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O seguro garantia e a extensão objetiva da cláusula compromissória

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Cassio

Cassio Gama Amaral
Sócio do escritório Mattos Filho

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Christiana Carneiro da Rocha Castrioto
Advogada do escritório Mattos Filho

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Fernanda Dias de Almeida
Advogada do escritório Mattos Filho

I. Introdução

O seguro garantia consolidou-se no Brasil a partir da década de 90 como um importante instrumento de segurança para o Estado na contratação de obras, serviços e compras. Posteriormente, com a sua mais ampla – e indispensável – aplicação, pôde satisfazer também a necessidade dos mais diversos setores da economia, minimizando contingências relacionadas a possíveis inadimplementos contratuais ou de outras obrigações de diversas naturezas.

Pelo seguro garantia, em apertada síntese e sem pormenorizar os detalhes específicos de suas inúmeras modalidades, o segurador obriga-se, nos termos e nos limites da apólice por ele emitida, mediante o pagamento do respectivo prêmio, a garantir o fiel cumprimento das obrigações (de dar e/ou de fazer) assumidas pelo tomador, em especial, na sua forma mais clássica, aquelas decorrentes do contrato garantido ou contrato principal celebrado entre este e o segurado.

Vale ressaltar que a apólice de seguro garantia é contratada pelo tomador, que paga o respectivo prêmio, sendo ela emitida pelo segurador em benefício do segurado, o qual não intervém na sua formação, tampouco lhe dá aquiescência expressa e escrita.

Assim, com a celebração do seguro garantia, o segurador assume parte dos riscos relacionados ao eventual descumprimento do contrato principal pelo tomador, pulverizando-os por meio de técnicas (res)securitárias. Evidente, portanto, a importância deste seguro para o desenvolvimento do país, em especial para a viabilização dos projetos de infraestrutura que tanto carecemos.

Nesse cenário, tal modalidade de seguro tem garantido o cumprimento de contratos relativos a operações e projetos complexos, envolvendo valores bastante expressivos, nos quais as partes (segurado e tomador) elegem a arbitragem como o método de solução das suas controvérsias.

Por outro lado, a experiência dos severos sinistros recentemente ocorridos no Brasil nos trouxe o desafio de lidar com as corriqueiras e indesejadas disputas paralelas entre, de um lado, segurado e tomador, no âmbito de procedimentos arbitrais sigilosos, e, de outro, no âmbito da jurisdição estatal, entre segurador e segurado, sem contar os litígios entre segurador e tomador sobre os direitos do primeiro emergentes do contrato de contragarantia.

Pois bem. A existência da relação jurídica tripartite sui generis segurador-segurado-tomador inerente ao seguro garantia, em que não se vislumbra, como vimos, um instrumento único no qual as partes manifestam expressa e simultaneamente sua vontade, incluindo a escolha do juízo arbitral para dirimir conflitos dele decorrentes, traz à tona importante discussão acerca da extensão objetiva da cláusula compromissória prevista no contrato principal para dirimir conflitos relativos à relação securitária.

II. O seguro garantia como contrato coligado ao contrato principal

Antes de abordar a questão da possibilidade (ou não) da aplicação da teoria da extensão objetiva da cláusula compromissória ao seguro garantia, é preciso responder a seguinte indagação: a apólice de seguro garantia pode ser considerada um contrato coligado ao contrato principal? Sem uma resposta positiva a essa pergunta, todo e qualquer questionamento sobre a teoria da extensão objetiva se mostra inviável.

De acordo com a definição de Francisco Marino, contratos coligados são aqueles que “por força de disposição legal, da natureza acessória de um deles ou do conteúdo contratual (expresso ou implícito), encontram-se em relação de dependência unilateral ou recíproca”[1]. Nessa linha, a coligação tem como principais características “a pluralidade de negócios jurídicos e a unidade de operação econômica”[2].

Em outras palavras, contratos coligados são aqueles que, em algum grau, possuem relação de acessoriedade, dependência ou coordenação, podendo esta última ser centrífuga (a relação se expande a partir de um centro comum) ou associativa (os contratos congregam esforços para o alcance de um objetivo comum)[3].

Vê-se, assim, que o instituto da coligação está presente quando existe uma interligação funcional ou econômica entre contratos estruturalmente autônomos, em que cada contrato possui uma função específica dentro da operação. Logo, o nexo finalístico, essencial para a classificação de contratos coligados, verificar-se-á quando o grupo de contratos coexistir para alcançar um único objetivo, a finalidade econômica comum aos interesses das partes[4].

Feitos esses esclarecimentos, passa-se a analisar as características do seguro garantia, de maneira que se possa verificar se existe relação de coligação entre ele e o contrato principal.

Como se sabe, o seguro garantia é o instrumento pelo qual o segurador se obriga a garantir interesse legítimo do segurado relativo ao fiel adimplemento de obrigação assumida pelo tomador no contrato principal.

É importante ressaltar que, no seguro garantia, por ocasião da subscrição do risco, a seguradora analisa os aspectos econômico-financeiros e operacionais da operação ou projeto objeto do contrato principal, sendo a capacidade de performance do tomador elemento de extrema importância. Renato Buranello destaca que as 3 (três) principais ordens de análise do risco dizem respeito (i) à capacidade econômico-financeira e expressão empresarial do tomador, (ii) à competência e capacidade técnica do tomador de poder e saber realizar aquilo a que se propõe e (iii) ao caráter e idoneidade do tomador[5].

Nesse sentido, Gladimir Poletto afirma que o seguro garantia é uma relação jurídica fundada na ajuda recíproca, por meio do qual as partes pretendem, de forma objetiva, concretizar o projeto iniciado[6]. Percebe-se, assim, que a apólice de seguro garantia é tailor-made para o contrato principal, por ser desenhada especificamente para obrigação principal que vai garantir[7], de forma a permitir a plena conclusão do contrato principal mesmo em caso de inadimplemento do tomador.

Com base nas premissas acima, é possível concluir que o seguro garantia pode ser classificado como contrato coligado por coordenação associativa, de acordo com a definição de Rodrigo Leonardo, uma vez que o seguro garantia congrega esforços com o contrato principal para que seu objeto seja integralmente concluído.

Ademais, como o seguro garantia muitas vezes é exigido do tomador como condição precedente no próprio contrato principal ou, ainda que não condicione a sua existência ou eficácia, é exigido do tomador como condição de manutenção do negócio, pode-se dizer que há união voluntária entre referidos contratos, em razão da existência de cláusula contratual que disciplina expressamente o vínculo intercontratual[8].

Em razão disso, a doutrina especializada entende que o seguro garantia pode ser classificado como contrato coligado ao contrato principal, pois ambos buscam o mesmo objetivo, qual seja, a efetividade do objeto do contrato principal[9].

III. O seguro garantia e a extensão objetiva da cláusula compromissória em contratos coligados

No Brasil, a extensão da cláusula compromissória a partes não signatárias é amplamente discutida, em razão do princípio da autonomia da vontade que rege a arbitragem, segundo o qual uma parte não pode ser a ela submetida se não tiver anuído expressamente a tal forma de solução de litígios.

A controvérsia sobre o tema gira em torno da forma de manifestação da vontade/consentimento em relação à cláusula arbitral. Há quem entenda que deve ser aplicada uma interpretação restritiva, apenas vinculando-se à convenção de arbitragem aqueles que expressamente a pactuaram e manifestaram sua vontade por escrito[10]. Por outro lado, os que defendem a possibilidade de extensão dos efeitos da cláusula compromissória entendem que o consentimento vai além da formalidade da assinatura da convenção de arbitragem, podendo ser demonstrado, inclusive, pela conduta da parte[11].

A esse respeito, o artigo 4º, § 1º, da Lei de Arbitragem exige, apenas, que a cláusula arbitral seja estipulada por escrito, não prevendo requisitos e formas especiais para a manifestação do consentimento.

No entanto, ainda não se alcançou um posicionamento pacificado sobre o assunto. Prova disso é o recente acórdão de abril deste ano que dividiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, a qual decidiu, por maioria, não ser necessária a assinatura das partes para que uma cláusula arbitral tenha validade, bastando a comprovação do consentimento[12]. Em sentido contrário, os ministros divergentes entenderam não existir elementos suficientes para concluir a intenção das partes de renunciar ao Poder Judiciário.

Da mesma forma, no que concerne à extensão objetiva da cláusula compromissória ao seguro garantia, é importante que se verifique a real intenção das partes em relação ao objetivo comum consubstanciado no grupo de contratos.

De modo diverso, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, baseado em interpretação literal dos textos contratuais e sem analisar a existência de coligação entre os contratos, já decidiu que cláusula compromissória prevista no contrato de arrendamento de terminal portuário não teria seus efeitos estendidos ao seguro garantia[13].

Mas já há casos em que se admitiu a extensão objetiva da cláusula compromissória a contratos coligados, com base no entendimento de que o cerne da operação interligava os contratos[14] ou, ainda, de que a intenção das partes era realizar uma transação econômica única, o que constituiria um grupo de contratos[15].

É inegável que, em caso de múltiplos contratos com partes diferentes, o cenário ideal para garantir a atribuição de pleno efeito à cláusula arbitral sobre todas as partes é aquele onde as intenções das partes estão devidamente manifestadas, por escrito, de forma clara e completa, de preferência, em documento assinado por todas as partes ou em documentos compatíveis que façam referências cruzadas.

No caso do seguro garantia, por exemplo, o ideal seria que a cláusula compromissória do contrato principal estabelecesse expressamente a coligação com a cláusula compromissória da apólice – as quais deverão, naturalmente, possuir redações compatíveis[16] –, a fim de garantir o consentimento por escrito do segurado de submeter eventuais conflitos com a seguradora à arbitragem, uma vez que, como visto, aquele não contrata ou assina a apólice e o segurador, por sua vez, não assina o contrato principal.

Outras alternativas podem ser consideradas para garantir a submissão de todas as partes à arbitragem, como, por exemplo, (i) a assinatura, pelo segurado, segurador e tomador, de espécie de carta de compromisso, que faça menção aos contratos que instrumentalizam a operação e reproduza ipsis litteris as cláusulas compromissórias constantes do contrato principal e da apólice do seguro garantia, de forma a obter o consentimento, por escrito, das três partes da relação jurídica triangular; ou (ii) a imposição de obrigação ao tomador, no contrato principal, de providenciar a inclusão de cláusula compromissória na apólice quando de sua contratação, o que decorreria de solicitação direta e expressa do segurado em relação à submissão de conflitos decorrentes da apólice à arbitragem, podendo ser suficiente para evidenciar seu consentimento.

IV. Conclusão

Buscou-se demonstrar que há elementos doutrinários suficientes para admitir a classificação do seguro garantia como contrato coligado ao contrato principal para, ao menos, trazer fundamentos às discussões preliminares sobre o tema da aplicabilidade da teoria da extensão objetiva da cláusula compromissória no âmbito do seguro garantia.

Nota-se que a jurisprudência nacional e internacional ainda é bastante cautelosa quanto à aplicação da extensão objetiva da cláusula compromissória, tendo ela buscado sempre respeitar o consentimento expressamente dado pelas partes (seja por escrito ou por sua conduta) ou, em análise mais profunda, a real intenção das partes quando da estruturação de referida operação contratual e seus objetivos econômico-financeiros.

No caso do Brasil, especificamente, há ainda o claro receio de se interpretar de forma ampliativa a renúncia ao Poder Judiciário, razão pela qual se mostra necessária especial atenção na estruturação de operações garantidas e na redação dos diferentes instrumentos que as compõem, a fim de demonstrar claramente – caso seja esse o interesse das partes – a coligação entre os contratos e a aplicação geral e uniforme da cláusula compromissória.


[1] MARINO, Francisco Paulo de Crescenso. Contratos coligados no direito brasileiro São Paulo, Saraiva, 2009, p.99.
[2] COSTA, Maria D’Assunção, RODRIGUES, Luís Fernando M. “Irradiação de efeitos nos contratos coligados: ponderações iniciais”. Revista do Direito da Energia, São Paulo, v. 8, dezembro 2008, p.133.
[3] LEONARDO, Rodrigo Xavier. “Contratos Coligados, Redes Contratuais e Contratos Conexos”. In: FERNANDES, Wanderley. Contratos Empresariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais. Série GVLaw. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p.354-355.
[4] COSTA, Maria D’Assunção, RODRIGUES, Luís Fernando M., Op. Cit., p.40.
[5] BURANELLO, Renato Macedo. Do Contrato de seguro: o seguro garantia de obrigações contratuais. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p.174-175.
[6] POLETTO, Gladimir Adriani. O Seguro Garantia: em busca de sua natureza jurídica. Orientação por Paulo R. R. Nalin. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2003, Cadernos de Seguro: teses, v. 8, nº. 17, p.57.
[7] BURANELLO, Renato Macedo. Op. Cit., p.174.
[8] MARINO, Francisco Paulo de Crescenso.Op. Cit, p.107.
[9] POLETTO, Gladimir Adriani. Op. Cit., p.86; e BURANELLO, Renato Macedo. Op. Cit., p.178.
[10] Por exemplo, WAMBIER, Teresa Arruda. “Não sujeição do terceiro anuente à cláusula de compromisso arbitral prevista em contrato”. In: Pareceres, Terese Arruda Alvim Wambier, v. 1, 2012 (DTR/2012/450939), p.123.
[11] Nesse sentido: JABARDO, Cristina Saiz. Extensão da Cláusula Compromissória na Arbitragem Comercial Internacional: O Caso dos Grupos Societários. Orientador: Professor Titular Luiz Olavo Baptista. Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, pp.27-29; CAPRASSE, Olivier. “A arbitragem e os grupos de sociedades”. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, v. 21, 2003 (DTR/2013/339), p.339; e HANOTIAU, Bernard. “Problems Raised by Complex Arbitrations Involving Multiple-Contracts-Parties-Issues – An Analysis”. Journal of International Arbitration, v. 18, nº. 3, 2001, p.255.
[12] REsp nº. 1.569.422, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 26.4.2016.
[13] Apelação nº. 2007.001.17.081 e Agravo de Instrumento nº. 2005.002.28.435, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio de Mello Tavares, j. respectivamente em 07.11.2007 e 26.4.2006.
[14] STJ, REsp nº. 653.733, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 30.10.2006 e Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº. 0002163-90.2013.8.26.0100, Rel. Gilberto Santos, j. 31.7.2014.
[15] Caso Société Kis France et autres v. Société Générale julgado pela Corte de Apelações em Paris em 31.10.1989 (Revue de l’arbitrage, Comité Français de l’Arbitrage, 1992, v. 1992, Edição 1, pp.90-93.
[16] No tocante, por exemplo, à escolha da instituição arbitral que administrará a arbitragem e à forma de constituição do tribunal arbitral, a fim de garantir que seja compreendida a vontade uníssona. 
 
Fonte: Artigo publicado originalmente na revista Opinião.Seg nº 12 - Agosto de 2016.