Importação de medicamento sem registro: limites jurídicos e responsabilidades das operadoras de planos de saúde no Brasil


Por Ana Paula Oriola De Raeffray (*)
A crescente demanda por medicamentos inovadores e de alto custo, não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), tem gerado relevantes controvérsias jurídicas no âmbito da saúde suplementar. A judicialização de pedidos para fornecimento de medicamentos importados por operadoras de planos de saúde reflete não apenas as questões relacionadas ao rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas também o embate entre a segurança sanitária e a concretização do direito à saúde.
Em face da ausência de alternativas terapêuticas eficazes no mercado nacional, pacientes — munidos de prescrição médica — têm buscado a importação direta de medicamentos, muitas vezes sem registro sanitário no Brasil. A controvérsia emerge, sobretudo, quando se pleiteia que tais medicamentos sejam custeados pelas operadoras de planos de saúde, que, por sua vez, invocam a ausência de previsão contratual e no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, por vezes o uso exclusivamente domiciliar, bem como a falta de registro perante a ANVISA como fundamentos para a negativa de cobertura.
A prestação de serviços de saúde suplementar no Brasil é regida pela Lei nº 9.656/1998, que estabelece os parâmetros contratuais e regulatórios dos planos privados de assistência à saúde. A atuação normativa da ANS, especialmente por meio do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, busca estabelecer um padrão mínimo de cobertura obrigatória pelas operadoras. A questão central, no entanto, reside em saber se medicamentos importados, muitas vezes não registrados na ANVISA, podem ser exigidos judicialmente das operadoras, ainda que fora do rol estabelecido pela agência reguladora.
Historicamente, o Rol de Procedimentos da ANS foi interpretado por grande parte das operadoras como taxativo, o que autorizaria a negativa de cobertura de procedimentos, exames e medicamentos não expressamente previstos. Contudo, essa interpretação foi suavizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), estabelecendo que o rol possui, em regra, caráter taxativo, admitindo, entretanto, exceções desde que observados critérios técnicos e médicos.
No julgamento do REsp 1.886.929/SP, a Segunda Seção do STJ assentou que o rol da ANS pode ser superado quando: (i) houver recomendação expressa do médico assistente, (ii) inexistir substituto terapêutico previsto no rol, (iii) o procedimento for eficaz à luz da medicina baseada em evidências, e (iv) houver autorização da ANVISA para uso do medicamento no Brasil, ainda que em caráter excepcional. Na ementa do acórdão constam expressamente tais exceções:
“(…)
11. Cabem serem observados os seguintes parâmetros objetivos para admissão, em hipóteses excepcionais e restritas, da superação das limitações contidas no Rol: 1 - o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar é, em regra, taxativo; 2 - a operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do Rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado à lista; 3 - é possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extrarrol; 4 - não havendo substituto terapêutico ou estando esgotados os procedimentos do Rol da ANS, pode haver, a título de excepcionalidade, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo-assistente, desde que (i) não tenha sido indeferida expressamente pela ANS a incorporação do procedimento ao Rol da Saúde Suplementar; (ii) haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências; (iii) haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e NatJus) e estrangeiros; e (iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.
(…)”
Ainda que o STJ tenha reforçado a necessidade de respeito aos critérios da ANVISA, a jurisprudência tem flexibilizado tais exigências nos casos de medicamentos importados por paciente com prescrição médica e ausência de alternativa terapêutica.
Na hipótese dos medicamentos importados não registrados na ANVISA há previsão legal expressa no artigo 10, inciso V, da Lei nº 9656, de 1998 de que as operadoras de saúde não têm obrigação de fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados. Ao interpretar o dispositivo legal, o STJ foi claro, firmando o Tema 990, com a seguinte tese: “as operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.”
Estão, contudo, sendo criados caminhos de exceção, os quais têm como fonte a tese firmada no Tema 500 do Supremo Tribunal Federal (STF):
“1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (I) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(II) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (III) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.”
Embora tal decisão diga respeito ao fornecimento pelo Estado, os tribunais têm aplicado os mesmos princípios à saúde suplementar. A ênfase recai sobre a efetivação do direito à saúde (CF, art. 196) e sobre a função social do contrato, que não pode ser interpretado de forma restritiva a ponto de inviabilizar a proteção da vida e da saúde do beneficiário.
Outras exceções à regra de que os medicamentos importados não registrados pela ANVISA não devem ser cobertos pelas operadoras de saúde também foram abertas pelo próprio STJ, quando este profere reiteradas decisões no sentido de que a autorização da ANVISA para a importação do medicamento, ainda que ele não esteja registrado, é suficiente para que haja a necessidade de cobertura, mesmo que o medicamento seja importado, não conste do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, e seja inclusive destinado a uso domiciliar.
A mera autorização para importação do medicamento, segundo o entendimento do STJ, já evidencia a segurança sanitária do medicamento, o que obrigaria à cobertura pelas operadoras de saúde, ainda que não tenha havido registro, criando-se o distinguishing em relação ao Tema 990. Essa vertente tem início com a decisão proferida no Resp nº 2.019.618/SP, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi:
“(…)
5. Segundo o entendimento consolidado pela 2ª Seção no julgamento do Resp 1.712.163/SP e do Resp 1.726.563/SP, sob a sistemática dos recursos repetitivos, “as operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA” (Tema 990 – julgado em 01/09/2020, DJe de 09/09/2020).
6. A autorização da ANVISA para a importação do medicamento para uso próprio, sob prescrição médica, é medida que, embora não substitua o devido registro, evidencia a segurança sanitária do fármaco, porquanto pressupõe a análise da Agência Reguladora quanto à sua segurança e eficácia, além de excluir a tipicidade das condutas previstas no artigo 10, IV, da Lei 6.437/77, bem como nos arts. 12 c/c 66, da Lei 6.360/76.
7. Necessária a realização da destinção (distinguishing) entre o entendimento firmado como precedente vinculante e a hipótese concreta dos autos, na qual o medicamento (PURODIOL 200 mg/ml) prescrito à beneficiária do plano de saúde, embora se trate de fármaco importado ainda não registrado na ANVISA, teve a sua importação autorizada pela referida Agência Nacional, sendo, pois, de cobertura obrigatória pela operadora de plano de saúde.
(…)”.
A questão fica ainda mais delicada quando a determinação de cobertura se dá em relação a medicamento de uso domiciliar, porque para estes casos também há previsão expressa de não obrigatoriedade de fornecimento pelas operadoras, exceto em casos de antineoplásicos orais. É o que está previsto no artigo 10, inciso VI, da Lei nº 9656, de 1998.
O reconhecimento da obrigatoriedade de cobertura de medicamentos importados, em especial quando se trata de uso domiciliar, mesmo sem registro na ANVISA, tem gerado preocupação no setor de saúde suplementar, mesmo porque a falta de segurança jurídica quanto ao tema gera risco à sustentabilidade atuarial dos planos, pois o mutualismo pode ser afetado por decisões judiciais que impõem tratamentos de alto custo fora do rol e do escopo contratual.
Esse cenário evidencia a necessidade de diálogo regulatório entre ANS, ANVISA e o Poder Judiciário, a fim de conciliar a proteção do consumidor com a viabilidade econômica das operadoras, resguardando o equilíbrio contratual e a segurança sanitária.
A tensão entre o direito à saúde, previsto como direito fundamental na Constituição Federal de 1988 (art. 6º e art. 196), e a regulação sanitária exercida pela ANVISA é um dos principais pontos de fricção jurídica nas demandas que envolvem a importação de medicamentos, inclusive os de uso domiciliar. Esse embate ganha contornos ainda mais complexos quando o pedido de cobertura é direcionado a operadoras de planos de saúde, cujos contratos são regulados por normas infralegais da ANS e submetidos a limites técnico-financeiros de viabilidade.
O Poder Judiciário tem exercido papel relevante na concretização do direito à saúde, especialmente quando o acesso a medicamentos inovadores é negado pelas instâncias administrativas. Entretanto, decisões judiciais que determinam o fornecimento ou o custeio de medicamentos não registrados — inclusive no âmbito da saúde suplementar — podem gerar impactos adversos à política regulatória, como:
• erosão da autoridade técnica da ANVISA, ao permitir o uso de medicamentos sem a devida avaliação nacional;
• insegurança jurídica para as operadoras, diante de interpretações judiciais divergentes e imprevisíveis;
• prejuízo ao princípio da equidade no acesso aos tratamentos, já que apenas pacientes com recursos para litigar conseguem obter judicialmente medicamentos importados;
• impacto financeiro sistêmico, comprometendo o mutualismo e a sustentabilidade dos planos de saúde.
A importação de medicamentos suscita um intrincado conjunto de tensões jurídicas envolvendo o direito fundamental à saúde, a função reguladora da ANVISA, os limites contratuais das operadoras de planos de saúde e os efeitos da judicialização sobre a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar, situação que deve ser efetivamente ponderada pelo Poder Judiciário nas suas decisões, o que não vem ocorrendo.
Não são raros, além do mais, os casos nos quais o medicamento importado é de uso domiciliar e não é antineoplásico oral mas, mesmo assim, o Poder Judiciário, com base nos fundamentos já expostos anteriormente, determina o fornecimento pela operadora, passando ao largo de dispositivos legais (artigo 10 incisos V e VI, da Lei nº 9656, de 1998) e normativos, além do próprio Tema Repetitivo 990 do STJ.
Trata-se de situação que causa nítida situação de desequilíbrio contratual que acaba afetando, em cascata, todos os demais usuários, dado que os reajustes contratuais, por exemplo, para os planos empresariais ou coletivos – que ainda são a maioria dos planos vigentes no Brasil - acabam sendo pautados em critérios como a sinistralidade.
É importante que as operadoras de saúde atuem nessas ações judiciais de maneira firme e efetiva, buscando levar as discussões até os Tribunais Superiores se preciso, e demonstrando todos os riscos que a situação ora apresentada representa para o setor de saúde suplementar. A busca pelo equilíbrio entre segurança sanitária, proteção contratual e direito à saúde exige um modelo jurídico dialogado, no qual operadoras, pacientes, reguladores e o Judiciário compartilhem a responsabilidade pela preservação da vida com racionalidade, segurança e observância dos contratos.
Referências Bibliográficas
AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. Disponível em: https://www.gov.br/ans. Acesso em: 5 jul. 2025.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). RDC nº 208, de 5 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre os critérios e procedimentos para importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária por pessoa física. DOU, Brasília, DF, 6 fev. 2018.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). RDC nº 570, de 20 de dezembro de 2021. Altera a RDC nº 81/2008. DOU, Brasília, DF, 22 dez. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 6.360, de 23 de setembro de 1976. Dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos. Diário Oficial da União, Brasília, 24 set. 1976.
BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde. Diário Oficial da União, Brasília, 4 jun. 1998.
BRASIL. Lei nº 14.307, de 3 de março de 2022. Altera a Lei nº 9.656/1998 e dispõe sobre o processo de atualização do rol da ANS.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Tema 990. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 5 jul. 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.657.156/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 21/02/2018.
(*) Ana Paula Oriola De Raeffray é Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/ SP. Professora dos cursos de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social. Vice-Presidente da Comissão Especial de Previdência Complementar da Ordem dos Advogados do Brasil– Seção de São Paulo. Diretora Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Previdência Complementar e Saúde Suplementar – IPCOM
(21.07.2025)