Por Anna Guiomar Vieira Nascimento (*)
Como resolver uma questão aparentemente tão simples quanto a do segurado que celebra um contrato de seguro de vida e, posteriormente, vem a falecer em razão de uma doença preexistente? Será que essa doença foi realmente a causa do óbito? A seguradora solicitou os exames médicos necessários para averiguar o estado de saúde do proponente do contrato de seguro de vida? Quais seriam os parâmetros para se averiguar se houve ou não má-fé por parte do segurado ao celebrar o ajuste? Como verificar se a seguradora agiu de forma abusiva?
Essas questões só podem ser dirimidas através da aplicação ao caso concreto da teoria ou do princípio da boa-fé objetiva. Esse conceito é fundamental para solucionar as questões acima ventiladas.
O que seria, então, a boa-fé objetiva? A boa-fé objetiva é uma cláusula geral que consta de todos os contratos por estar estabelecida no art. 422, do Código Civil. Além dessa previsão legal, essa cláusula geral do contrato está estatuída no inciso III, do art. 4º do Código de Defesa do Consumidor, aplicando-se também, de forma expressa, às relações de consumo. Cabe ao intérprete do direito ao se deparar com os fatos realizar a sua devida aplicação, interpretação.
De uma forma mais concreta, a boa-fé objetiva é o comportamento leal, correto e respeitoso que uma parte espera da outra. As pessoas quando iniciam as tratativas e celebram um contrato têm objetivos comuns a serem alcançados e, para isso, devem agir de forma a atingir o objetivo contratual com lealdade, sem abuso de sua posição na relação contratual, sem buscar causar qualquer desvantagem ou prejuízo ao seu parceiro contratual [1]. A boa-fé objetiva é o comportamento que se espera de uma forma geral, de uma forma medianamente exigível das partes contratantes. Este é o conteúdo da cláusula geral estabelecida no art. 422, do CC e no inciso III, do art. 4º, do CDC.
Mas estamos diante da seguinte situação: foi celebrado um contrato de seguro de vida tendo como contratante a pessoa B e como contratada a seguradora Y. Quando do óbito de B , a seguradora Y diante das informações prestadas pelo beneficiário do seguro, alega que o segurado não informou que padecia de doença preexistente e não paga a indenização prevista contratualmente.
Para resolver esse caso concreto dois posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça - STJ que aplicam a boa-fé objetiva supra-citada, são fundamentais. O primeiro deles que trata da recusa justa da seguradora em pagar a indenização: "O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido de que é lícita a recusa da cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente à contratação do seguro, se comprovada a má-fé do segurado." [2] O outro entendimento é aquele que aborda o contrato de seguro realizado por segurado portador de doença preexistente , mas sem má-fé: "Não comprovada a má-fé do segurado quando da contratação do seguro saúde e, ainda, não exigida, pela seguradora, a realização de exames médicos, não pode a cobertura securitária ser recusada com base na alegação da existência de doença pré-existente" [3]
Como averiguar se houve má-fé por parte do segurado? Ao analisar os fatos, o aplicador do direito irá levar em consideração as suas circunstâncias, ou seja, se o segurado sofria de doença fatal e não sobreviveu muito tempo após a celebração do ajuste, se o mesmo não respondeu de forma correta ao questionário da seguradora dentre outros aspectos. A aplicação dessas observações se dá, por exemplo como neste julgado do STJ: “Com efeito, ao assinar a proposta de admissão ao consórcio (fls.136/136v), o consorciado falecido concordou com os termos do item 10, declarando que se encontrava em perfeito estado de saúde e que não possuía, entre outras doenças, qualquer moléstia hepática. Todavia, na data da contratação, que ocorreu em 14/05/2008, sabia ser portador de cirrose hepática, como emerge inequívoco do exame médico de fls. 101v, realizado em 10/12/2007.”[4]
Mas a doença precisa estar relacionada à causa da morte, pois, se assim não for, o caso concreto poderá ter a seguinte solução: “Provado nos autos que, no ato de assinatura do contrato, o recorrente já era portador de obesidade mórbida, os respectivos riscos certamente foram levados em consideração e aceitos pela seguradora ao admiti-lo como segurado, não se podendo falar em vício na manifestação de vontade. Ademais, diante do quadro de obesidade mórbida, era razoável supor que o segurado apresentasse problemas de saúde dela decorrentes - inclusive diabetes, hipertensão e cardiopatia - de sorte que, em respeito ao princípio da boa-fé, a seguradora não poderia ter adotado uma postura passiva, de simplesmente aceitar as negativas do segurado quanto à existência de problemas de saúde, depois se valendo disso para negar-lhe cobertura.”[5]
Além disso, a seguradora há que ter muito cuidado e lealdade na hora da contratação, pois muitas vezes aceita o não preenchimento correto da proposta, ou apesar de obter as informações, não exige exames médicos complementares antes de celebrar o contrato, levando em conta a possibilidade de negar a indenização pertinente quando do sinistro. No entanto, a má-fé do segurado precisa ser provada em juízo. É preciso que as seguradoras estejam atentas a tal fato, pois o STJ já proferiu inúmeros julgados como este: “1. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de não ser possível à seguradora eximir-se do dever de pagamento da cobertura securitária sob a alegação de omissão de informações por parte do segurado, se dele não exigiu exames médicos prévios à contratação do seguro. Precedentes.1.1. Consoante cediço no STJ, a suposta má-fé do segurado (decorrente da omissão intencional de doença preexistente) será, excepcionalmente, relevada quando, sem sofrer de efeitos antecipados, mantém vida regular por vários anos, demonstrando que possuía razoável estado de saúde no momento da contratação/renovação da apólice securitária. Precedentes.” [6]
Os julgados acima transcritos nos dão alguns parâmetros que podem auxiliar nas respostas às questões colocadas no início desse artigo:
(1) A mera existência de doença preexistente não leva à conclusão imediata de que houve má-fé da parte do segurado. A má–fé do segurado tem que ser comprovada pela seguradora.
(2) A seguradora, por sua vez, deve ser diligente no momento da elaboração das condições gerais do seguro de vida, bem como da formulação do seu questionário; e antes da aceitação da proposta, deve exigir exames médicos complementares se as circunstancias demonstrarem a sua necessidade.
(3) Se o segurado tem conhecimento de que possui uma doença grave e a omite no momento da contratação e este problema de saúde dá origem ao seu óbito em um curto espaço de tempo, pressupõe-se a má-fé do segurado.
(4) A doença preexistente do segurado, sua morte em um breve espaço de tempo e sem correlação com a moléstia, não desobriga a seguradora do pagamento da indenização.
(5) A morte do segurado em consequência da doença preexistente, mas com um razoável intervalo de tempo desde a celebração do ajuste, não é justificativa para a seguradora negar o pagamento da indenização.
Em cada uma das assertivas acima está contido o conceito de boa-fé objetiva, pois a má-fé será aferida levando em conta a conduta mediana de quem contrata um seguro de vida naquelas circunstâncias específicas e em conformidade com os usos do local, bem como o abuso da posição contratual de uma das partes contratantes.
Por fim, a principal conclusão a que se chega em torno do tema aqui tratado é que a doença preexistente e a sua omissão por parte do segurado quando da contratação do seguro de vida não leva a que a seguradora possa de imediato negar a indenização respectiva. É preciso que haja a comprovação da má-fé por parte do segurado. Por outro lado, a seguradora deve ser diligente na fase pré-contratual solicitando todas as informações necessárias para uma boa contratação. Se houver uma prática abusiva por parte da seguradora esta terá que pagar o valor indenizatório pertinente e, poderá até arcar com danos morais. [7]
[1] Cf. Cláudia Lima Marques in “Planos privados de assistência à saúde. Desnecessidade de opção do consumidor pelo novo sistema. Opção a depender da conveniência do consumidor. Abusividade de cláusula contratual que permite a resolução do contrato coletivo por escolha do fornecedor: parecer.” Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v_, n. 31, pág. 134, jul/set.1999.
[2] Cf. AgRg no AREsp 704.606/MG, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Quarta Turma, julgado em 18/06/2015, DJe 26/06/2015.
[3] Cf. AgRg no AREsp 177.250/MT, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 30/10/2012.
[4] Cf. AgRg no Recurso Especial nº 1.357.593 - DF (2012/0259568-1), Relator Ministro MARCO BUZZI, DJe 02/05/17.
[5] Cf. REsp 1230233/MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 03/05/2011, DJe 11/05/2011.
[6] Cf. AgRg no REsp 1359184/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 06/12/2016, DJe 15/12/2016.
[7] Cf. “2.A recusa injustificada da cobertura oriunda de contrato de seguro de vida, neste caso, teve o mesmo tratamento jurídico dado ao contrato de seguro de saúde, caracterizando dano moral in re ipsa, ou seja, aquele que independe da comprovação do abalo psicológico sofrido pelo segurado.” (AgRg no REsp 1299589/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, Terceira Turma, julgado em 01/09/2015, DJe 11/09/2015).
(*) Anna Guiomar Vieira Nascimento é Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia.
(29.05.2017)