Por Voltaire Marensi (*)
Gostaria de trazer à balha aos nossos estimados leitores e dignas leitoras, um outro viés tanto na interpretação como dentro de um maior elastério, que se moldurou na decisão abaixo identificada em que se ressaltou a vigente Súmula 620 do Superior Tribunal de Justiça.
A súmula diz o seguinte:
“A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida."
Pois bem. O caso foi ventilado, casuisticamente, por ocasião do julgamento do recurso especial sob número 2.054.074/RS, da relatoria da douta Ministra Fátima Nancy Andrighi, julgado recentemente.
A matéria ventilada foi no sentido de decidir se a embriaguez do segurado, atropelado quando ajoelhado em via pública, eximiria a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida, sob o fundamento de que teria agravado o risco ou causado o acidente.
Segundo a relatora inserto no contexto fático descrito na sentença e do que constou no acórdão recorrido, cuidava-se de saber se o de cujus seria acobertado, ou não, pelo seguro de vida contratado.
Através do relato dos fatos o segurado teria falecido no ano de 2018 em decorrência de atropelamento. Na ocasião do sinistro, ocorrido à noite e na via ERS 208, no município de Maximiliano de Almeida/RS, o segurado havia ingerido álcool e estava parado na estrada, ajoelhado e com as mãos sobre o asfalto. Ademais, segundo o relato do próprio motorista, devidamente transcrito na decisão de primeiro grau, chovia e não era possível desviar daquele, uma vez que inexistia acostamento na via, a qual seria ladeada por valetas.
Considerando o óbito do segurado, os beneficiários do seguro ingressaram com pedido judicial para recebimento da importância segurada.
Pelo que se depreendeu dos autos a pretensão foi acolhida pelo juízo singular como também pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Manejado recurso especial esse subiu ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Segundo a relatora acima referenciada, a possibilidade de exclusão da cobertura do seguro de vida quando de acidente ocasionado em razão da embriaguez do segurado teria sido objeto de outros inúmeros casos julgados pelo STJ.
A ministra, entre outras considerações, destacou que “se encontrava presente a premissa de que a exclusão de coberturas nos seguros de vida deve ser interpretada restritivamente, sob pena de esvaziar a própria finalidade do contrato, uma vez que é da essência do seguro de vida um permanente e contínuo agravamento do risco segurado,” inclusive invocando precedente incluso no Resp, número 1.665.701/RS, da lavra da Terceira Turma.
Neste sentir, aduziu a relatora que se retornaria à apreciação de matéria já por demais ventilada ao sabor do enunciado 620 do STJ.
A título de exemplo, ressaltou o julgamento dos seguintes precedentes:
“AgInt no Aresp1.918.317/SP, Quarta Turma, DJe 31/3/2022; AgInt no Aresp 1.635.462/RS, Terceira Turma, DJe 18/12/2020; Resp, número 1.866.860/RS, Terceira Turma, DJe 30/9/2020; AgInt no Aresp sob documento número 185317586, além de outro sob nº 1.541.969/PR, Quarta Turma, DJe 8/11/2019”.
Um outro ponto importante a ser sublinhado neste tema foi quando ela, obtemperou:
“Isso ocorre, sobretudo, em razão da distinção concernente ao seguro de bens, pois, neste caso, o entendimento consolidado é de que “o estado de embriaguez do condutor de veículo, caso seja determinante para a ocorrência do sinistro, é circunstância apta a excluir a cobertura do seguro contratado, por constituir causa de agravamento do risco”. (Resp. 1.485.717/SP, Terceira Turma, DJe 14/12/2016 e AgInt no Aresp. 1.629.694/PB, Quarta Turma, DJe 24/9/2020)”.
Além do mais a relatora se manifestou ao constatar que as seguradoras se insurgem em relação ao alcance e limites da exclusão da cobertura do seguro de vida quando o segurado, embriagado, dá causa ao acidente, retomando-se a tese acerca do “agravamento do risco”, aliás, previsto no art. 768 do Código Civil.
Recentemente, aduziu a Relatora, pacificou-se a questão por meio do julgamento do Resp. 1.999.624/PR, Segunda Seção, DJe 2/12/2022, cujo recorrente seria o mesmo do caso sob julgamento.
Assinalou, ainda, que o processo foi levado a julgamento com a pretensão de “reexaminar” ou “superar” a Súmula 620/STJ, a fim de compreender que “a leitura que se deve fazer é através de um sentido mais amplo, pois, no seguro de vida, a embriaguez do segurado que conduz veículo automotor e se envolve em acidente, por si só, não exime o segurador do pagamento de indenização, sendo necessária a prova de que aquela conduta configurou o agravamento do risco segurado (com ônus da prova pelo segurador), influindo decisivamente na ocorrência do sinistro”. Alusão feita ao Resp, sob número 1.999.624/PR.
Todavia, continua o voto da relatora, dita tese não prevaleceu. O voto condutor do acórdão manteve o entendimento de que, “nos seguros de pessoas, é vedada a exclusão de cobertura na hipótese de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas” (Resp,1.999.624/PR. pp. 34)”.
Desse modo, continua o voto condutor endossado pelo Colegiado, “consolidou-se a orientação mais benéfica ao consumidor, no sentido de afastar o pagamento da apólice do seguro de vida tão somente quando ocorrer suicídio dentro dos dois primeiros anos de contrato, nos exatos termos da Súmula 610/STJ:
“O suicídio não é coberto nos dois primeiros anos de vigência do contrato de seguro de vida, ressalvado o direito do beneficiário à devolução do montante da reserva técnica formada”.
Incontinenti, destaca a seguinte ementa:
“RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE DO CONDUTOR SEGURADO. EMBRIAGUEZ. NEGATIVA DE COBERTURA PELA SEGURADORA. ALEGAÇÃO DE AGRAVAMENTO DE RISCO. INGESTÃO DE BEBIDA ALCOÓLICA. SÚMULA 620/STJ. CONFIRMAÇÃO. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL.
1. A jurisprudência desta Corte e a do egrégio Supremo Tribunal Federal, firmada ainda sob a vigência do Código Civil de 1916 e mantida sob a vigência do novo Código Civil, é consolidada no sentido de que o seguro de vida cobre até mesmo os casos de suicídio, desde que não tenha havido premeditação (Súmulas 61/STJ e 105/STF).
Já em consonância com o novo Código Civil, a Segunda Seção desta Corte, prossegue a Relatora, consolidou seu entendimento para preconizar que "o legislador estabeleceu critério objetivo para regular a matéria, tornando irrelevante a discussão a respeito da premeditação da morte" e que a seguradora não está obrigada a indenizar apenas o suicídio ocorrido dentro dos dois primeiros anos do contrato" (AgRg nos EDcl nos EREsp 1.076.942/PR, Segunda Seção, Rel. p/ acórdão Ministro João Otávio de Noronha).
Na mesma esteira, a jurisprudência da eg. Segunda Seção, inclusive arrimada em significativo precedente da eg. Terceira Turma (REsp. 1.665.701/RS, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva), assentou que, "com mais razão, a cobertura do contrato de seguro de vida deve abranger os casos de sinistros ou acidentes decorrentes de atos praticados pelo segurado em estado de insanidade mental, de alcoolismo ou sob efeito de substâncias tóxicas, ressalvado o suicídio ocorrido dentro dos dois primeiros anos do contrato."
Portanto, acentua a relatora que no julgamento do Eresp 973.725/SP, a Egrégia Segunda Seção editou a Súmula 620/STJ.
Enfim. Para ela no paradigmático voto, estabeleceu-se que: “o agravamento do risco pela embriaguez, assim como a existência de eventual cláusula excludente da indenização, é crucial apenas para o seguro de coisas, sendo desimportante para o contrato de seguro de vida, nos casos de morte”. Assim, “nas hipóteses como a presente, de seguro de vida, defende-se que a cobertura é devida, embora o estado mental do segurado possa ter sido decisivo para a ocorrência do sinistro” (Resp. 1.999.624/PR, pp. 25 e 29). Os julgados mencionados têm em comum uma peculiaridade de fato. Isto é, têm como premissa fática que o segurado, embriagado ou sob efeitos de outras substâncias tóxicas, ocupava a posição de motorista do veículo no momento do sinistro.
Por fim, concluiu:
Com efeito, esse entendimento também deve ser aplicado quando o segurado embriagado não for o condutor do veículo – como na hipótese dos autos. Ou seja, quando o condutor do veículo, no pleno uso de suas faculdades mentais, for surpreendido por pedestre, segurado, embriagado no meio da via pública. Se, dessa circunstância, sobrevier atropelamento e morte do segurado, há que se aplicar a Súmula 620/STJ.
Do mesmo modo, tratando-se de seguro de vida – e não de bens –, mostra-se desnecessário averiguar o agravamento do risco por parte do segurado.
Em síntese, aplica-se a Súmula 620/STJ, no sentido de que a embriaguez do segurado falecido, motorista ou pedestre, não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida.
Peço vênia aos nossos estimados leitores e leitoras pelas citações exaustivas de números de precedentes trazidos à colação no julgamento da Ministra Fátima Nancy Andrighi.
Assim fiz, quer em razão de um outro prisma que se deu na interpretação do enunciado 620 do STJ, como também para consignar o meu respeito ao valioso voto que dá um maior colorido no que tange ao enfoque que deve ser concedido e valorado daqui para frente no julgamento de casos deste jaez.
Em outras palavras: a jurisprudência avança no sentido de distinguir, de modo eloquente, a dicotomia entre o agravamento do risco e a proteção que o seguro deve dar em casuísticas semelhantes ao caso concreto.
É por isso que mestres renomados em sede de Direito de Seguros com M. Picard et A. Besson identificam a distinção do aumento do risco da exclusão do risco. Vide Les Assurances Terrestres. Le Contrat d’Assurance. Paris, edição 1.975, página 147.
Ademais, à guisa de mero registro, quanto ao tema da Lei Seca implementada pelo Brasil é de se consignar como disse em um de meus livros “O seguro, a Vida e sua Modernidade”, a maioria dos países europeus têm leis mais liberais que as nossas neste particular. Na Alemanha se admite concentração abaixo de 0,5g/L no sangue e 0,25 mg/L no bafômetro. Já na Inglaterra, segundo se depreende na análise ditada pelo Google existe um limite de 0,8 g/L no sangue e 0,35 mg/L no ar expelido.
Por fim. Não se guarda neste ensaio nenhuma posição quer em relação ao segurado, quer em relação ao segurador. Apenas quis demonstrar que a jurisprudência deve cada vez mais colmatar fatos que ainda não são devidamente contemplados pelo legislador, que certamente poderão aprimorar uma legislação mais consentânea com a realidade atual.
É o que penso, sob censura.
(*) Voltaire Marensi é Advogado e Professor.
Porto Alegre, 21/04/2023