Por Aparecida Pagliarini [1] e Danilo Ribeiro Miranda Martins [2]
Em plenária que contou com a participação de Benjamin Zymler, durante o 19º Encontro Nacional dos Advogados da Previdência Complementar - ENAPC, realizado em agosto deste ano, o Ministro do Tribunal de Contas da União comentou, na sua exposição, sobre os desafios para a Corte lidar com situações que envolvem a aplicação de regras e princípios de direito privado.
Sabe-se que, especialmente por força da constitucionalização do direito civil, não impera mais a dicotomia absoluta que já existiu entre o direito público e o direito privado. Também não se pode ignorar a tendência do direito administrativo de utilizar cada vez mais formas jurídico-privadas, objetivando alcançar maior eficiência em sua atuação.
Não obstante, permanece sendo útil essa distinção, na medida em que são facilmente identificadas regras e princípios que encontram aplicação preponderante em um ou outro ramo do direito, sem prejuízo de alguns conflitos ou dúvidas que podem surgir tanto no ambiente público, como no ambiente privado.
Exemplo disso é o artigo 37, caput, da Constituição Federal, que ressalta a observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência pela Administração Pública direta e indireta, enquanto o artigo 170, caput, opta por prestigiar a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, ao cuidar da Ordem Econômica e Financeira, operada preponderantemente pela iniciativa privada.
No que diz respeito à previdência complementar, não se discute que o artigo 202, caput, da Constituição Federal optou pela edificação de um regime de caráter privado, facultativo e contratual, no qual a autonomia privada e a liberdade de iniciativa deveriam (e devem) encontrar amplo espaço para se desenvolver.
Evidentemente que há limites para o exercício da autonomia privada, como nos lembra o artigo 421 do Código Civil, e isso não só na previdência complementar. Realmente, estando a previdência privada no Capítulo da Ordem Social da Constituição, essa função social deve, sim, delinear as fronteiras dentro das quais a liberdade contratual pode ser adequadamente exercida.
De outro lado, a atuação do Estado prevista no artigo 3º da Lei Complementar nº 109/2001 não pode ser feita de forma desmedida ou desarrazoada, ao ponto de suprimir ou cercear a liberdade da iniciativa privada almejada para esse regime, a ponto de inibi-la de cumprir a sua função social. Nessa linha é a lembrança do parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, ao indicar que deve ser observado também o princípio da intervenção mínima estatal.
Parece-nos que contribui para a dificuldade de fixação desses limites e de melhor definição conceitual, como lembrado pelo Ministro Zymler, o fato de o regime de que trata a Constituição no seu artigo 202 contemplar entidades de previdência que contam também com contribuições de entes públicos ou estatais na condição de patrocinadores de planos de benefícios.
Apesar de haver regras interventivas adicionais previstas para tais entidades de previdência, que se encontram sintetizadas na LC nº 108/2001, não se pode perder de vista que isso não retira sua a natureza essencialmente privada, porque a Constituição assim o diz. Por essa razão, inclusive, que estão contempladas no § 4º do artigo 202 da Constituição Federal, deixando estreme de dúvidas que se submetem aos mesmos princípios gerais, expressos no caput do dispositivo e na LC nº 109/2001.
O regime de direito público, portanto, pode e deve incidir com o vigor necessário sobre os patrocinadores de natureza pública. Mas não sobre as entidades de previdência complementar que operam planos de benefícios que recebem tais aportes, que se submetem a regras e princípios distintos, de natureza predominantemente privada, regidos por uma lógica diversa – o que com alguma insistência tem sido olvidado.
Outro desafio a ser superado é o entendimento que vez por outra se identifica no âmbito do órgão de supervisão e fiscalização no sentido de que apenas aquilo que estiver previsto expressamente em normas pode contar com a sua anuência ou autorização, em decorrência da aplicação do princípio da legalidade estrita.
Sem dúvida, os servidores que atuam na supervisão e fiscalização estão submetidos ao regime de direito público, o que exige que se pautem pela legalidade, ou seja, “o que não está na Lei não está no mundo”. Mas esse mesmo princípio não se aplica internamente às entidades de previdência que, como regra, podem fazer tudo o que a Lei não lhes proíba expressamente, desde que norteados os administradores por seus deveres fiduciários e atuando nos contornos e limites do ato regular de gestão.
Nessa linha de entendimento, esclareça-se que o fato de uma determinada operação não estar prevista no rol inserido no artigo 33 da LC nº 109/2001 não significa dizer que essa operação não seja possível quando derivada de processo decisório revestido de regularidade. O dispositivo em questão sinaliza apenas que as operações ali relacionadas, consideradas de maior relevância, devem ser objeto de prévia e expressa autorização.
Não significa, portanto, que outras operações não possam ser realizadas, desde que observadas as diretrizes gerais constantes da LC nº 109/2001. Isso, contudo, nem sempre tem sido observado pela área técnica do órgão de supervisão, que não tem aceitado operação de transferência de patrocínio, por exemplo, por não estar expressamente prevista no rol do artigo 151 da Resolução PREVIC nº 23/2023.
Consideração semelhante pode ser feita, ainda, à visão de que poderiam permanecer suspensos pedidos de retirada de patrocínio em razão da pendência de regulamentação da Resolução CNPC nº 59/2023 pela PREVIC. Não se extrai do artigo 25 da LC nº 109/2001, de forma alguma, respaldo legal para uma limitação dessa ordem ao princípio da facultatividade.
A dificuldade de compreensão das diferenças entre os regimes público e privado, como se vê, não é um desafio só para o TCU. Exige do operador do Direito, destarte, a capacidade de antever até que ponto a intervenção do Estado permanece legítima e a partir de qual momento começa a ferir o núcleo essencial reservado à autonomia privada e à livre iniciativa. Tarefa complexa e, mais do que nunca, absolutamente necessária.
[1] Advogada formada pela Universidade de São Paulo especializada em previdência complementar, membro do Conselho Deliberativo do IPCOM - Instituto de Previdência Complementar e Saúde Suplementar.
[2] Procurador Federal da Advocacia-Geral da União, mestre em direito previdenciário pela PUC-SP, MBA em Finanças pelo IBMEC, membro do IPCOM. Foi Procurador-Chefe da Superintendência Nacional de Previdência Complementar - PREVIC.
(30.10.2024)