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Novo CPC afasta desejo do tribunal Marítimo de se sobrepor ao Judiciário

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Por Luiz Roberto Sabbato, em 23.04.2015 (*)

TRIBUNAL MARÍTIMO. DECISÕES ADMINISTRATIVAS. EQUIPARAÇÃO ÀS JUDICIAIS. INCONSTITUCIONALIDADE. ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO CIVIL BEM VETADO NESSE PARTICULAR.

Tribunal marítimo. Acórdão administrativo. Projetos de lei números 6.025/2005 e 8.046/2010. Novo Código de Processo Civil. Proposição de elevar o julgado administrativo a título executivo judicial. Exercício da judicatura sem investidura. Proposta inconstitucional. Inadequação, ademais, para elevar o documento à classificação de título executivo extrajudicial. Artigo 515, X do projeto, considerando título executivo judicial “o acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo quando do julgamento de acidentes e fatos da navegação”. Titulação incerta e ilíquida, sem eficácia executiva. Veto bem administrado.

O artigo 515, X do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, reproduzindo dispositivo do CPC/1973, jamais aplicado no Judiciário por clara, evidente e insofismável inconstitucionalidade (art. 475-N, IV), volta à baila de malsinada insistência na busca de elevar um julgamento administrativo à condição de título executivo judicial, passando ao largo do artigo 2º da Constituição Federal para delegar funções judicantes a quem não tem investidura.

Somente o Poder Judiciário, regularmente representado por seus membros investidos, tem a prerrogativa constitucional de criar títulos judiciais. Fosse reconhecer ao Tribunal Marítimo o predicamento judicante sem o processo jurisdicional, os mais espaçosos – que atualmente não faltam no Brasil - pensariam logo em exercer a função de legislar sem o processo legislativo.

E não faltariam aqueles que, ávidos do poder pelo poder, pensariam em ocupar o Executivo, o Legislativo e o Judiciário sem mandato constitucional.

Bom lembrar que ao menos em tese o Brasil ainda é um país democrático e não se alinha – nem deve se alinhar – ao despotismo com que vêm se comportando alguns países do hemisfério sul, bafejados pela cubanização. Os que se enveredaram por essa perigosa senda contavam com a distração do leitor, desestimulando-o de uma análise mais acurada diante do tamanho do texto. Andou bem, pois, quem o reviu para provocar o veto, descortinando às tramas desonestas de redatores cumpliciados com o fisiologismo.

Por que, enfim, além de imoral é inconstitucional a uma instituição administrativa criar documentos espúrios, quanto mais enquanto judiciais, aos interessados em exercer a jurisdição se recomenda a leitura dos artigos 92 e seguintes da Constituição Federal, com o que pela lei e pela ordem poderão alcançar o cargo e a função de juiz, assumir o poder pela investidura e julgar com o equilíbrio de quem tem o direito e o dever de vestir a toga.

No âmbito da lei ordinária, por outro lado, descabe igualmente erigir o acórdão marítimo a título de crédito extrajudicial, coisa que deve estar também nas cogitações dos operadores de direito pouco informados.

Com efeito.

O título executivo judicial, ao contrário do extrajudicial (executivos ou não executivos), só se consolida e é alcançado pela imutabilidade quando, depois de produzido, passa por diversos controles de qualidade.

De acordo com o Código de Processo Civil atual, promulgado em 1973, o título executivo judicial se inicia pela decisão terminativa de primeiro grau de jurisdição, a sentença, que só pode ser prolatada depois de vencidas e exploradas à exaustão as fases processuais da postulação, aí compreendidas a inicial, a contestação e a réplica, bem como a fase de instrução, aí compreendidos os meios probatórios em Direito admitidos, com ou sem dilação.

Criada, passa a sentença pelo primeiro controle de qualidade, a apelação, com o surgimento do acórdão proferido por uma corte de segundo grau.

Ainda sem atingir a imutabilidade o julgamento colegiado fica sujeito, quando altera a sentença sem unanimidade, ao controle dos embargos infringentes (Código de Processo Civil/173, art. 530).

Em seguida, ainda de acordo com o CPC/73, abre-se a oportunidade de reclamos às Cortes Superiores do país, os recursos especial e extraordinário.

De eventual negativa de seguimento será possível o agravo, também de acordo com o CPC/73.

Finalmente a jurisdição alcança a imutabilidade nas Cortes Superiores, que ainda pode ser revertida pelo sexto e último controle de qualidade, a ação rescisória (CPC/73, art. 485).

Não, portanto, sem um rigoroso controle, com mecanismos eficientes de aperfeiçoamento da difícil função de avaliar, censurar ou manter práticas e condutas humanas e societárias, é que a tutela jurisdicional se torna líquida e certa.

O pragmatismo social, contudo, exigiu maior risco e ousadia que, em detrimento da qualidade, inovou em celeridade para introduzir institutos capazes de dirimir liças judiciárias.

Daí a razão pela qual foram surgindo alguns títulos extrajudiciais que, equiparados à sentença, bem ou mal, mal ou bem, foram dotados de força executiva.

A sentença ainda é o título executivo por excelência e aquele que, primitivamente, originou a execução, com exclusividade. Mas, desde a Idade Média que determinados documentos se tornaram executáveis e garantizantes. Quanto mais progrediam as instituições processuais, para atender à evolução, sobretudo, dos direitos obrigacionais e, entre esses, das relações mercantis, fundadas em certos títulos, o direito positivo foi estendendo a força executiva a diversos e diferentes documentos, fora da sentença. Cada ordenamento, porém, adota orientação própria, de acordo com suas tradições, suas praxes, seus costumes e, máxime, seu direito material, que exija ou não maior proteção (ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, Comentários ao Código de Processo Civil de 1973, VI, Forense, 1979, 3ª Edição, p. 347).

O ordenamento processual brasileiro nem sempre obrou com cautela para dar ao título extrajudicial a força executiva do título judicial.

Na verdade, entre aqueles elencados no CPC de 1973 apenas a Nota Promissória e o Cheque, ante o consentimento de devedor expresso por sua assinatura, se erigem à condição de dívida líquida e certa equivalendo-se à sentença, isto é, como se a respeito da relação subjacente houvesse um pronunciamento judicial.

Os demais, quando dependentes de apuração de fatos ou de interpretação de cláusulas contratuais, mais não ostentam senão dúvida, iliquidez e incerteza.

Por oportuno, não custa destacar a pior das titulações: a duplicata, cambial tupiniquim que, sem abstração e vinculada a uma compra e venda mercantil ou a uma prestação de serviços, não raro é questionada com fundamento na exceção de contrato não cumprido e, quando não, em falta de consentimento expresso do sacado, à alegação de não ser sua a assinatura constante do comprovante de entrega da mercadoria ou da prestação dos serviços. Tais e tantos foram as improbidades e os ilícitos penais a respeito que, não sem fundadas razões, o legislador criou a figura da duplicata simulada no artigo 172 do estatuto repressivo.

Certo, pois, que o artigo 800 do projeto de lei praticamente repetiu o artigo 585 do CPC/1973, de se considerar que os títulos executivos extraprocessuais, permanecendo os mesmos, serão objeto das mesmas objeções por quem lhes alega inexigibilidade.

Tome-se o mais simples, aquele que mais se compadece com a alegação de existência de dívida líquida e certa: o documento particular assinado pelo devedor e por duas testemunhas.

Se este documento particular mencionar apenas o valor da dívida e a obrigação de resgate em parcelas mensais, com data certa de vencimento, haverá liquidez e certeza.

Se, porém, mencionar assunção de dívida decorrente de um negócio subjacente, como por exemplo a compra e venda de um imóvel, certamente as cláusulas contratuais estarão sujeitas à alegação de não cumprimento do negócio imobiliário, seja porque não houve entrega do bem adquirido, seja porque houve entrega com atraso, seja porque se apurou a existência de tributos inadimplidos por parte do vendedor, seja, enfim, por uma série de fatos que, implicando em análise e interpretação de obrigações sinalagmáticas, retiram a certeza e a liquidez do título, tornando inadequado o processo executivo e impondo o processo de conhecimento.

Diga-se o mesmo dos outros títulos correlatos, previstos de forma semelhante nos dispositivos do CPC/1973 (artigo 585) e no projeto (artigo 800): a escritura pública, os contratos garantidos por hipoteca, penhor, anticrese e caução, os de seguro de vida, o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio.

Que dizer, pois, se à esses títulos de exequibilidade duvidosa fossem agregados os títulos resultantes da sentença arbitral, provindos ou não do tribunal marítimo, que por força de evidente inconstitucionalidade, foram incorporados sub-repticiamente no diploma de 1973, artigo 475-N, V, incluído pela Lei n. 11.232, de 2005: “a sentença arbitral”.

Supondo-se a existência de uma sentença arbitral que houvesse analisado um acidente marítimo, por exemplo de um abalroamento como o que aconteceu com o Costa Concórdia, na Itália, quando pilotado pelo comandante FRANCISCO SCHETTINO, que hoje ainda responde na Justiça Comum da Itália, acusado de homicídios por imprudência, abandono de navio e danos ao meio ambiente. Conferir na Internet, página em português do periódico LE VOIX DU MONDE, http://www.portugues.rfi.fr/europa/20140227

Homicídio por imprudência requer conhecimentos de Direito Penal; abandono de navio requer conhecimentos de Direito na área da responsabilidade civil; danos ao meio ambiente requer conhecimentos de direito público.

Bacharel em ciências jurídicas e sociais, concursado e togado, é o juiz um profissional talhado para analisar e dirimir todos os fatos relacionados com esses três ramos do Direito, ao cabo do que proferirá uma sentença que, depois de ser aperfeiçoada por todos os controles de qualidade jurisdicional, ganhará imutabilidade e será executada milimetricamente.

Para isso há necessidade de apurar fatos, atribuir responsabilidades e interpretar as cláusulas dos contratos de transporte havidos com os passageiros.

Não seria, pois, um título apócrifo, criado administrativamente por um organismo não judicial, que iria se sobrepor às exigências pelas quais se formam os títulos judiciais e, por extensão, os títulos extrajudiciais oriundos da mesma causa subjacente.

Não raro, pois, se vêm que estes títulos extrajudiciais, embora teoricamente equiparados aos judiciais, se vejam desconstituídos pela jurisprudência.

Confira-se:

Título executivo extrajudicial, previsto no art. 585, II, do CPC, é o documento que contém a obrigação incondicionada de pagamento de quantia determinada (ou entrega de coisa fungível) em momento certo. Os requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade devem estar ínsitos no título. A apuração de fatos, a atribuição de responsabilidades, a exegese de cláusulas contratuais, tornam necessário o processo de conhecimento, e descaracterizam o documento como título executivo (RSTJ 08/371, Relator e Eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira).

Resumindo, por força de veto, a sentença arbitral proferida pelo tribunal marítimo no projeto do novo Código Civil não é título executivo judicial e, por falta de previsão, também não é título executivo extrajudicial. No CPC/1973 sua classificação como título executivo judicial, quando não considerada inconstitucional, tem provocado sistemática desconstituição à ausência de liquidez e certeza.

(*) Luiz Roberto Sabbato é Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Assessor da Presidência da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MAGISTRADOS ESTADUAIS.