Por Voltaire Marenzi. Advogado e Professor.
Lendo uma matéria estampada no Google, hoje, 29/07/25, que se refere ao fim do DPVAT que teria agravado o rombo na saúde, fazendo com que o SUS tenha gasto R$449 milhões com vítimas de trânsito em 2024, em reportagem exarada pelo CQCS, data vênia, sou obrigado a discordar quanto ao cerne da questão que motivou nossos parlamentares na não aceitação desta nova roupagem na qual seria recriada tal modalidade securitária. Esta medida extrema alberga uma única e sólida anomalia, a meu pensar, a má gestão da máquina pública.
O recente fim do seguro DPVAT, oficialmente extinto por decisão governamental, marca mais um capítulo de uma tendência preocupante no Brasil: a desmontagem de instrumentos públicos de proteção social sob o pretexto de combater ineficiências, quando o verdadeiro problema reside na má condução administrativa e na captura política de instituições.
Criado com uma finalidade claramente social – indenizar vítimas de acidentes de trânsito, independentemente de culpa – o DPVAT chegou a beneficiar milhares de brasileiros por ano, especialmente os mais pobres, pedestres e motociclistas. No entanto, ao longo dos anos, sua gestão foi marcada por suspeitas de irregularidades, fraudes, e pelo domínio de um consórcio monopolista, que transformou uma política pública de indenização em fonte de lucro privado. Em vez de corrigir os problemas e reforçar a governança, a solução encontrada foi sua extinção – uma medida drástica, de impacto profundo para as vítimas e que escancara a incapacidade do Estado em consertar aquilo que deveria proteger.
Esse fenômeno encontra paralelo direto na situação dos DETRANs. Com funções igualmente públicas e essenciais – como emissão de carteiras de habilitação, registro de veículos e fiscalização do trânsito – os DETRANs são há décadas alvos de escândalos que envolvem corrupção, tráfico de influência, balcões de negócios e aparelhamento político. O que deveria ser uma estrutura técnica a serviço da mobilidade e da segurança viária transformou-se, em muitos Estados, em cabide de empregos e foco de desvios. A resposta institucional costuma seguir o mesmo roteiro: terceirizações mal supervisionadas, aumento de taxas, ou ainda a transferência de responsabilidades a empresas privadas que operam sem o devido controle público.
A semelhança entre os dois casos é brutal: a deterioração da função pública leva à desconfiança social, que por sua vez serve de justificativa para desmonte ou privatização. No caso do DPVAT, a extinção do seguro deixou milhões de brasileiros desassistidos – justamente aqueles que mais dependem da proteção estatal em situações de vulnerabilidade. No caso dos DETRANs, a má gestão e os interesses escusos penalizam diretamente o cidadão que precisa do serviço, seja para dirigir legalmente, vender um carro ou exercer atividade profissional como motorista.
Em ambos os casos, o Estado considerado por Thomas Hobbes, “O Leviatã”, um ente quase mítico, falha duplamente: primeiro, ao permitir que interesses privados contaminem estruturas públicas; depois, ao abandonar sua função social ao invés de reformar, moralizar e modernizar suas instituições. Trata-se, no fundo, de dois sintomas de uma mesma doença: a recusa em enfrentar a corrupção estrutural e o clientelismo, preferindo caminhos fáceis que retiram direitos ou transferem funções públicas ao mercado, quase sempre sem boa-fé e accountability, vale dizer, em última ratio, transparência, conjugada a critérios de escolha e auditorias sujeitas à penalização dos maus gestores.
O fim do DPVAT não deveria ser comemorado como alívio fiscal ou medida de eficiência. Ao revés. Deveria ser visto como um alerta: a perda de um instrumento social em decorrência da incapacidade do Estado de geri-lo com honestidade e competência. Da mesma forma, a manutenção dos DETRANs em sua forma atual representa um risco contínuo à cidadania, à justiça no trânsito e à confiança nas instituições.
Reformar é difícil. Mas desmontar e abandonar custa muito mais – especialmente para quem mais precisa do Estado.
Porto Alegre, 29 de julho de 2025.