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Nas mãos de Deus

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Por Gloria Faria (*)

gloria faria 2023

A morosidade, talvez o ponto mais crítico da entrega da Justiça, não é privilégio do Judiciário. Nem as falhas. Também o Legislativo e órgãos reguladores são demasiado lentos na elaboração e aprovação de leis e normas e umas tantas vezes, falham. Nestes tempos de evolução tecnológica galopante, ou melhor dizendo, aceleradíssima, a segurança pode ficar bastante comprometida.

É o caso da recente regulação dos ciclomotores pela resolução do CONTRAN Nº 996 que entrou em vigor no dia 3 de julho de 2023 e pretende atualizar a classificação de ciclomotores, bicicletas elétricas e outros equipamentos autopropelidos, de mobilidade individual – patinetes e skates. A referida norma, que revogou duas resoluções anteriores que tratavam do assunto separadamente, as de Nº 934 e 947, ambas de 2020, define com maior propriedade tais veículos e, dentro desta proposta, também traz uma melhor delimitação das fronteiras entre as tecnologias empregadas visando a obrigação de registro e licenciamento, quando cabíveis.

Ainda assim, infelizmente, o aperfeiçoamento não conseguiu sanar duas lacunas na regulação desses veículos.

Grandes cidades, metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo tiveram o número de ciclomotores exponencialmente aumentado e os (ainda) pequenos acidentes envolvendo tanto condutores como pedestres, multiplicados.

A partir de 2020, com a pandemia da Covid 19, aumentou muito a utilização de bicicletas elétricas e ciclomotores para atender não só a mobilidade das pessoas que se mantiveram em trabalho presencial, mas, principalmente, para dar conta do boom do delivery, sistema de entrega de refeições, medicamentos e pequenas compras que permitiu e facilitou a vida no período de isolamento.

A Resolução CONTRAN Nº 996/2023 definiu os ciclomotores como:

[...] veículos de duas ou três rodas providos de motor de combustão interna cuja cilindrada não exceda 50m³(cinquenta centímetros cúbicos), equivalente a 3,05 pol³ (três polegadas cúbicas e cinco centésimos), ou de motor de propulsão elétrica com potência máxima de 4kW (quatro quilowatts) e cuja velocidade máxima não exceda 50 km/h (cinquenta quilômetros por hora) [...]

E, apenas a estes, impõe a obrigatoriedade de registro e licenciamento junto aos órgãos ou entidades executivos de trânsito estaduais e do Distrito Federal. Assim, a inclusão dos ciclomotores no RENAVAM se torna obrigatória e seus proprietários devem efetuá-la partir de 1º de novembro de 2023, com prazo final em 31 de dezembro de 2025.

Às bicicletas elétricas, não serão exigidos registro nem licenciamento, devendo, entretanto, possuir indicador de velocidade e/ou dispositivo eletrônico de velocidade, campainha, espelho retrovisor do lado esquerdo e pneus em boas condições.

Quanto à obrigatoriedade da utilização de capacete para o condutor e passageiro de ciclomotores[1] esta permanece, porém, não foi estendida aos condutores de bicicletas, bicicletas elétricas e outros equipamentos de mobilidade individual autopropelidos. Perdeu-se uma boa oportunidade de trazer mais segurança aos condutores destes veículos, sobretudo aos condutores idosos – que são muitos – para quem, mesmo uma pequena pancada no crânio, pode ser fatal. A utilização de capacete por ciclistas é exigência corriqueira e antiga nos países da União Europeia, nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido.

Entretanto, as maiores críticas recaem sobre o aval que a resolução dá para os ciclomotores circularem regularmente nas ciclovias, o que beira o absurdo quando estas são compartilhadas com pedestres, como é o caso da que circunda os 7.200 metros da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro. Também, bastante questionável é a forma vaga adotada para a fiscalização dos abusos dos limites de velocidade. A capacidade de identificação visual da velocidade de um veículo em ciclovias é pífia e se não assim, como se infere do texto da norma, como então será feita?

Não há menção a qualquer tipo de controle das infrações de alta velocidade como os utilizados para automóveis. A impossibilidade de fiscalização efetiva propicia a impunidade e enfraquece a aplicação de medidas punitivas, como as multas ou a perda da carteira de habilitação no caso de reincidências.

Não é novidade que um enorme número de infrações ao Código de Trânsito, ficam impunes, na sua maciça maioria, por falta de fiscalização. A elas serão acrescentadas novas infrações, sobretudo de não observação dos limites de velocidade por parte de bicicletas elétricas e ciclomotores. As falhas na segurança de pedestres e condutores somadas a falta de previsão de uma fiscalização efetiva comprometem a eficácia da norma e não garantem a proteção pretendida.

Sem segurança ou proteção, os que acreditam em Deus e, sobretudo os que acham que Ele é brasileiro, que comecem a rezar...

[1] Obrigatoriedade do uso do capacete estabelecida pela Lei nº 9503 de setembro que 1997 

(*) Gloria Faria é advogada, sócia do escritório MOTTA & FARIA Advocacia e Organizadora da Revista Jurídica de Seguros da CNseg.

Rio de Janeiro, 3 de julho de 2023