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O Performance Bond e a Corrupção

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Por Paulo Leão de Moura Jr.

foto paulo leao mouraLi, com extremo interesse, a entrevista concedida a revista VEJA (edição 2467 de 02 março 2016) pelo eminente jurista, Dr. Modesto Carvalhosa. Concordo com os pontos por ele apresentados e, certamente, se no Brasil viermos a adotar o sistema aplicado nos Estados Unidos, iremos controlar melhor a corrupção no Brasil, hoje praticamente endêmica.

Para que isso ocorra, no entanto, modificações inúmeras nos nossos atuais procedimentos deverão ser introduzidas e, acima de tudo, uma melhor compreensão, entendimento técnico e vontade política e empresarial para que se introduza o que propõe o Professor Carvalhosa.

No Brasil, atualmente, o “performance bond” adotado é considerado uma garantia do contrato de execução de um empreendimento / obra. Sua característica maior é a sua condição de garantia pela seguradora das obrigações contratuais assumidas pelo executante / tomador junto ao segurado / contratante da obra. Caso o segurado contratante julgar existir e comprovar uma quebra contratual demandará o pagamento da garantia fornecida pela seguradora. Esta analisa o pleito do segurado, se é coberto pela apólice, indenizará pelo valor contratado e, no prazo estipulado, irá ressarcir-se desse valor pago junto ao executante / tomador conforme condições de uma fiança.

Nas condições da garantia concedida, a seguradora tem como opção, em lugar do pagamento da garantia, assumir as obrigações do tomador e dar prosseguimento à obra nos mesmos termos do contrato garantido. Raramente as seguradoras no Brasil fazem essa opção tendo em vista que os valores de garantia exigida nos contratos são muito baixos, variando de um mínimo de 5% a uns 15% do valor do contrato. Fica mais conveniente, portanto, à seguradora efetuar a indenização ao segurado. Além do mais, nenhuma seguradora mantém departamento próprio de engenharia para acompanhar as obras e equipamentos garantidos.

Importante acrescentar, ainda, que atualmente inexiste lei clara e específica regulando como uma seguradora poderá assumir o prosseguimento da obra, o que prejudica e inviabiliza o chamado “step in” (entrada da seguradora) no projeto.

Assim sendo e considerando a estrutura atual das seguradoras que operam com o seguro de garantia, muita coisa terá que ser modificada no setor de seguros para que a boa proposta do Professor Carvalhosa possa vingar no Brasil.

Atrevo-me a comentar alguns dos problemas, entre muitos outros, que seriam necessários enfrentar para essa modificação ser introduzida no mercado.

  1. A vontade política de empresários e do governo em introduzir o novo sistema considerando as inúmeras modificações e etapas necessárias. Essa vontade política esbarra logo de início com a imensa burocracia brasileira, desde as tratativas legais, com eventual necessidade de alterações no Código Civil, de nova legislação, de aprovação pelo Congresso Nacional, de cálculos atuariais, de criação de novas condições, participação e intervenção das seguradoras nos contratos com poder de veto nas eventuais inadimplências, enfim, uma série de alterações legais ou nova legislação.
  2. A aceitação do empresariado e do governo contratante em se sujeitar às rígidas regras do novo sistema, em especial às que possam impedir ou dificultar os aspectos de corrupção tais como superfaturamento e outras artimanhas que proliferam no atual sistema.
  3. O novo sistema irá gerar uma revolução no mercado de seguro, com o atendimento e preparação das seguradoras que venham a atuar neste mercado, com maior peso na adaptação destas novas e complexas atividades. Inúmeros pontos, entre outros, devem ser considerados quando comparamos o sistema atual àquele que deverá ser introduzido. Parece-me que os seguintes refletem as questões principais a serem resolvidas:
    1. A questão dos conflitos de interesse: tendo em vista que atualmente os grupos seguradores detém operações em todos os ramos de seguro, inclusive o de Garantia de Obrigações Contratuais. Na questão de minorar a eventual corrupção será essencial que fiquem totalmente independentes as empresas seguradoras de garantias contratuais para evitar interesses conflitantes entre as seguradoras dos seguros elementares que o empreendimento irá exigir com a garantia a ser concedida: assim torna-se essencial que seguradoras de garantia sejam criadas totalmente independentes do restante do mercado segurador, com este impedido de participar, direta ou indiretamente, como acionistas.
    2. Outro grande problema é a questão da definição de capacidade de retenção dessas novas seguradoras de garantia. Atualmente, as seguradoras que operam no seguro de Obrigações Contratuais pouco retém da garantia concedida, transferindo para o mercado ressegurador local ou internacional, a maior parte da garantia mediante contratos automáticos de alto valor ou contratos facultativos específicos.
      A partir do momento que seja introduzido o novo sistema proposto, as seguradoras de garantia terão que assumir, conforme a solução da problemática de resseguro, 100% da garantia segurada. A partir do momento, conforme o Professor Carvalhosa, que uma seguradora aceitar propostas com garantias que correspondam de 100 a 120% do valor dos empreendimentos, terá que apresentar a condição econômico-financeira para responder por essas responsabilidades assumidas, o que não será fácil, dependendo do que for resolvido com a questão do resseguro.
    3. A questão do resseguro apresenta igualmente um grande problema que vai desde os conflitos de interesse à eventual necessidade de interveniência do ressegurador no contrato de garantia direto concedido pela seguradora de Garantia. A prática de seguro com relação a grandes riscos e garantia de grandes obras a 100% do seu valor, certamente resulta em um grande risco. Grandes riscos, por mera questão de distribuição de responsabilidades assumidas e por razões atuariais exige a realização de resseguro. As resseguradoras desses grandes riscos assumem responsabilidades pela participação que aceitarem. Elas respondem por sua parte na indenização. Resulta, no entanto, que no novo sistema a seguradora terá que manter uma forma de acompanhamento técnico e de engenharia do empreendimento. Teoricamente, a resseguradora ao assumir parte do risco terá que ou participar desse acompanhamento ou delegar à seguradora essa obrigação, aceitando e acatando o que resultar dessa atividade. A resseguradora legalmente não tem nenhuma responsabilidade direta com o segurado (contratante). A responsabilidade é perante a seguradora e nesse contrato de resseguro ela assume uma série de obrigações que vão desde acompanhar a posição da seguradora a ter cláusulas de sinistros que supõe a colaboração e respeito às decisões da seguradora e condições que determinam sua participação direta nas decisões quanto a sinistros. A resseguradora poderá ser interveniente no contrato da obra e no seguro direto da Garantia? Pouco provável, pois em lugar de cooperação certamente teríamos impedimentos e dificuldades diversas nas regulações de sinistro.
    4. A questão da estrutura própria de engenharia que as seguradoras deverão manter para acompanhar, em alto nível e seriedade, os empreendimentos licitados vai demandar altos investimentos e exigir uma alta responsabilidade pelos trabalhos executados, assim como na tomada de decisão para interferir na obra se a evolução desta não for considerada correta por qualquer motivo.
      Será uma estrutura cara que certamente influenciará nas taxas de seguro garanta que sejam aplicadas. Hoje, na condição de mera fiança / aval por valores baixos de garantia, aplicam-se taxas que variam em média de 0,20 a 1,5% sobre garantias médias de 10% do valor do contrato. Empreendimentos de alto valor, superiores a um bilhão de reais teriam, num cálculo simplista, um prêmio dez vezes superior ao atual, mantido o mesmo critério de taxação.
      Ocorre que as taxas aplicáveis ao novo sistema devem considerar todos os ônus que envolvam a nova gama de serviços e coberturas, principalmente as condições de acompanhamento das obras e atividades de intervenção, além da possível modificação dos critérios de coberturas mais amplos da garanta concedida, incluindo fraudes cometidas.
      Como serão calculadas as taxas aplicáveis às novas garantias, coberturas e serviços? Como reagirá o mercado consumidor ante o aumento considerável de prêmio consequente, mesmo que mantidas as taxas? Será que o mercado passaria a utilizar Perda Máxima Possível (PML) em seguro garantia? No mercado internacional não conseguiram ainda criar uma metodologia apurada nesse sentido para o produto garantia. O critério terá que considerar e prever a concentração de risco no início do projeto e, acompanhando a evolução, reduzir com a construção do empreendimento garantido. Deverá ser exatamente o oposto do Seguro de Risco de Engenharia.
    5. Na condição ainda de garantia onde ao concedê-la a seguradora recebe do tomador uma contra-garantia, o mercado consumidor terá que prever e assumi-la, em caso de inadimplência contratual e intervenção da seguradora no empreendimento, isto é, no caso de sinistro deverá ressarcir a contra-garantia à seguradora pelo valor da indenização que vier a ser exigida pelo segurado. Essa situação irá determinar às tomadoras condições sérias de reservas e de situação econômico-financeira para fazer face às contra-garantias concedidas. Esta situação terá um peso considerável no contexto de taxação e aceitação do risco pela seguradora. Será que o contrato de contra-garantia poderá ser apurado legalmente como um título executivo? De fácil execução em juízo? Seria importante, pois atualmente não funciona exatamente dessa maneira.
    6. Com relação aos critérios de aceitação dos riscos e sua taxação temos situação que deverá ser seriamente considerada. A primeira diz respeito ao critério de análise de risco. Atualmente é o risco analisado como tão somente garantia ou quebra das condições contratuais. No Brasil, embora sendo garantia, é tratado como seguro e em suas condições são incluídas cláusulas diversas que descaracterizam garantias “on demand” como nos casos das fianças concedidas por bancos – hoje dificultadas pelas Basileias da vida. Assim, o seguro de garantia tem condições específicas e essas condições, me parece, deverão ser ampliadas para incluir aspectos determinantes em relação à execução de projetos e, em especial o que trata a questão principal, um impeditivo à corrupção. Questões como fraude, dolo ou má-fé, tanto de segurados quanto de tomadores deverão compor o âmbito das coberturas, como exemplo. Prever dolo e má-fé do segurado, a meu ver, seria impossível, mas do tomador torna-se outra questão. E, no contexto de redução de corrupção uma cobertura essencial. A avaliação do risco da seguradora não considera o segurado, assim dificilmente poderia uma seguradora assumir riscos do segurado no produto Garantia. Atualmente, o grande peso das análises de risco concentra-se nas condições econômico-financeiras dos tomadores e sua condição efetiva de responder pela contra-garantia que tem de conceder. O estudo e análise das efetivas condições técnicas e operacionais do tomador em prestar os serviços contratados, inúmeras vezes, chega a ser relegado a um segundo plano. Já nas novas condições propostas pelo Professor Carvalhosa, a análise de risco da garantia a ser concedida deverá necessariamente dar ênfase especifica a essa capacidade técnica de assumir e realizar o empreendimento segurado embora prevaleça também a análise econômico-financeira, pois a contra-garantia certamente irá prevalecer.

Feitas essas considerações acima, entre tantas outras a considerar, verifica-se que, embora a proposta do Professor Modesto Carvalhosa seja apropriada e mais um instrumento para combater a corrupção que corrói as nossas atividades como um todo, em especial no setor de grandes obras, a sua preparação irá exigir um grande esforço e vontade política de governo e empresários para ser introduzida no Brasil. Dada a amplitude dessa corrupção e a prevalecer a manutenção do “jeitinho brasileiro” que alimenta essa mania nossa de tirar vantagem em tudo, essa filosofia gersoniana que tanto mal nos faz, não me parece que, mesmo com a introdução do novo “performance bond” proposto, acabaremos com a corrupção, pois a responsabilidade da seguradora em apurar se há ou não corrupção nos contratos licitados tem seus limites.

Sabemos que existem vários projetos em andamento sobre este assunto, inclusive junto ao Congresso Nacional. Julgo que está na hora dos vários protagonistas desta questão se juntarem em um só bloco, liderados por instituições sérias para que a proposta resulte em algo bom, que garanta grandes empreendimentos futuros e os proteja da voraz corrupção.

São Paulo, Março 2016