Luis Augusto Roux Azevedo |
Introdução
Com o agravamento da crise econômica, grandes empresas e grupos econômicos têm se valido da recuperação judicial como forma de preservar as suas atividades. Alguns desses grupos, por diversas razões, tomaram, no curso normal de suas operações, seguro garantia para “garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo tomador perante o segurado.
Diante da propositura de processos de recuperação judicial, tem sido comum as empresas nessa condição incluir, em suas relações de credores, seguradoras por créditos ilíquidos. Na percepção dessas empresas, as seguradoras que emitiram apólices de seguro garantia deveriam ser incluídas nas relações de credores, posto que titulares de um direito de crédito, decorrentes dos contratos de contragarantia. É de se notar que o contrato de contragarantia será livremente negociado entre o tomador e a seguradora.
Este artigo tem por objetivo discutir a eventual subordinação dos referidos “créditos ilíquidos” das seguradoras aos processos de recuperação judicial.
A recuperação judicial e a regra geral de submissão de créditos
A recuperação judicial é regulada no direito brasileiro pela Lei nº 11.101/05 e visa conceder ao devedor de boa-fé e cujo negócio seja viável um arcabouço seguro para que possa negociar com seus credores um plano de recuperação judicial para lhe permitir superar a crise econômico-financeira por que atravessa.
A regra geral da recuperação judicial é a submissão de todos os créditos contra o devedor ao processo. Essa a linha do art. 49, “caput”, da referida lei, que diz: “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. ” É certo que a própria Lei nº 11.101/05 contém diversas exceções à regra geral, mas nenhuma delas diz respeito especificamente ao seguro garantia, razão da pertinência da indagação que se coloca.
Nesse sentido, empresas em regime de recuperação têm entendido que os créditos que supostamente poderão ser exigidos em decorrência do contrato de contragarantia estariam sujeitos ao procedimento, ainda que não fossem líquidos, sob o fundamento de que com a contratação do seguro, o dever de indenizar já existiria, somente estando condicionado à verificação de um sinistro. Dessa forma, em virtude da aleatoriedade do contrato de seguro, o crédito seria existente, mas não exigível, de forma a atender aos requisitos do art. 49 da Lei nº 11.101/05, submetendo-se à recuperação judicial e ao plano de recuperação que porventura venha a ser aprovado no bojo deste processo. Todavia, mercê da iliquidez do crédito, a seguradora credora jamais poderia participar de qualquer conclave para discutir e votar o plano de recuperação judicial.
O contrato de seguro garantia: especificidades
Como referido, o seguro-garantia tem por objetivo garantir o fiel cumprimento das obrigações assumidas pelo tomador perante o segurado. Tem-se uma primeira e importante conclusão: o segurado não é a empresa que se socorre da recuperação judicial. O segurado é o terceiro estranho à relação entre a seguradora e a empresa em recuperação judicial. Nesse sentido, caso venha a ocorrer um sinistro, quem demandará a seguradora será o segurado e nunca o tomador. Naturalmente, diante de um sinistro inúmeras situações poderão emergir, fazendo-se necessária a completa apuração de suas causas e consequências, a fim de se determinar se a hipótese atrai ou não a cobertura securitária.
A relação de crédito que se entabulará entre a seguradora e a empresa em dificuldades financeiras estará baseada no contrato de contragarantia. Assim, uma vez paga a eventual indenização ao segurado, a seguradora terá o direito de vir a cobrar o valor contra o tomador. Deve-se cogitar, então, se este crédito fundado no contrato de contragarantia estará sujeito ao processo de recuperação judicial.
Como visto acima, uma posição, defendida por empresas que estão em regime de recuperação judicial, considera que a regra geral do art. 49, “caput” da Lei nº 11.101/05 se aplica, fazendo com que o eventual crédito esteja sujeito ao procedimento.
Todavia, é possível contrapor a esse argumento a ideia de que no momento da contratação do seguro garantia (e da respectiva contragarantia) não haja um direito de crédito da seguradora contra a empresa que virá a postular a recuperação judicial (a tomadora).
Isso porque, ao contrário do apresentado acima, no regime do direito brasileiro é razoável considerar que o contrato de seguro é um contrato comutativo e não aleatório. Isso porque a definição do art. 757 do Código Civil estabelece claramente que o segurador se obriga a “garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra riscos predeterminados. ”
Nessa linha, a contraprestação da seguradora se inicia imediatamente à contratação do seguro garantia, exigindo-se-lhe diversas medidas a fim de assegurar a sua solvência para a hipótese de um sinistro vir a ocorrer. Em decorrência, a relação bilateral entre seguradora e segurado já produz efeitos de forma imediata, após a contratação, a despeito da ocorrência ou não do sinistro.
E o sinistro, caso venha a ocorrer, esteja coberto e seja indenizado, implicará a possibilidade de a seguradora acionar a contragarantia para exigir o ressarcimento da tomadora.
Nesse ponto, a defesa normalmente apresentada pela tomadora indicará a submissão desse crédito ao processo de recuperação judicial, por conta da sub-rogação da seguradora na posição do segurado.
Todavia, a existência do contrato de contragarantia que dará ensejo à cobrança pela seguradora do valor pago ao segurado não indica, por si só, a submissão do crédito da seguradora em face da empresa em recuperação judicial. Isso porque se trata de um evento posterior ao pedido de recuperação judicial, cuja origem está no pagamento, pela seguradora, de indenização a um terceiro estranho ao processo de recuperação judicial.
Desta forma, é de se considerar que o crédito da seguradora por conta do pagamento de indenização decorrente de seguro garantia ao segurado em momento posterior à distribuição do pedido de recuperação judicial não se encontra albergado pelo processo de reorganização do tomador – devedor.
Fonte: Revista Opinião.Seg nº 14, Julho de 2017.