Por Anna Guiomar Vieira Nascimento (*)
1. O Artigo 9º da Circular SUSEP nº 440/2012 (que estabelece parâmetros obrigatórios para planos de microsseguros) dispõe que para os menores de 14 anos é permitida, exclusivamente, a oferta e a contratação de coberturas relacionadas ao reembolso de despesas, seja na condição de segurado principal ou de dependente. Esta previsão também está incluída no artigo 8º da Circular SUSEP nº 302/2005 (estabelece regras complementares para operação de coberturas de risco ofertadas em planos de seguros de pessoas). A questão a ser dirimida é se esta condição infringe o art. 3º, inciso I da Lei 10.406/2002 (Código Civil): “os menores de 14 anos são incapazes para exercer os atos da vida civil”. Além disso, remanesce outra pergunta: o menor de 14 anos não pode ser segurado em contrato de seguro de vida em nenhuma hipótese?
2. O seguro de pessoas introduziu questões morais no histórico dos contratos de seguros, mais especificamente nos contratos de seguro de vida. Este último teve a sua origem em apostas sobre a duração da vida de pessoas públicas, como reis, autoridades e Papas, sendo que, em consequência de questões morais, algumas leis surgiram proibindo esse tipo de aposta, sobre a vida alheia.
3. Posteriormente, a sua contratação passou a ser possível quando o estipulante tivesse interesse na vida do segurado. Mesmo assim, “alguns golpes fizeram recrudescer as críticas moralistas. Na França, registrou-se o caso de uma senhora rica que foi envenenada pelo beneficiário, depois de ter sido habilmente convencida por ele a contratar uma valiosa apólice. Também eram relatadas histórias macabras de mortes de crianças, cujas vidas haviam sido adredemente seguradas, fatos que deram lugar à proibição, na França e na Bélgica, do seguro de vida de menores de 12 anos (Buttaro, 1954, p.237).” [1]
4. No Brasil, atualmente, o artigo 790 do Código Civil determina que o proponente do seguro de vida “é obrigado a declarar, sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado.” No parágrafo único do mesmo artigo está estabelecido que há um interesse presumido na preservação da vida quando o segurado é cônjuge, ascendente ou descendente do proponente. Em tais casos pressupõe-se que o “interesse do proponente de seguro sobre a vida do cônjuge, de descendente ou ascendente, é afetivo. O proponente fica dispensado de maiores declarações, bastando que comprove o vínculo por meio de documentos idôneos (certidões de nascimento e de casamento). O afeto, que normalmente permeia a vida familiar é presumido e legítima o interesse (presunção relativa). As situações excepcionais devem ser provadas, e o ônus da prova é do segurador, que poderá exigir declarações ou documentos adicionais ao proponente, com a finalidade de esclarecer dúvidas e depurar a percepção das reais relações existentes entre o segurado e o beneficiário.” [2]
5. O art. 3º do Código Civil em vigor estabelece que os menores de 16 anos são absolutamente incapazes; sendo que o art. 4º estabelece a incapacidade relativa dos maiores de 16 e os menores de 18 anos. A única distinção do Código Civil de 1916 em relação ao atualmente válido era que os relativamente incapazes eram aqueles maiores de 16 e menores de 21 anos.
6. Mas no que diz respeito às questões aqui tratadas, a diferença crucial entre os menores de dezesseis anos, que são absolutamente incapazes, e os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos (relativamente incapazes) é que os primeiros só podem praticar os atos da vida civil devidamente representados, enquanto que os últimos necessitam apenas da assistência do seu representante. E mais, os relativamente incapazes podem praticar alguns atos sem a assistência do seu representante, tais como, fazer testamento (CC, art. 66); exercer empregos públicos para os quais não seja exigida a maioridade; mediante autorização pode ser comerciante (CC, art. 5º, §único) e outros. Enfim, a incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos advém da sua “falta de discernimento para distinguir o que podem ou não fazer, o que lhes é conveniente ou prejudicial”. Diante deste quadro e do próprio histórico do seguro de vida é que está estabelecido o artigo 109 , a seguir transcrito, no Decreto-Lei nº 2.063/1940:
“Art. 109 É proibida a estipulação de qualquer contrato de seguro sobre a vida de menores de quatorze anos de idade, sendo, porém, permitida a constituição de seguros pagáveis em caso de sobrevivência, estipulando-se, ou não, a restituição dos prêmios em caso de falecimento do segurado.”
7. Constata-se , assim, que a norma anteriormente transcrita proíbe a realização de seguro de vida tendo como segurado o menor de quatorze anos, pois este não tem capacidade de discernir a real intenção do seu representante legal. Note-se que, neste caso, o representante legal do menor de quatorze anos é quem teria poderes para assinar o contrato de seguro de vida em seu benefício ou em favor de um terceiro à sua escolha.
8. Não se pode deixar de alertar , neste ponto, para a determinação contida no § único do artigo 790, do Código Civil de que se presume o interesse na preservação da vida do segurado, quando o proponente do seguro de vida é cônjuge, ascendente ou descendente. Sim, o interesse é presumido, contanto que o segurado não seja menor de quatorze anos, pois, neste caso, há uma proibição legal, ou seja, o art. 109, do Decreto-Lei nº 2.063/1940.
9. Por outras palavras, presume-se o interesse na vida do relativamente incapaz e do maior de quatorze anos e menor de dezesseis anos, se o seu genitor(a) ou representante legal contratar o seguro de vida. Entretanto, caso o menor tenha menos de quatorze anos, o contrato de seguro de vida celebrado pelo seu genitor(a) ou representante legal é nulo de pleno direito, em decorrência de dispositivo legal específico. A única hipótese de permissão de celebração de seguro de vida tendo como segurado o menor de quatorze anos é no caso de seguro pagável em caso de sobrevivência (art. 109, do Decreto-Lei nº 2.063/40). Neste caso específico, o objeto da contratação é lícito, pois o representante legal do menor deverá ser vigilante, ou mesmo o maior interessado na sua sobrevivência caso ocorra algum sinistro.
10. A norma está em perfeita sintonia com o Código Civil que estabelece como princípio basilar no seu artigo 790 que o proponente do seguro de vida “é obrigado a declarar, sob pena de falsidade, o seu interesse pela preservação da vida do segurado”. Se o contrato de seguro de vida tendo como segurado o menor de 14 anos, a indenização cabível só possa ser paga caso haja sua sobrevivência, constata-se a perfeita licitude do decreto-lei anteriormente citado. O Decreto-Lei nº 2.063/40 não foi revogado pelo novo Código Civil de acordo com o § 1º, do Art. 2º, do Decreto-lei nº 4.657/42 (LINDB) : “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”. São perfeitamente compatíveis entre si. O Decreto-Lei nº 2.063/40 é norma especializada anterior que não contradiz nenhum dispositivo do Código Civil em vigor, no que tange ao assunto aqui tratado.
11. Outros casos que são lícitas as disposições, são o do artigo 9º da Circular SUSEP nº 440/12 e do artigo 8º da Circular SUSEP nº 302/05 ao estabelecerem que só é possível a oferta para menores de quatorze anos relativa à contratação de coberturas relacionadas ao reembolso de despesas, seja na condição de segurado principal, seja na condição de dependente. E o motivo para tanto, é que são previsões legais que levam em conta que o menor teria as despesas para a preservação de sua vida ou de sua saúde custeadas pelo seu representante legal que poderá, assim, ser ressarcido. Isso quer significar que o representante legal do menor estará atuando para garantir a saúde e a vida do menor de 14 anos. Sendo assim, é possível a celebração de contrato com coberturas securitárias visando o reembolso de despesas em que o segurado seja menor de 14 anos. Mas a contratação de seguro de vida cujo segurado seja menor de 14 anos só pode se dar se a indenização for paga em caso de sobrevivência do mesmo.
[1] PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos Nominados III. São Paulo: RT, 2008, p.152.
[2] Ob, cit., p.158.
(*) Anna Guiomar Vieira Nascimento é graduada em Direito em 1983 , tendo obtido o título de Mestre em Direito em 2003, ambos pela Universidade Federal da Bahia. Exerceu o cargo de Procuradora Federal de 1984 a 2015, sendo que de 2011 a 2015 trabalhou na Procuradoria Federal junto à Susep/SP. Atualmente é advogada autônoma atuando nas seguintes áreas: Direito Administrativo, Contratos, Seguros, Resseguros, Títulos de Capitalização, Previdência Privada e Direito Digital. É fluente em inglês. Lê e traduz bem francês e espanhol. anna.guiomar@gmail.com
Fonte: Editora Roncarati, em 05.02.2016.