse paradigma passou a coexistir, basicamente, dois entendimentos entre os juristas, o primeiro, no sentido de que a taxa seria de 1% ao mês por conta de uma interpretação alinhada com o art. 161, §1º do CTN, e um segundo, de que seria a SELIC, ante a existência de diversas leis especiais que a estabeleciam como taxa aplicada aos tributos devidos à Fazenda Nacional.
Toda essa discussão chegou ao STJ e em 2008 a Corte Especial[1] definiu que a previsão do artigo 406 deveria ser entendida como sendo a taxa SELIC.
Porém, os Tribunais de forma geral resistiram ao entendimento aplicando de maneira maciça a taxa fixa de 1% ao mês.
A taxa de juros de 1% se consolidou na prática um pouco por culpa dos próprios devedores que não defendiam ou insistiam na aplicação da SELIC, muito pelo receio dela chegar a patamares altos, como ocorreu, por exemplo, em 2003 (26,5%) ou até mesmo em 1998 (38%), ou seja, muito maior do que os 12% ao ano que vinham sendo aplicados, mesmo que sobre ele ainda fosse acrescido o índice de correção monetária.
De certo modo, muitos devedores, advogados e os próprios magistrados, sempre preferiram a previsibilidade da taxa fixa ao invés da aplicação de uma outra variável como é a SELIC.
Embora existisse contradição entre a teoria e a prática, tudo transcorria com certa tranquilidade, até que a economia brasileira, a partir de 2018, entrou num período de inflação mais comportada, abrindo caminho para o Comitê de Política Monetária do Banco Central (‘COPOM’) baixar, sistematicamente, a taxa básica de juros da economia (a SELIC), até que em 2021 ela chegou ao menor patamar da história, nos incríveis 2% ao ano.
Esse cenário naturalmente incentivou os devedores a buscarem fazer valer o entendimento do STJ firmado em 2008, culminando em novos debates no âmbito do STJ. A Corte, já em uma nova composição, acabou por afetar o tema para ser (re)avaliado pela Corte Especial, tudo, por iniciativa do Ministro Luís Felipe Salomão, que sempre defendeu que a SELIC não poderia valer para as dívidas civis e que para elas deveria ser aplicada a taxa fixa de 1% ao mês.
Depois de amplo e tormentoso debate, a Corte Especial, em 2024, no julgamento do REsp 1.795.982/SP, por maioria muito apertada (6x5) manteve sua posição de que o artigo 406 do Código Civil faz mesmo referência a taxa SELIC, inclusive, para as dívidas civis.
O fato é que o tema ainda assim é extremamente polêmico e espinhoso e justamente para pacificar o conflito interpretativo, o Poder Executivo Federal apresentou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 6.233/2023, visando deixar mais clara a previsão legal quanto a taxa de juros e a própria correção monetária, com isso, solucionar pontos levantados pelos ferrenhos críticos da aplicação da SELIC.
Essas críticas gravitam em torno do fato de a SELIC não cumprir a natureza dos juros moratórias por não ter a força de penalizar o devedor, e, o pior, em certos momentos até mesmo gerar prejuízo ao credor, sobretudo quando a taxa estiver em percentual abaixo da própria inflação, como ocorreu no mencionado ano de 2021.
Por essa perspectiva, a aplicação da SELIC não teria a capacidade sequer de recompor o valor de compra da moeda corroído pela inflação.
Outra crítica se dá pela dificuldade de aplicação nas condenações por danos extrapatrimoniais, na medida em que a taxa, por abranger juros e correção monetária, sua incidência seria impraticável nas condenações fincadas a partir da aplicação do enunciado da Súmula 362 do STJ, em que o marco inicial da correção monetária do dano é diverso dos juros.
A Lei n. 14.905/2024 veio exatamente com o objetivo de aclarar e corrigir eventuais distorções. Mas, o importante, é que ela chancela que o legislador, a partir do Código Civil de 2002, teve mesmo o objetivo de aplicar ao sistema uma taxa de juros variável.
A introdução do §1º ao artigo 406 do Código Civil estabelece agora de forma clara e expressa a aplicação da SELIC nas condenações judiciais, salvo se houver convenção entre as partes ou existir lei específica para determinada relação jurídica que imponha outro comando.
Para preservar a natureza sancionatória dos juros moratórios e ao mesmo tempo garantir a correção da dívida, foi previsto no mesmo parágrafo 1º que a taxa a ser aplicada deve corresponder a diferença entre a SELIC e o índice de atualização monetária previsto no artigo 389 do Código Civil, que também foi alterado, para estabelecer que se as partes não convencionarem ou não tiver lei específica regulando a relação jurídica nesse contexto, deverá ser aplicado o IPCA.
Essa disposição visa claramente estabelecer uma remuneração das dívidas judiciais a um padrão médio de mercado.
Quando o legislador determina que se deduza o índice de correção da SELIC, o que se busca é encontrar o chamado juro real, no linguajar do texto normativo, a ‘taxa legal’, que é um parâmetro de remuneração do dinheiro muito utilizada no mercado financeiro, sobretudo nos investimentos atrelados a títulos indexados à inflação, acrescido de algum percentual de taxa de juros ajustada com o investidor (CDB, LCA, LCI etc.).
Esse padrão adotado pelo legislador evita a especulação sobre as ações judiciais, onde o credor ou devedor, a depender do momento econômico, podem enxergar nela uma forma de enriquecimento, como se fosse de fato uma espécie de investimento, o que de certo modo vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos com a aplicação da taxa artificialmente prefixada de 1% ao mês + correção monetária, porque esse cenário, dificilmente, se encontra no mercado financeiro, com exceção, é claro, das aplicações que envolva maior risco, como operações em bolsa, contratos de dólar futuro etc.
Ainda quanto a previsão de que a taxa de juros deve ser a SELIC abatida a correção monetária, essa disposição corrige a discussão quanto a impossibilidade de sua aplicação nas indenizações por danos extrapatrimoniais, como é o caso do dano moral.
Com a novel disposição não há nada mais que impeça a aplicação da SELIC desde o evento danoso ou citação. Isto porque, bastará aplicar apenas a ‘taxa legal’, que é o resultado entre a diferença da SELIC e o IPCA. A partir da fixação do valor em sentença, a ‘taxa legal’ passa a ser aplicável concomitantemente com a correção monetária (IPCA).
Um outro ponto de suma importância é a previsão do parágrafo 3º do art. 406 quando estabelece que se a SELIC vier algum dia a ser negativa, a taxa deve ser considerada como ‘zero’.
A ideia é absolutamente clara, qual seja, a de preservar pelo menos a incidência integral da atualização monetária do valor na forma do artigo 389 do Código Civil, porque se fosse possível deduzir a taxa negativa do índice de correção, a atualização não cumpriria sua missão de manter o poder de compra da moeda.
Especificamente para o mercado segurador, a lei alterou a redação do artigo 772 do Código Civil que previa que ‘A mora do segurador em pagar o sinistro obriga à atualização monetária da indenização devida segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, sem prejuízo dos juros moratórios’.
A expressão ‘segundo índices oficiais regularmente estabelecidos’ foi retirada do texto exatamente para viabilizar a aplicação do art. 389 do Código Civil, no sentido de que a atualização deve ser aquela ajustada pelas partes ou, caso não haja, o IPCA.
Essa previsão visa terminar com as diferenças de condenações a depender do Estado da Federação que o caso será julgado, porque os Tribunais de forma geral atualmente adotam índices diferentes. Nesse contexto, a depender do Estado, um cidadão pode se beneficiar em detrimento de outro que tem a mesma matéria discutida em localidade diversa, por exemplo.
É, aliás, o que consta do voto do Deputado Pedro Paulo na Comissão de Constituição de Justiça, ao analisar o projeto que deu origem a lei ora analisada:
‘Por outro lado, a proposição gera maior segurança jurídica ao definir no parágrafo único do art. 389 que, havendo descumprimento de obrigação, na hipótese de o índice de atualização monetária não ter sido convencionado ou não estar previsto em lei específica, será aplicada a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, apurado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, ou do índice que vier a substituí-lo. Evita-se, assim, a submissão das partes a critérios divergentes estabelecidos no âmbito do Poder Judiciário’.
No que diz respeito ao momento e forma de aplicação da nova previsão legislativa, alguns cenários devem ser trabalhados:
i) Quanto aos juros aplicáveis quando o processo ainda está na fase de conhecimento;
ii) casos em que não foi expressamente estabelecido no título executivo judicial o índice de correção monetária e a taxa de juros aplicável e;
iii) nas hipóteses em que há coisa julgada material.
Com relação a primeira hipótese (i), é assente na jurisprudência do STJ que os juros de mora e a correção monetária são obrigações de trato sucessivo e nessa medida se renovam mês a mês, logo, aplica-se a legislação vigente no mês de regência[2].
Isso significa que durante a fase de conhecimento a parte pode, a qualquer tempo e grau de jurisdição, requerer a aplicação da nova lei para período posterior a sua entrada em vigor, inclusive pelo fato de os juros e a correção monetária serem matérias de ordem pública.
Já na segunda hipótese (ii), o STJ admite que na execução seja esclarecido e/ou fixada a taxa de juros e a correção monetária quando o título executivo foi omisso, sem que isso implique em violação coisa julgada[3].
Nesse cenário, a intervenção judicial para aclarar o título, é vista como necessária para sua própria execução e meio para se encontrar o valor efetivo do débito.
Porém, no terceiro cenário (iii), se o título executivo judicial transitado em julgado é expresso quanto ao índice de correção monetária e taxa de juros, passa a não ser possível alterar, na fase de liquidação ou no cumprimento de sentença, os critérios estabelecidos, sob pena de violação a coisa julgada[4].
Mas, para este último cenário, há exceção, qual seja, quando inexistia ao tempo da fixação definitiva do título executivo judicial a nova previsão legal atinente ao tema dos juros e da correção monetária.
Para essa hipótese passa a ser possível defender a necessidade de adequação ao novo referencial, mesmo havendo coisa julgada, já que ele inexistia por ocasião da formação do título e, portanto, sequer era possível sua aplicação pelo magistrado ou mesmo insurgência pela parte.
O fundamento de tal pretensão está, inclusive, consolidada no STJ, bastando para isso observar o Tema 176, cuja tese jurídica está assim assentada:
"Tendo sido a sentença exequenda prolatada anteriormente à entrada em vigor do Novo Código Civil, fixado juros de 6% ao ano, correto o entendimento do Tribunal de origem ao determinar a incidência de juros de 6% ao ano até 11 de janeiro de 2003 e, a partir de então, da taxa a que alude o art. 406 do Novo CC, conclusão que não caracteriza qualquer violação à coisa julgada".
Por ser simétrica com a situação atual, tal entendimento é plenamente viável de se buscar aplicação em relação a incidência da Lei n. 14.905/2024.
Enfim, esses são alguns pontos e situações que muito provavelmente gerarão maior debate, e as reflexões acima, longe de esgotar o tema, visam trazer luz e orientações que colaborem com o amadurecimento da temática em prol da segurança jurídica e da correta apuração da dívida, sem que isso implique em favorecimento ao credor ou ao devedor.
[1] EREsp 727.842/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 08/09/2008, DJe 20/11/2008
[2] REsp 1.112.746/DF
[3] EDcl no AgRg no REsp 1.210.516/RS
[4] AgInt nos EDcl no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2.163.752/RS