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Fintechs, Insurtechs e o Erro das Sandboxes

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Por João Marcelo dos Santos (*)

Joao Marcelo dos SantosComo já é consenso, vivenciamos atualmente, em diversos aspectos da vida social e econômica, a quebra de paradigma trazida por novas tecnologias e modelos de negócios associados à globalização, à internet e à digitalização das relações.

Nesse contexto, os supervisores do sistema financeiro e de seguros têm buscado compreender como e para onde vão esses setores, tanto do ponto de vista prudencial como no tocante a condutas de mercado. E isso tem ocorrido tanto a nível local como no âmbito de associações como o Financial Stability Board – FSI - e a International Association of Insurance Supervisors - IAIS.

Uma das iniciativas que têm sido adotadas por diversos supervisores são as chamadas “sandbox”.

Em linhas gerais, a sandbox é um ambiente controlado pelo supervisor, no qual projetos supostamente inovadores e/ou disruptivos ficam sujeitos a aprovações específicas associadas a limites e acompanhamentos especiais.

Assim, empresas atuam em projetos específicos mediante a obtenção de licenças especiais, com limitações ao seu âmbito de atuação e sujeitas a permanente e especial atenção do supervisor. Em contrapartida, o supervisor atuaria, na sandbox, de forma colaborativa, viabilizando que a inovação ocorra de forma efetiva e segura para consumidores, stakeholder e até potenciais investidores dos inovadores.

De fato, a preocupação do supervisor em não atrapalhar e, mais do que isso, colaborar com o ambiente de inovação, é uma excelente notícia.

Ainda mais porque, pela natureza de suas responsabilidades e atividades, o supervisor tende a ser conservador e a frear processos de inovação, impondo a redução de velocidade e intensidade deles sempre entende estar em risco o nível de segurança exigível.

Ocorre que o conservadorismo da supervisão é inerente a ela, e dela não pode ser retirado, mesmo em um ambiente diferenciado como a sandbox.

Além disso, na medida em que as inovações desafiam, em maior ou menor medida, o mercado tradicional, o supervisor não se pode permitir ser capturado pela visão mais conservadora que eventualmente encontrará no próprio mercado regulado ou, pelo menos, em parte dele.

Na realidade, em um ambiente de inovação, o supervisor deveria, como um cientista, tentar interferir o mínimo possível, especialmente quando reconhece, como no caso das fintechs e insurtechs, um elemento de evolução do mercado supervisionado.

Poder-se-ia perguntar, então, qual deve ser a postura do supervisor?

Nas duas últimas décadas, a supervisão bancária e de seguros tem passado por transformações importantes, em razão de elementos tão diversos como crises de confiança, necessidades de reforço das estruturas de controle e governança das entidades supervisionadas e a crescente colaboração entre as diferentes jurisdições.

Contudo, independentemente desse esforço de transição, que tem envolvido os supervisores e empresas e consumido tempo e recursos de todos, a dinâmica da transformação econômica disruptiva demanda uma nova e mais estrutural reavaliação da posição da supervisão e da regulação. Isso como condição para que, sem atrapalhar demais os processos de inovação, os supervisores respondam às demandas da sociedade por segurança no âmbito dos mercados supervisionados.

Na realidade, a oferta de supervisão depende da disponibilização de recursos públicos (quase sempre escassos) para o exercício dessa tarefa estatal. Mas, tanto pela referida escassez como pela busca da eficiência pública e privada, o espaço da supervisão tem que ser o menor possível e guiado pela demanda da sociedade de ser supervisionada, não pela demanda do supervisor de supervisionar.

Assim, ao se deparar com a inovação, o principal desafio a ser enfrentado pelo supervisor não é encontrar uma forma relevante e proativa de participar desse processo. Diferentemente, o foco deve estar, antes, na avaliação de quão relevante deve ser a presença formal do estado no ambiente de inovação. Isso, especialmente, em se considerando o objetivo principal de não dificultar mais do que necessário a inovação e a concretização de seus efeitos benéficos para a sociedade.

Nesse sentido, considerando a natureza intrinsecamente conservadora da supervisão, uma participação muito ativa do supervisor no controle do processo de inovação não parece ser, a princípio, recomendável.

Pensemos, por exemplo, em uma sandbox que estabeleça a necessidade de licenças e limites de segurança para a implementação e para os âmbitos de aplicação de inovações. A princípio, se tais inovações não dependeriam de autorizações específicas, o estabelecimento de tais licenças é um obstáculo, não uma facilitação.

Por sua vez, se a inovação não estava de acordo com a legislação, a decisão de autorizá-la com restrições tem a natureza de uma alteração na legislação, que deveria, portanto, beneficiar qualquer inovador, independentemente de uma autorização específica.

Se uma autorização específica seria requerida para determinada atividade (como pode ocorrer, dependendo da jurisdição, com um seguro peer to peer ou a concessão de crédito em grande escala), não se trata de criar uma sandbox. Diferentemente, o supervisor deve alterar ou esclarecer a regra vigente e dotar-se de subestruturas adequadas (do ponto de vista operacional e do mindset) para dar essa autorização com a maior eficiência possível.

Mesmo a possibilidade de um carimbo do supervisor viabilizar a captação de investimentos deparar-se-ia com a dificuldade de o supervisor escolher os ganhadores, situação ainda mais sensível quando, no que se refere a inovações, frequentemente o ganhador tem o potencial de ganhar a maior parte ou todo o mercado.

Jurisdições sob o regime da common law, mais habituadas à adoção de uma decisão proferida em um caso concreto como fundamento formal de uma norma geral, podem mitigar as contradições antes apontadas, mas não eliminar nem evitar a hipervalorização do conservadorismo inerente ao supervisor e os malefícios das escolhas discricionárias de ganhadores.

Pode-se pensar na sandbox como um fórum de discussões sobre inovação. Nesse caso, entretanto, não se trataria de estabelecer qualquer poder de autorizar ou não, de forma eventualmente limitada, uma determinada inovação ou modelo de negócio. Tratar-se-ia, sim, de o supervisor criar um canal de comunicação específico, internamente e com a sociedade, e de grupos de pesquisa.

Vale notar, o nome sandbox, simpático e lúdico, compara o supervisor aos pais de empresas inovadoras que são crianças a serem controladas para não machucarem a si e aos outros. Mas, se quisermos mesmo adotar metáfora nessa linha, o supervisor teria que se parecer mais com pais de adultos com papel central na condução da vida social, adultos esses que que não cabem em sandboxes.

Infantilizar a inovação e limita-la a uma sandbox confortavelmente vigiada parece ser uma tentativa de não reconhecer a realidade. Nesse contexto, o melhor cenário é que essa missão fracasse sem a inviabilização de muitas inovações e com o dispêndio de um mínimo de recursos.

Como dito, a melhor forma de o supervisor participar do processo de inovação é aprender sobre ele, como um espectador muito interessado. Ações de supervisão e regulação devem focar na definição de limites estruturais claros e na atribuição de responsabilidade aos entes supervisionados por violações desses limites.

É interessante notar, ainda, que existe uma distinção relevante entre fintechs e insurtechs.

O mercado financeiro tem como principal objetivo a intermediação financeira, que pode ser, grosso modo, entendida como o recebimento, a guarda, o gerenciamento e a transferência de recursos de algumas pessoas para outras pessoas.

Já o mercado de seguros tem a função de assumir riscos de pessoas e empresas, por meio de uma estrutura mutualística na qual, também a grosso modo, aqueles que sofrem perdas são indenizados com os recursos dos membros do grupo coberto, inclusive da grande maioria de membros que não sofreu perdas, todos participando, desde antes da ocorrência de tais imprevisíveis perdas, no financiamento de tais indenizações.

Por sua vez, um dos principais impactos da internet e da digitalização das relações é a desintermediação.

Assim, determinadas atividades tradicionalmente exercidas pelos bancos poderão ser efetivamente realizadas pelas fintechs, inclusive por não envolverem de forma central aspectos prudenciais. Já a atividade fim das seguradoras, atualmente, ainda, mais focadas na assunção de riscos (como a relevância e amplitude da atuação dos corretores de seguros indica) dificilmente será exercida por uma insurtech.

Não temos aqui, a mínima pretensão de estabelecer uma regra geral necessária, especialmente tendo em vista a complexidade e especificidades das diferentes jurisdições e o porvir imprevisível das inovações. Existem cenários, por exemplo, em que o seguro tornar-se-á um elemento menor em uma cadeia de prestação de serviços de gerenciamento de risco e/ou estará baseado em estruturas globais gerenciadas por gigantes da tecnologia, o que eventualmente demandaria até a ampliação do escopo de atuação dos supervisores de seguros e/ou o reforço da cooperação entre os supervisores.

De qualquer modo, nesse momento, nossa perspectiva é a de que as insurtechs tenderão a orbitar em torno das seguradoras ou a se transformarem nelas, enquanto as fintechs tenderão a atender os clientes dos bancos, eventualmente em diferentes graus de parceria com os bancos, mesmo sem se tornarem bancos.

Contudo, é cedo para qualquer antecipação de reposicionamento do supervisor, quando tantos cenários são possíveis.

Mesmo a análise dos riscos e benefícios da competição trazida pelas inovações mais disruptivas dependerá da estrutura e da maturidade de cada mercado. Enquanto em algumas jurisdições a grande preocupação será a resiliência dos bancos, em outras será aproveitar a possibilidade de redução da concentração.

De qualquer modo, essas diferenças devem ser levadas em consideração pelos supervisores, especialmente porque estão intimamente relacionadas à necessidade de supervisão, à espécie de supervisão necessária, à possibilidade de atribuição de responsabilidade a entidades já tradicionalmente supervisionadas (“the incumbentes”) e à eventual necessidade de criação de novas estruturas de supervisão para entidades que exercerão atividades cuja relevância e independência aumentarão.

Os mercados de capitais, em que a supervisão é demandada, em algumas situações, a incidir não de forma permanente sobre a vida das entidades, mas sim sobre atividades e projetos específicos, estão sujeitos a dinâmicas diferentes, dependendo da estrutura do mercado de capitais e do papel do supervisor em cada jurisdição. Isso pode, nesse campo, mitigar os impactos negativos das estratégias acima criticadas.

Outra característica interessante das inovações é que não respeitam os limites “antigos” de atividades específicas (pelo contrário, os desafiam), o que torna necessária, no caso de jurisdições em que existem supervisores específicos para o sistema financeiro, o mercado de seguros e o mercado de capitais, o alinhamento e a estrita cooperação entre eles.

Em suma, uma “sandbox” que seja, na realidade, um ponto de encontro de supervisores ou de setores de supervisores do sistema financeiro, do mercado de seguros e do mercado de capitais é uma boa ideia. Também é fundamental, nesse momento, o desenvolvimento da inteligência dos supervisores sobre inovação e de uma comunicação eficiente dos supervisores com a sociedade, sobre inovações e seus impactos e benefícios. Mas será um erro do supervisor acreditar que pode transformar o ambiente de inovação em uma sandbox por ele vigiada ou que, conseguindo fazer isso, colaborará de forma produtiva no processo de inovação.

(*) João Marcelo dos Santos é Sócio Fundador do Santos Bevilaqua Advogados, ex-Diretor e Superintendente Substituto da Superintendência de Seguros Privados (supervisor de seguros brasileiro) e Presidente da Academia Nacional de Seguros e Previdência.

(28.08.2018)