Por Thiago Junqueira[1]
I. Introdução
A Lei nº 15.040/2024 (Lei do Contrato de Seguro – LCS) trouxe inovação relevante ao estabelecer, em seu art. 86, o prazo de 30 (trinta) dias para que a seguradora se manifeste sobre a cobertura reclamada, sob pena de decadência do direito de recusa. Esse prazo para regulação do sinistro pode ser prorrogado até 120 (cento e vinte) dias, nos casos em que a verificação da existência de cobertura envolva maior complexidade, e admite hipóteses de suspensão. A sua contagem tem início na “data de apresentação da reclamação ou do aviso de sinistro pelo interessado, acompanhados de todos os elementos necessários à decisão a respeito da existência de cobertura”.
Diversas perspectivas podem ser exploradas a partir desse dispositivo. Neste breve estudo, a atenção concentra-se no dever de colaboração do segurado, condição importante para que a seguradora possa cumprir o prazo legal de regulação do sinistro. Examina-se, em especial, a pertinência de cláusulas contratuais que exijam a apresentação organizada, legível e individualizada dos documentos requeridos pela seguradora para a regulação de sinistro, como forma de conferir maior segurança jurídica e eficiência operacional.
II. O prazo de 30 dias e a entrega dos “elementos necessários”
Nos termos do art. 86 da LCS, a seguradora dispõe de 30 dias para regular o sinistro,[2] prazo que somente se inicia após o recebimento dos elementos necessários. O § 1º impõe que a seguradora informe previamente os documentos exigidos, geralmente nas Condições Contratuais,[3] enquanto os §§ 2º e 3º permitem a solicitação de documentos complementares, de modo justificado, com possibilidade de suspensão do prazo uma ou duas vezes, conforme a modalidade do seguro e o valor da importância segurada.
Percebe-se, portanto, que não basta a simples comunicação do sinistro: o marco inicial da contagem do prazo decadencial em tela depende da entrega regular da documentação probatória para a seguradora.
Em sinistros complexos, o volume de documentos pode ser elevado, de modo que sua mera conferência comprometeria parte relevante do prazo legal. Além disso, a ausência de critérios formais claros pode favorecer condutas abusivas,[4] como o envio desordenado de inúmeros documentos irrelevantes.
Nessa perspectiva, o princípio da boa-fé objetiva impõe ao segurado (aqui entendido em sentido amplo, abrangendo outros intervenientes mencionados pela lei sob a expressão “interessados”, no caput do art. 86 da LCS) não apenas a vinculação de comunicar o sinistro tempestivamente,[5] mas também a de fornecer, de maneira adequada, os documentos que devem acompanhar essa comunicação.[6] Para tanto, propõe-se que, além da lista de documentos essenciais, as seguradoras incluam, nas Condições Gerais de seus seguros, cláusula contratual em destaque que concretize esse dever de apresentação adequada da documentação.
Eis um possível exemplo de cláusula contratual padrão sobre o tema:
“Os documentos para a regulação de sinistro deverão ser apresentados à Seguradora de forma individualizada, em cópias legíveis e com identificação precisa de seu conteúdo, por meio de título ou nome do arquivo correspondente. O prazo para regulação do sinistro somente terá início após o recebimento de todos os documentos constantes da lista requerida pela Seguradora, entregues em conformidade com esses requisitos formais e exclusivamente pelo canal disponibilizado para esse fim.
Caso o segurado entenda pertinente encaminhar documentos complementares por iniciativa própria, deverá fazê-lo observando os mesmos parâmetros e apresentando justificativa objetiva para cada documento complementar enviado”.
Tal cláusula concretiza aspecto relevante do dever de colaboração do segurado, evitando ambiguidades quanto à data de início do prazo legal. Ademais, esclarece que o prazo para regulação do sinistro somente terá início se os documentos forem enviados pelo canal disponibilizado especificamente para esse fim pela seguradora. Por exemplo, caso o segurado encaminhe a comunicação do sinistro e os documentos a um e-mail de atendimento geral de clientes (e não ao canal destinado à regulação de sinistros), não se considerará realizado o envio adequado.[7]
Outra vantagem da cláusula proposta está na otimização do trabalho do regulador de sinistros. Ao receber os documentos de forma ordenada, clara e devidamente identificada, o regulador reduz a necessidade de retrabalhos, mitiga riscos de inconsistências na análise e assegura maior segurança quanto ao cumprimento dos prazos legais. Esse fluxo documental mais eficiente fortalece a qualidade da regulação e reduz potenciais questionamentos futuros.
Além disso, a medida também repercute positivamente no âmbito do resseguro. Dependendo da modalidade contratada e da dimensão do sinistro, a seguradora precisará compartilhar as informações com o ressegurador. A padronização documental facilita esse intercâmbio, assegurando que a seguradora cumpra não apenas os prazos previstos na LCS, mas também os compromissos operacionais assumidos junto a seus resseguradores.
III. Suspensão e prorrogação do prazo
O § 3º do art. 86 da LCS prevê a suspensão do prazo de regulação do sinistro por, no máximo, duas vezes, em razão da necessidade de complementação documental requisitada pela seguradora. Já o § 4º estabelece regra mais restritiva para seguros de automóveis e para aqueles limitados a importância seguradora de até 500 salários-mínimos, em que só se admite uma suspensão. O § 5º autoriza a Superintendência de Seguros Privados (Susep) a ampliar o prazo até o limite de 120 dias, “para tipos de seguro em que a verificação da existência de cobertura implique maior complexidade na apuração”.
A sistemática evidencia a preocupação do legislador em equilibrar, de um lado, a celeridade na regulação de sinistros e, de outro, a necessidade de assegurar tempo adequado para a análise técnica em situações de maior complexidade. Esse arranjo busca compatibilizar a essencial proteção do segurado, que depende de uma resposta tempestiva, com a preservação da qualidade e da segurança jurídica na decisão da seguradora.
Daí a relevância de recomendar que eventuais documentos adicionais requisitados pela seguradora e enviados pelo segurado também sejam apresentados com a mesma formalidade exigida para os iniciais: individualizados, legíveis, identificados e, quando for o caso, acompanhados de justificativa objetiva que esclareça sua pertinência.
Segue exemplo de cláusula que trata desse ponto:
“A seguradora ou o regulador do sinistro poderão solicitar, de forma justificada, documentos complementares para a regulação do sinistro. A solicitação de documentos complementares suspenderá o prazo para manifestação sobre a cobertura por, no máximo, 2 (duas) vezes, voltando este a fluir no primeiro dia útil subsequente ao atendimento adequado da solicitação.
Os documentos complementares deverão ser apresentados de forma individualizada, em cópias legíveis e com identificação precisa de seu conteúdo, por meio de título ou nome do arquivo correspondente. O prazo para a regulação do sinistro somente reiniciará após o recebimento de todos os documentos adicionais requeridos pela Seguradora, entregues em conformidade com esses requisitos formais e exclusivamente pelo canal disponibilizado para esse fim.
Caso o segurado entenda pertinente encaminhar documentos complementares por iniciativa própria, deverá fazê-lo observando os mesmos parâmetros e apresentando justificativa objetiva para cada documento enviado”.
IV. Interface entre as cláusulas propostas e o art. 39 da LCS: repasse de documentos pelo corretor de seguros
Em outra inovação legal, a LCS dispôs no art. 39:
“O corretor de seguro é responsável pela efetiva entrega ao destinatário dos documentos e outros dados que lhe forem confiados, no prazo máximo de 5 (cinco) dias úteis. Parágrafo único. Sempre que for conhecido o iminente perecimento de direito, a entrega deve ser feita em prazo hábil”.
Embora não se restrinja à regulação de sinistros, o dispositivo também se aplica a essa etapa contratual. Na prática, é comum que o segurado entregue os documentos ao corretor de seguros, que, após analisá-los, os encaminha à seguradora. Nessa dinâmica, o art. 39 da LCS impõe ao corretor a obrigação de realizar o repasse no prazo máximo de cinco dias úteis.
Ainda que se admita a possibilidade de convenção temporal diversa entre as partes, especialmente quando destinada a beneficiar o próprio segurado, as cláusulas contratuais propostas neste estudo favorecem não apenas a seguradora, mas também o próprio corretor, que poderá otimizar o seu trabalho e adotar padrão uniforme de recebimento e encaminhamento de documentos. A padronização do envio, sublinhe-se, fortalece o cumprimento da obrigação legal, ao mesmo tempo em que reduz riscos de atrasos e controvérsias.
V. Notas conclusivas
A regulação de sinistros depende de um fluxo documental adequado e tempestivo. É nesse ponto que as cláusulas contratuais propostas neste ensaio revelam sua utilidade prática: alinham expectativas, reduzem assimetrias de informação e conferem maior previsibilidade às partes envolvidas.
O dever de colaboração, expressão da boa-fé objetiva, impõe que os documentos destinados à regulação de sinistros sejam apresentados de forma organizada, legível e claramente identificada. Longe de configurar uma exigência excessiva ao segurado, tal medida garante transparência na contagem do prazo, reforça o equilíbrio contratual e contribui para evitar litígios sobre recusas intempestivas.
Não obstante, é preciso advertir que tais cláusulas não podem ser utilizadas de forma abusiva, impondo ao segurado encargos desnecessários, sob pena de desnaturar a lei. O dever de colaboração deve ser interpretado em consonância com a boa-fé e a razoabilidade, garantindo que apenas documentos efetivamente relevantes – e possíveis de serem produzidos – sejam exigidos pelas seguradoras.
Em síntese, cláusulas contratuais inovadoras e bem estruturadas surgem como instrumentos fundamentais para assegurar a efetividade da Lei nº 15.040/2024. Se às seguradoras a lei impõe rigorosos deveres e limitações, também aos segurados cabe assumir sua parcela de responsabilidade, colaborando para que o processo de regulação de sinistros seja mais eficiente.
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[1] Thiago Junqueira é Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra. Sócio-fundador do escritório Junqueira & Gelbecke Advogados, é Professor de Direito do Seguro e Resseguro na FGV e Professor convidado da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros. Atualmente, exerce as funções de Diretor da AIDA Brasil e de Diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil. Contato: thiago@junqueiragelbecke.adv.br.
[2] “A concretização do risco segurado em conformidade com as coberturas contratadas, e a consequente ocorrência do sinistro, em princípio, gera ao segurado o direito a ser indenizado pelo segurador. O processo de análise da cobertura e extensão da prestação do segurador, designado como regulação do sinistro, não costuma, porém, ser simples. (...) Didaticamente, é possível ilustrar a usual sequência de acontecimentos da seguinte maneira: após a ocorrência do sinistro, o segurado faz o seu aviso diretamente ao segurador ou ao corretor de seguros, que o repassará ao segurador, acompanhado da entrega de alguns documentos, conforme a modalidade de seguro envolta no caso concreto. O exame de tais documentos e das condições do sinistro será feito pelo regulador do sinistro. Na sequência, o regulador irá emitir um relatório que será utilizado como guia para a efetiva, ainda que parcial, cobertura do sinistro pelo segurador ou a sua recusa, que necessariamente terá quer ser fundamentada. (...) O procedimento de regulação do sinistro não raro envolve questões complexas e multidisciplinares, demandando uma avaliação extremamente técnica, inclusive por meio de exames e vistorias. Tenha-se em mente, por exemplo, a regulação de sinistros envolvendo plataformas petrolíferas. Existem, todavia, casos mais simples, como ocorre no seguro de vida em que não há suspeita de suicídio ou agravamento do risco incorrido pelo segurado”. GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. Regulação do sinistro nos seguros do século XXI. In: VASCONCELOS, Andre; OLIVA, Milena Donato. Direito na Era Digital: Aspectos negociais, processuais e registrais. São Paulo: JusPodvim, 2022. pp. 259-260. Sobre a origem francófona da expressão “regulação de sinistro” e sua utilização, na experiência brasileira, como (incorretamente) equivalente ao termo “liquidação de sinistro”, em razão do disposto no Decreto-Lei nº 73/1966, confira-se TZIRULNIK, Ernesto; GIANNOTTI, Luca. A regulação de sinistro como fase, dever e prestação no seguro. In: Direito do seguro: II Congresso Internacional de Direito do Seguro (CJF-STJ) e VIII Fórum José Sollero Filho (IBDS). São Paulo: Contracorrente, 2022. pp. 207-208.
[3] A relação de documentos necessários para a regulação do sinistro pode ser apresentada de forma consolidada ou segmentada em conjuntos distintos, conforme o sinistro ocorrido ou a cobertura pleiteada. Em geral, constará nas Condições Gerais do produto, podendo ser complementada por listas específicas de documentos previstas em suas Condições Especiais.
[4] A propósito de condutas abusivas da seguradora e do segurado na regulação de sinistros, confira-se MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 1025, p. 292, mar. 2021.
[5] Art. 66 da LCS: “Ao tomar ciência do sinistro ou da iminência de seu acontecimento, com o objetivo de evitar prejuízos à seguradora, o segurado é obrigado a: I - tomar as providências necessárias e úteis para evitar ou minorar seus efeitos; II - avisar prontamente a seguradora, por qualquer meio idôneo, e seguir suas instruções para a contenção ou o salvamento; III - prestar todas as informações de que disponha sobre o sinistro, suas causas e consequências, sempre que questionado a respeito pela seguradora. (...)”.
[6] Para uma análise detalhada da aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas relações securitárias, seja consentido remeter a: JUNQUEIRA, Thiago. Comentários ao art. 765 do Código Civil. In: GOLDBERG, Ilan; JUNQUEIRA, Thiago. (Orgs.). Direito dos Seguros: comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 214-234. Consulte-se, ainda: MARTINS-COSTA, Judith. Boa-fé e regulação do sinistro. In: VII Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho – IBDS. Lei de contrato de seguro: solidariedade ou exclusão? São Paulo: Roncarati, 2018. pp. 201-210.
[7] “Navegando em outras águas, o ordenamento jurídico pátrio não estabelece uma forma especial para o aviso do sinistro. Por isso mesmo, há decisão do STJ mencionando que ‘o segurado ou beneficiário pode fazer o aviso por telefone, e-mail, carta, ou qualquer outro meio de comunicação colocado à sua disposição pela seguradora’. Embora seja recomendável que o aviso seja feito de forma escrita, notadamente por e-mail, com os documentos pertinentes para a regulação do sinistro pelo segurador a ele anexos, de fato o segurado poderá se valer de outros meios, desde que eles tenham sido disponibilizados pelo segurador para esse fim”. DIAS, Daniel; JUNQUEIRA, Thiago. Aviso do sinistro ao segurador: contributos para a interpretação do art. 771 do Código Civil. In: PRADO, Camila; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; SOARES, Flaviana Rampazzo; ROSENVALD, Nelson (Coords.). Seguros e responsabilidade civil. Indaiatuba: Foco, 2024. p. 132.
(29.09.2025)