Ilan Goldberg |
O dever de lealdade e o insider trading sob a ótica do contrato de seguro de responsabilidade civil para diretores e administradores de sociedades (D&O insurance contract). Comentário ao Recurso Especial nº 1.601.555, do Superior Tribunal de Justiça, Relator o e. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, votação por unanimidade, julgamento em 14/2/2.017.
“The corporate opportunity doctrine requires a corporate director to render do Caesar at the best possible price that which is Caesar’s[1].”
1. Introdução
O Superior Tribunal de Justiça vem, cada vez mais, debruçando-se sobre o contrato de seguro. Recentemente, pudemos observar o enfrentamento de temas importantes tais como: (i) a ação direta de terceiro contra a seguradora no âmbito do seguro de responsabilidade civil facultativo (REsp nº 962.230/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, da 2ª Seção que, um pouco mais tarde, ensejou a edição da Súmula 529); (ii) a prescrição de pretensões entre seguradores e resseguradores (Resp nº 1.170.057/MG, Relator o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva); (iii) o suicídio no âmbito do contrato do seguro de vida, Resp nº 1.334.005/GO, Relatora a Min. Isabel Gallotti, modificando a jurisprudência anterior da própria Corte (Resp nº 1.077.342/MG, Rel. Min. Massami Uyeda); (iv) a prescrição trienal para as pretensões de beneficiários em contratos de seguros coletivos de vida, no Resp nº 1.397.173/RS; (v) o reajuste de planos de saúde por mudança de faixa etária (Resp nº 1.568.244/RJ, 2ª Seção), os dois últimos relatados pelo Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
Nessa direção, a chamada “Corte cidadã” decidiu uma interessantíssima controvérsia a respeito do contrato de seguro de responsabilidade civil para diretores e administradores de sociedades, conhecido no jargão do mercado de seguros como o seguro D&O. Trata-se do Recurso Especial nº 1.601.555/SP, Relator o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 14.02.2.017.
Esse contrato, ainda pouco conhecido do grande público, vem gradualmente merecendo maior destaque, o que se confirmou com as inúmeras notícias divulgadas a respeito da “operação lava-jato” e da utilização do mesmo por diversos dos diretores e administradores implicados[2].
De um ilustre desconhecido no início dos anos 2.000, atualmente esse contrato de seguro é considerando essencial no âmbito das sociedades cotizadas na BMF-BOVESPA[3]. Que executivo, hoje, em sã consciência, aceitaria o convite para dirigir uma grande sociedade ou para sentar-se em seus conselhos de administração/fiscal sem antes certificar-se quanto à contratação de uma confortável/abrangente apólice de seguro D&O?
Com ou sem crise, independentemente de uma elevação de sua sinistralidade por força de todas as investigações e processos judiciais atrelados à aludida “operação lava-jato”, não há dúvida de que esse seguro está e estará no cotidiano da cena empresarial brasileira[4].
Do ponto de vista jurídico, o contrato motiva uma interseção entre três disciplinas as mais interessantes, quais sejam, o (i) direito civil, especificamente o contrato de seguro; (ii) o direito societário, quanto ao exame da responsabilidade do diretor/administrador/conselheiro e as variadíssimas questões correlatas – divulgação de fatos relevantes, fusões/cisões/incorporações, aberturas de capital em bolsa de valores etc. e (iii) o direito penal, ‘dialogando’ com o direito societário e com o direito civil em temas relacionados à responsabilidade criminal em virtude das condutas dos aludidos executivos. Para além das três disciplinas ora referidas, é inegável a influência direta e imediata das normas emanadas da Constituição da República[5], dentre as quais destacaríamos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o solidarismo (art. 3º, I), a presunção de inocência (art. 5º, LVII), entre tantas outras.
No acórdão que comentaremos a seguir observamos uma feliz coordenação dessas disciplinas, demonstrando o cuidado do Relator, o e. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em busca da escassa doutrina pertinente e, mais do que isso, dos fundamentos encontrados com vistas à formação de seu convencimento. Os nossos modestos comentários, assim, têm por finalidade procurar concentrar a visão sobre determinadas luzes que não foram observadas por S. Excelência, na expectativa de procurar trazer ainda mais substância às conclusões já encontradas. É o que pretendemos desenvolver nas linhas que se seguem.
2. O acórdão
Para compreender adequadamente a moldura fática que ensejará o comentário e a conclusão, reproduzimos, a seguir, a ementa do acórdão, acompanhada por algumas passagens do voto:
Ementa:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL DE DIRETORES E ADMINISTRADORES DE PESSOA JURÍDICA (SEGURO DE RC D&O). RENOVAÇÃO DA APÓLICE. QUESTIONÁRIO DE AVALIAÇÃO DE RISCO. INFORMAÇÕES INVERÍDICAS DO SEGURADO E DO TOMADOR DO SEGURO. MÁ-FÉ. CONFIGURAÇÃO. PERDA DO DIREITO À GARANTIA. INVESTIGAÇÕES DA CVM. PRÁTICA DE INSIDER TRADING. ATO DOLOSO. FAVORECIMENTO PESSOAL. ATO DE GESTÃO. DESCARACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE COBERTURA.
1. Cinge-se a controvérsia a definir (i) se houve a omissão dolosa de informações quando do preenchimento do questionário de risco para fins de renovação do seguro de responsabilidade civil de diretores e administradores de pessoa jurídica (seguro de RC D&O) e (ii) se é devida a indenização securitária no caso de ocorrência de insider trading.
2. A penalidade para o segurado que agir de má-fé ao fazer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta pela seguradora ou na taxa do prêmio é a perda da garantia securitária (arts. 765 e 766 do CC). Ademais, as informações omitidas ou prestadas em desacordo com a realidade dos fatos devem guardar relação com a causa do sinistro, ou seja, deverão estar ligadas ao agravamento concreto do risco (Enunciado nº 585 da VII Jornada de Direito Civil).
3. Na hipótese dos autos, as informações prestadas pela tomadora do seguro e pelo segurado no questionário de risco não correspondiam à realidade enfrentada pela empresa no momento da renovação da apólice, o que acabou por induzir a seguradora em erro na avaliação do risco contratual. A omissão dolosa quanto aos eventos sob investigação da CVM dá respaldo à sanção de perda do direito à indenização securitária.
4. Os fatos relevantes omitidos deveriam ter sido comunicados mesmo antes de o contrato ser renovado, pois decorre do postulado da boa-fé o dever do segurado “comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé” (art. 769 do CC).
5. O seguro de RC D&O (Directors and Officers Insurance) tem por objetivo garantir o risco de eventuais prejuízos causados por atos de gestão de diretores, administradores e conselheiros que, na atividade profissional, agiram com culpa (Circular/SUSEP nº 541/2016). Preservação não só do patrimônio individual dos que atuam em cargos de direção (segurados), o que incentiva práticas corporativas inovadoras, mas também do patrimônio social da empresa tomadora do seguro e de seus acionistas, já que serão ressarcidos de eventuais danos.
6. A apólice do seguro de RC D&O não pode cobrir atos dolosos, principalmente se cometidos para favorecer a própria pessoa do administrador, o que evita forte redução do grau de diligência do gestor ou a assunção de riscos excessivos, a comprometer tanto a atividade de compliance da empresa quanto as boas práticas de governança corporativa. Aplicação dos arts. 757 e 762 do CC.
7. Considera-se insider trading qualquer operação realizada por um insider (diretor, administrador, conselheiro e pessoas equiparadas) com valores mobiliários de emissão da companhia, em proveito próprio ou de terceiro, com base em informação relevante ainda não revelada ao público. É uma prática danosa ao mercado de capitais, aos investidores e à própria sociedade anônima, devendo haver repressão efetiva contra o uso indevido de tais informações privilegiadas (arts. 155, § 1º, e 157, § 4º, da Lei nº 6.404/1976 e 27-D da Lei nº 6.385/1976).
8. O seguro de RC D&O somente possui cobertura para (i) atos culposos de diretores, administradores e conselheiros (ii) praticados no exercício de suas funções (atos de gestão). Em outras palavras, atos fraudulentos e desonestos de favorecimento pessoal e práticas dolosas lesivas à companhia e ao mercado de capitais, a exemplo do insider trading, não estão abrangidos na garantia securitária.
9. Recurso especial não provido.
Essencialmente, o convencimento do Relator esteve calcado em dois principais eixos temáticos, quais sejam: primeiro, a questão concernente à omissão de informações prévias à contratação do seguro e a perda do direito à garantia e; segundo, a qualificação jurídica do insider trading e a inexistência de cobertura segundo o escopo do seguro D&O.
O primeiro eixo temático – omissão de informações e perda do direito à garantia – não é novidadeiro e, por essa razão, não atrairá maior digressão. Apenas um ponto, em particular, nos chamou a atenção e será analisado, qual seja, a preconizada obrigatoriedade de que haja nexo causal entre o dado omitido e o sinistro ocorrido como condição para a aplicação da sanção prevista no caput do art. 766 do CC – a perda do direito à garantia securitária – o que estaria em conformidade com o enunciado nº 585 da VII Jornada de Direito Civil.
Já o segundo eixo temático – a qualificação jurídica do insider trading e a inexistência de cobertura no seguro D&O – é que será analisado com maior vagar, procurando entender, de início, a sua praxe societária para logo após, procurar “filtrá-la” através do contrato de seguro.
3. O primeiro eixo temático: a preconizada obrigatoriedade de que haja nexo causal entre o dado omitido e o sinistro ocorrido como condição para a aplicação da sanção prevista no caput do art. 766 do CC
Iniciemos reproduzindo os trechos pertinentes do voto do Relator, cuja primeira parte alude à necessidade de que o dado omitido seja sólido, relevante, e a segunda à questão do nexo causal:
Cumpre assinalar, pelo disposto na aludida norma, que ausente a boa-fé do segurado, não é qualquer inexatidão ou omissão em declarações que acarretará a perda da garantia securitária, mas apenas a que possa influenciar na aceitação do seguro ou na taxa do prêmio. Além disso, consoante o Enunciado nº 585 da VII Jornada de Direito Civil, as informações omitidas ou prestadas em desacordo com a realidade dos fatos devem guardar relação com a causa do sinistro, ou seja, deverão estar ligadas com o agravamento concreto do risco. (p. 5. Sublinhamos)
No caso concreto, entendeu-se que, de fato, o segurado omitiu informações relevantes à correta análise do risco pela seguradora, justificando-se, portanto, a aplicação da sanção prevista no caput do art. 766 do CC, cujos dizeres são:
Art. 766. Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.
Parágrafo único. Se a inexatidão ou omissão nas declarações não resultar de má-fé do segurado, o segurador terá direito a resolver o contrato, ou a cobrar, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio.
A tomadora e o segurado, quando instados a preencher o questionário que lhes foi entregue pela seguradora, responderam negativamente quanto à existência de investigações, procedimentos, demandas/processos, judiciais ou extrajudiciais, o que repetiram na pergunta relacionada ao conhecimento de expectativas quanto aos problemas em questão. Quanto a essa parte, o voto reproduz uma seção do acórdão de piso, proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, com os seguintes dizeres:
Ocorre que nos meses de março, junho e outubro de 2009, a tomadora do seguro, empresa na qual o autor ocupou a posição de membro do conselho administrativo, assim como seus principais administradores, foram convocados a prestar esclarecimentos pelas negociações de ações da TPI antes de divulgação de fato relevante ao mercado (ofícios 044/09, 106/09 fls. 174/181 e ofícios 122/09 – fls.273/274). Em julho de 2010 e nos termos do ofício 97/10 (fls. 144/149), foi o autor intimado a esclarecer sobre a prática do que se conhece como insider trading, porque teria adquirido, ‘entre 29/10/08 e 03/07/09’ 500.00 ações, por R$ 675.300, ao preço médio de R$ 1,35, nos dias 14, 15 e 16/01/09, conforme rol de negócios anexo.’ (fl. 148).
Deste modo, não obstante o respectivo processo administrativo ter sido instaurado em momento posterior à contratação do seguro, os fatos investigados pela CVM são anteriores ao início da vigência da apólice contratada. Isso é verdadeiro tanto que a resposta que a TPI encaminhou à CVM às fls. 270/273, em março de 2009, não deixa dúvidas de que a companhia tinha ciência exata da apuração de sua participação no procedimento licitatório promovido pela ARTESP (Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Transporte do Estado de São Paulo), para o trecho referente à concessão onerosa do corredor Ayrton Senna/Carvalho Pinto.
E observa-se que do questionário que acompanhou a apólice, a TPI, ao responder sobre a existência nos últimos cinco anos, de ‘Investigações, demandas/processos judiciais ou extrajudiciais e quaisquer inquéritos administrativos contra os Administradores atuais e/ou contra os Administradores de gestões anteriores’, assinalou o campo ‘NÃO’, fazendo o mesmo na pergunta sobre a existência de expectativa quanto ao acontecimento de ‘Investigações, demandas judiciais ou extrajudiciais e quaisquer inquéritos administrativos contra os Administradores, relacionados aos seus Atos de Gestão’. (itens 16 e 17 do questionário à fl. 318). (pp. 6/7 do voto).
O ponto específico que merece reflexão alude à obrigatoriedade de que haja nexo causal entre o dado omitido e o sinistro ocorrido para que, aí sim, tenha espaço a sanção prevista na parte final do caput do art. 766 do CC, em conformidade, pois, com o enunciado 585 da VII Jornada de Direito Civil:
Enunciado 585 – Impõe-se o pagamento de indenização do seguro mesmo diante de condutas, omissões ou declarações ambíguas do segurado que não guardem relação com o sinistro.
Ainda que a conclusão, no caso concreto, tenha implicado na perda do direito à garantia securitária, importa ponderar a respeito da obrigatoriedade do nexo causal, compreendendo, adequadamente, os momentos anterior e posterior à conclusão do contrato.
Hipoteticamente, por ocasião do preenchimento de questionário com vistas à contratação de um seguro de vida, o proponente, deliberadamente, omite padecer de um câncer no intestino. A seguradora, confiando na informação prestada, anui com a proposta e emite a apólice. Vale relembrar, a essa altura, o que diz o enunciado normativo aplicável: (art. 766) “Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.”
Tempos mais tarde, já na fase de execução do contrato, o segurado vem a falecer vitimado por um infarto do coração, diagnosticado como não possuindo qualquer relação com o câncer omitido. A prevalecer o entendimento adotado na aludida Jornada de Direito Civil, a má-fé desse segurado estaria sendo brindada, premiada com o pagamento da soma segurada. A sua conduta, frise-se, consciente e deliberada, seria totalmente irrelevante? Seria essa a mens legis ao trazer para o contrato de seguro a boa-fé capitalizada – a chamada máxima boa-fé?
A respeito dos matizes temporais a que nos referimos, é preciso não confundir a fase pré-contratual, objeto das declarações do proponente, com a fase sucessiva, qual seja, a execução do contrato.
A fase pré-contratual, no que toca à divulgação das informações relevantes, é tutelada pelo art. 766 do CC; já a divulgação de informações no curso do contrato – fase de execução – é tutelada pelo caput art. 769 do CC, lidando com instituto distinto, qual seja, o agravamento do risco. Diz o art. 769:
Art. 769. O segurado é obrigado a comunicar ao segurador, logo que saiba, todo incidente suscetível de agravar consideravelmente o risco coberto, sob pena de perder o direito à garantia, se provar que silenciou de má-fé.
§ 1º O segurador, desde que o faça nos quinze dias seguintes ao recebimento do aviso da agravação do risco sem culpa do segurado, poderá dar-lhe ciência, por escrito, de sua decisão de resolver o contrato.
§ 2º A resolução só será eficaz trinta dias após a notificação, devendo ser restituída pelo segurador a diferença do prêmio.
Nesse sentido, não há que confundir a omissão de informações relevantes, inerente à fase pré-contratual, com a obrigação de comunicar as circunstâncias capazes de agravar o risco originalmente contratado – fase de execução do pacto. Os temas e os respectivos marcos temporais são diferentes, o que afasta, completamente, a adequação de que se examine a questão do nexo de causalidade. De uma forma pragmática, ou o proponente omite informações relevantes ou não o faz; o que virá no curso do contrato já não dialogaria com a fase pré-contratual.
Para muito além da discussão apenas calcada no contrato de seguro, é preciso enxergar mais longe e ter em mente que esse ajuste, assim como todo e qualquer contrato sinalagmático (obrigações correspectivas[6]), traz em si um equilíbrio entre as prestações de ambas as partes. Ainda que o sinalagma no contrato de seguro não seja perceptível como o de uma compra e venda[7], por exemplo, não há como negar que há cientificismo por detrás dos cálculos atuariais que ensejaram, em nosso exemplo hipotético, no pagamento de um determinado prêmio a considerar as informações realmente prestadas pelo proponente.
Ora bem, se a seguradora tivesse sido informada a respeito do câncer de intestino, das duas uma: ou teria declinado da contratação, ou teria cobrado prêmio a maior. O fato de o sinistro não guardar relação com o câncer não altera em nada, rigorosamente nada, o dever[8] do segurado prestar as informações corretas à seguradora, sob pena de subverter completamente a lógica solidarista sobre a qual esse contrato se encontra erguido.
Ao assumirmos que a omissão de um dado relevantíssimo – o câncer de intestino – é irrelevante, desinfluente, não tenhamos dúvida de que o equilíbrio contratual[9] estará sendo ferido de morte.
A necessidade de demonstrar o nexo causal, pois, é perigosa e traiçoeira. Ao invés de melhor tutelar os interesses dos segurados, fará exatamente o contrário. Imaginemos que esse entendimento ganhe corpo. Em larga medida, estaremos assumindo que os segurados podem mentir, deliberadamente, e que nada lhes acontecerá desde que o nexo causal não seja demonstrado.
A doutrina nacional e estrangeira[10], de maneira bastante tranquila, alude à necessidade de que o proponente preste as declarações à seguradora imbuídos de lealdade, com a máxima boa-fé. A relativização desse dever não ajuda a ninguém.
4. O segundo eixo temático – a qualificação jurídica do insider trading e a inexistência de cobertura no seguro D&O
Essencialmente, o acórdão adota posição no sentido de que o seguro jamais poderia cobrir condutas dolosas, tampouco que tutelassem interesses pessoais dos diretores em detrimento dos interesses da sociedade. Cita, nesse viés, a recente Circular SUSEP nº 541/2016[11], cujo art. 5º alude à cobertura para “danos causados a terceiros, em consequência de atos ilícitos culposos praticados no exercício das funções para as quais tenham sido nomeados”. (p. 11).
Prossegue explicando no que consiste a prática do insider trading, o fazendo com base no escólio de Norma Parente[12]:
Considera-se insider trading qualquer operação realizada por um insider (diretor, administrador, conselheiro e pessoas equiparadas) com valores mobiliários de emissão da companhia, em proveito próprio ou de terceiro, com base em informação relevante ainda não revelada ao público.
Por sua vez, informação relevante é aquela que pode “influir de modo ponderável na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia, afetando a decisão dos investidores de vender, comprar ou reter esses valores”. (p. 12).
Chegando à conclusão, o Relator caminha pelo dever de lealdade, ponderando que:
(...) o dirigente deve observar os deveres de cuidado e de lealdade, buscando sempre o melhor interesse da sociedade anônima, nos limites de seus poderes. Dessa forma, deve “guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários” (dever de sigilo – art. 155, § 1º, da Lei nº 6.404/1976). (...) Conclui-se, assim, que o seguro de RC D&O somente possui cobertura para (i) atos culposos de diretores, administradores e conselheiros (ii) praticados no exercício de suas funções (atos de gestão). Em outras palavras, atos fraudulentos e desonestos de favorecimento pessoal e práticas dolosas lesivas à companhia e ao mercado de capitais, a exemplo do insider trading, não estão abrangidos na garantia securitária. (...) Entretanto, a negociação das ações da TPI, no panorama analisado, a par de configurar ato doloso do segurado, vedado pela lei civil, não adveio de ato de gestão, ou seja, da prerrogativa do cargo de administrador, mas de ato pessoal, na condição de acionista, a gerar proveitos financeiros próprios, em detrimento dos interesses da companhia.
Ora, se detinha informações privilegiadas que não poderiam, no momento, vir a público, era defeso valer-se delas para negociar ações no mercado, consoante a norma do art. 155, § 1º, da Lei nº 6.404/1976. (p. 16)
Em síntese, o voto caminha à manutenção da decisão que repeliu a pretensão do segurado firme em dois fundamentos: (i) a conduta do segurado – o “insider trader” – não se qualificaria como ato de gestão e (ii) as condutas dolosas não poderiam ser cobertas a considerar o disposto na lei civil.
4.1. O dever de lealdade (paralelismo e distinção face o dever de diligência);
A assunção do posto de diretor/administrador/conselheiro requer expertise[13] e traz a reboque alguns deveres previstos nos artigos 153 e seguintes da Lei das S.A., valendo grifar, por sua importância, os deveres de diligência (duty of care) e o de lealdade (duty of loyalty).
O dever de diligência, em particular, encontra-se previsto no art. 153 e, essencialmente, ensina que o executivo de uma determinada sociedade, ao tomar decisões, deverá cercar-se de algumas cautelas a fim de se prevenir de sua posterior responsabilização pelo insucesso das mesmas.
Ditas cautelas, em síntese, remetem a deveres que se desdobram do dever de diligência, quais sejam: (i) o dever de obter informação adequada; (ii) o dever de agir de forma lícita (iii) o dever de vigilância ou supervisão e (iv) o dever de observar os processos de governança interna da sociedade.
Diferentemente do dever de lealdade, o dever de diligência apresenta-se com conteúdo jurídico indeterminado[14], a ser preenchido no caso concreto levando em consideração os parâmetros acima referidos.
Já o dever de lealdade se apresenta de maneira mais rígida, não havendo margem para preenchimento segundo parâmetros. Não se lhe atribui conteúdo jurídico indeterminado e, de forma pragmática, implica em assumir que ou a conduta é leal, honesta, ou não é. Não há meio termo.
Esse dever, como dito, calcado no princípio da boa-fé objetiva, opera como uma espécie de eixo principal, do qual devem derivar todas as condutas realizadas pelos executivos. Não se espera dos mesmos “sentimentos puros da alma” – amor, compaixão ou caridade mas, de uma perspectiva prática, esse dever se traduz numa conduta que, uma vez descumprida pode, efetivamente, ensejar diversos abusos.
A obrigação de agir lealmente desdobra-se em comportamentos positivos e negativos que, efetivamente, põem-se de relevo. Não basta, por exemplo, exercer o direito de voto em conformidade com o interesse social (comportamento positivo); cumpre, também, deixar de se abster de votar quando colocado em xeque o interesse social (absenteísmo[15]). Que o dever de lealdade esteja guiando os executivos de maneira permanente, funcionando como uma verdadeiro norte a ser observado na vida social.
Na medida em que os estudos de direito societário se aprofundam, mais e mais esse dever se faz presente, trespassando desde as questões mais triviais até as mais complexas. Seja no ato de constituir uma sociedade, propor o aumento do capital social ou abri-lo em bolsa, prestar informações ao mercado, nas tomadas de controle, exercício do direito de voto ou abster-se de votar, entre tantas outras possibilidades, o dever estará presente, espraiando-se valorosamente em diversos institutos do direito societário.
Compreendidos a interseção e os limites inerentes aos deveres de lealdade e de diligência, passemos à “filtragem” através do contrato de seguro D&O.
4.2. A “filtragem” através do contrato de seguro D&O e a inaplicabilidade da business judgment rule ao caso concreto:
Assumindo-se que o seguro D&O protege o administrador por consequências decorrentes dos seus atos de gestão com a condição de que não sejam dolosos, parece bem claro que não haverá que se falar em cobertura para infringências ao dever de lealdade. Se o seguro está dirigido para os atos de gestão, a deslealdade de um executivo não poderá encontrar guarida.
Remetendo aqui ao quanto dissemos a respeito da rigidez que circunda o dever de lealdade, inadmitindo quaisquer flexões – ou é leal ou não é –, eventual conduta desleal não terá qualquer sinergia com o dever de diligência, este sim ‘protegido’ pelo contrato de seguro se atendidos os respectivos pressupostos (mencionados acima).
O primeiro “remédio” às questões concernentes ao alegado descumprimento do dever de diligência remete à chamada business judgment rule ou, no vernáculo, regra do julgamento negocial.
Embora ainda seja novidadeira no Brasil, a business judgment rule[16] vem sendo aplicada nos Estados Unidos da América há cerca de duzentos anos[17]. Essencialmente, a regra se trata de um mecanismo que tutela a conduta dos administradores diligentes, isto é, aqueles que observam o dever de diligência – atos regulares de gestão (art. 158, caput LSA). Caso não houvesse mínimos mecanismos de proteção, fato é que seria cada vez mais rarefeito encontrar profissionais sérios e competentes dispostos a assumir posições de relevo em companhias e, destarte, colocar em xeque os seus próprios patrimônios.
A business judgment rule toca diretamente no dever de diligência que, como explicado anteriormente, requer, sobretudo, que os administradores conheçam com exatidão e a necessária profundidade o que estão fazendo. Com efeito, não precisam (e nem poderiam!) ser peritos em todas as matérias do conhecimento humano sobre as quais as companhias estejam operando mas, ao menos em administração/gestão, não há dúvida de que o conhecimento mediano, meramente ordinário, afigura-se insuficiente.
Todos os comentários formulados com relação ao grau de diligência exigível do executivo devem aqui ser reiterados, considerando que este, munido de seu conhecimento e tecnicismo, deverá tomar decisões importantes para o cotidiano das companhias e que, por certo, atendam ao seu interesse social.
A regra, como dito, tutela o ato de gestão, isto é, aquele praticado no âmbito da administração da sociedade. Vale repetir: condutas desleais que não tenham relação com a gestão estarão fora do seu escopo, como não poderia deixar de ser[18]. Obviamente, a regra não se presta a proteger administradores desleais, cujas condutas, inclusive, desbordem à fraude[19].
Passando para o segundo “remédio”, qual seja, o contrato de seguro D&O, nos pareceu que o acórdão andou muito bem ao identificar que a conduta do executivo implicado não se qualifica como ato de gestão empresarial, isto é, algo que pudesse ser abrangido pelo dever de diligência e, assim, pela proteção da business judgment rule. Ao revés, a conduta representou uma ofensa ao dever de lealdade a considerar que o insider, exatamente em razão do cargo que ocupava, valeu-se da informação privilegiada para enriquecer-se, deixando o interesse social para escanteio.
Seja como for, nos parece importante matizar que a regra de julgamento negocial – a business judgment rule – jamais poderá ser arguida para tutelar condutas desleais. O seu mote, como expusemos, toca em questionamentos à gestão empresarial, cujos riscos financeiros podem ser transferidos por meio do seguro D&O.
4.3. A qualificação jurídica do insider trading
Numa linguagem simples, o insider se vale do cargo/posição que ocupa e, assim, tem acesso a informações importantíssimas antes do mercado. Tudo que for relevante e que tocar no âmago da administração da companhia será debatido na Diretoria, nos Conselhos de Administração e Fiscal, muito provavelmente antes da assembleia de acionistas e, mais tarde ainda, do grande público.
Considerando essa ordem natural dos fatos o insider deve guardar sigilo quanto às informações recebidas, zelando sempre pelo interesse da sociedade. A adoção de condutas que privilegiem os seus interesses pessoais em detrimento dos interesses daquela será duramente reprimida e, inclusive, passível de sanção criminal[20].
Modesto Carvalhosa e Fernando Kruyven[21], especificamente quanto aos membros do conselho fiscal, explicam o quão privilegiada é a posição ocupada pelos mesmos, a ensejar, pois, a necessidade de não utilizar as informações que recebem:
Os membros do conselho fiscal são tidos como insiders primários, uma vez que têm acesso direto às informações confidenciais da companhia, no exercício de suas funções como órgão social. Assim, tendo eles comprado ou vendido ações imediatamente antes da divulgação de fato relevante referente à matéria incluída em sua competência fiscalizadora, presume-se que operaram com uma informação privilegiada. Trata-se de presunção relativa, incumbindo ao conselheiro o ônus da prova de que não negociou com base em tal informação, ou porque já vinha reiteradamente comprando ou vendendo tais ações, ou porque as informações não chegaram ao conhecimento do órgão, ou porque já eram de domínio público.
No caso concreto, o segurado era, de fato, membro do conselho de administração da sociedade tomadora do contrato de seguro. Em virtude da posição que ostentava, teve acesso a determinadas informações internas da companhia e, valendo-se das mesmas, obteve vantagem pessoal fruto da compra de ações, caracterizando, assim, o insider trading.
Um conselheiro, seja ele qual for, em condições normais, pode eventualmente adquirir ações da companhia na qual preste os seus serviços, desde que, naturalmente, o respectivo estatuto não o restrinja. Ora, se assim o fizer em condições normais não haverá que se falar no exercício de um ato de gestão, mas simplesmente numa conduta particular que atende a um interesse privado, ínsito à condição de acionista.
Nessa linha de ideias, a menção à Circular SUSEP 541/2016 foi feliz, o mesmo quanto à transcrição da passagem do contrato de seguro cujo texto é claro ao oferecer cobertura para atos de gestão.
O ponto que nos ocorreu comentar refere-se a uma sutileza que surge do caso concreto, qual seja, qual seria a índole, o atributo aplicável à conduta de um insider? Poderia ser meramente culposa, ensejando, assim, cobertura pelo contrato de seguro ou, ao revés, seria dolosa, impassível de cobertura?
4.4. A ‘elasticidade’ da intenção a que se refere o art. 762 do CC como hipótese de perda do direito à garantia e a prática do “insider trading”
A conduta dolosa, como é sabido, não é “bem-vinda” pelo contrato de seguro. E não é porque o seguro requer a existência de um risco puro para que possa se aperfeiçoar. Se o risco puro se converter em risco especulativo/provocado, seguro não haverá[22].
A partir do momento em que o risco deixa de ser incerto, imprevisível – puro, como dissemos, e passa ao terreno da certeza ou, noutras palavras, passa à esfera do sinistro já materializado em razão da conduta do próprio segurado, as bases sobre as quais o contrato se equilibra ficarão totalmente rompidas.
O art. 762 do CC é claro ao dispor que “nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro”.
Assim é que se o segurado atirar o seu veículo ribanceira abaixo perderá o direito à garantia em seu seguro automóvel, o mesmo valendo para o empresário que ateia fogo no estoque de sua indústria – seguro incêndio – e para o beneficiário que atenta contra a vida do segurado – seguro de vida. Nesses exemplos manualísticos, a perda do direito à garantia é uma consequência lógica, racional, inclusive da transmudação do objeto originalmente lícito em ilícito (art. 104, III do CC), a afastar um dos pressupostos essenciais à validade do negócio jurídico.
Todavia, convém refletir agora a respeito da elasticidade da norma prevista no referido art. 762, só que com os olhos vertidos para a conduta do insider.
Relembrando do caso concreto, tem-se que um determinado membro do conselho de administração da companhia, exatamente por conhecer informações privilegiadas acabou auferindo vantagem pessoal, em detrimento dos interesses da sociedade.
Dito conselheiro, ao assim agir, o fez por que quis. Ninguém, em condições normais, obteria informação privilegiada e a seguir compraria ou venderia ações aos borbotões “sem querer”. A conduta é, inquestionavelmente, intencional.
Ainda que o conselheiro não tenha adotado essa conduta para receber a soma segurada (não assumimos, aqui, que o segurado tenha praticado o insider trading porque sabia que, caso houvesse implicações, estaria protegido pelo contrato de seguro) o que se afigura diferente do modus operandi trazido nos exemplos linhas acima, a interpretação adequada que se extrai do referido art. 762 do CC permitiria a sua aplicação também à conduta desse conselheiro?
A Doutrina[23], ao comentar o art. 762 do CC, usualmente o faz de forma restrita, isto é, com os olhos voltados às condutas que tenham por finalidade atentar contra o contrato de seguro.
Mas, seria esse a única hipótese tutelável pela norma? A conduta dolosa seria sancionável de per se ou, adicionalmente, haveria a necessidade de atentar contra o contrato de seguro, isto é, agir com o propósito deliberado de receber a soma segurada?
O que se extrai do enunciado normativo previsto no art. 762 do CC é que a intenção do segurado, beneficiário ou seus representantes deve estar presente. É dizer que uma vez demonstrando o dolo, a consequência respectiva será a nulidade do contrato e, nessa trajetória, a perda do direito à garantia securitária.
Evoluindo nessa análise, convém refletir a respeito das hipóteses de nulidade dos negócios jurídicos previstas no art. 166 do CC, especialmente aquelas descritas nos incisos II (objeto ilícito), VI (fraude à lei) e VII (declaração taxativa de nulidade pela lei):
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I – celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
II – for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
IV – não revestir a forma prescrita em lei;
V – for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
VII – a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. (Sublinhamos)
O membro do conselho de administração da tomadora recebeu informações valiosas, relevantes, e não poderia utilizá-las (art. 155, LSA). A partir do momento em que as teve mãos e, deliberadamente, agiu, seja comprando ou vendendo ações, não há dúvidas de que o fez de modo intencional. O objeto perseguido – o lucro “fácil”, em detrimento dos interesses da sociedade –, efetivamente flerta com o objeto ilícito e atrai, inclusive, repercussões criminais (art. 27-D, LSA) e civis, reconhecidas no instituto do enriquecimento sem causa[24]. Ora, faltando causa lícita à conduta do insider este deverá restituir à companhia os valores financeiros recebidos de maneira indevida, rectius, sem causa.
Ainda que o referido conselheiro não pretenda receber a soma segurada (seja na modalidade de antecipação de custos de defesa ou da indenização propriamente dita, a ser paga ao final do processo respectivo), o contrato de seguro não foi concebido para tutelar condutas claramente dolosas. Pensando a respeito da modalidade de conduta prevista no inciso VI do art. 166 do CC, a apólice não poderia em hipótese alguma dar guarida para conduta que tenha por finalidade fraudar lei imperativa, no caso, a LSA, art. 155.
Vale dizer, ainda, que o inciso VII igualmente reputa nulo o negócio jurídico quando a lei assim o declarar, o que corresponde, justamente, ao texto legal previsto no art. 762 do CC.
Em suma, a conduta dolosa, seja ou não com o objetivo direto de atentar contra o contrato de seguro, não pode ser merecedora de tutela.